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2. ABORDAGENS DA EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM DIALÓGICA: uma perspectiva

2.1. As bases teóricas da aprendizagem dialógica

2.1.1. Habermas e a teoria da ação comunicativa

O alemão Jürgen Habermas produziu a teoria da ação comunicativa (1987) no contexto das intensas transformações sociais ocorridas na sociedade da informação, posicionando-se ao lado dos movimentos sociais engajados em lutas universais por justiça

51 Flecha (1997, p. 15) aponta que a teoria da ação comunicativa, embora dê muitos elementos para discutir a

aprendizagem dialógica, deixa lacunas em aspectos educativos, especialmente porque pode reduzir a globalidade dos modos de ser das pessoas às formas de ser das crianças e jovens europeus, numa visão “evolucionista”. Habermas, ficou mais próximo de Piaget, envolvendo-se pouco com enfoques histórico-culturais, como o de Vygotsky, no qual avançou após a teoria da ação comunicativa. Dessa maneira, não se faz uma aplicação mecânica desta teoria de Habermas na aprendizagem dialógica, aproveitando-se dela principalmente a classificação dos tipos de ação, uma vez que, conforme Flecha, ajuda a aprofundar nas reflexões sobre as “as relações educativas”.

83 social e democracia. Suas elaborações teóricas permitem refutar posturas antidialógicas e autoritárias, segundo uma visão comunicativa dos sujeitos e da construção da realidade social. Conforme Mello (2002), esta concepção foi a responsável pelo distanciamento entre Habermas e os outros autores da escola de Frankfurt; enquanto estes continuaram compreendendo a consciência localizada num ator solitário, aquele a descreveu como construção intersubjetiva, derivada da interação comunicativa e da ação no mundo, a partir do entendimento lingüístico.

A partir dessas bases, Habermas promoveu um giro dialógico nas ciências sociais, o que leva Flecha, Gómez & Puigvert (2001, p. 127) a considerá-lo um dos teóricos mais relevantes da contemporaneidade. Diante deste reconhecimento, a autora e autores dedicam-se à compreensão da Teoria da Ação Comunicativa, principal obra de Habermas, identificando nela sete grupos conceituais: a racionalidade instrumental e a comunicativa; a teoria da argumentação; as pretensões de validez e as pretensões de poder; a compreensão mítica e a compreensão moderna do mundo; tipos de ação (teleológica regulada por normas, dramatúrgica e comunicativa); concepções de linguagem; e compreensão das ciências sociais. Com relação à racionalidade comunicativa, para formulá-la Habermas parte de Weber, o qual considera irreversível o predomínio da racionalidade instrumental sobre o funcionamento democrático da sociedade moderna. Na leitura weberiana, o uso instrumental do saber indica a escolha dos melhores meios para chegar a fins predeterminados, o que funciona como ponto de apoio para a burocratização da sociedade industrial e para o enfraquecimento da possibilidade transformadora dos sujeitos. Ao refletir que essa compreensão de Weber não abarca a complexidade das interações humanas, e tendo em vista o contexto da sociedade da informação, Habermas redefiniu o conceito de racionalidade da seguinte forma: “a racionalidade tem menos a ver com o conhecimento ou com a sua aquisição, do que com a forma pela qual os sujeitos capazes de linguagem e ação fazem uso do conhecimento” (HABERMAS, 1987-a, p. 24).

Assim, o teórico recupera a função dos sujeitos e, desde uma perspectiva intersubjetiva, na qual a comunicação é a chave, toma o saber como um entendimento. “Entendimento (Verstandigung) significa 'a obtenção de um acordo' entre os participantes na comunicação acerca da validez de uma emissão; acordo (Einverstandnis) significa o reconhecimento intersubjetivo da pretensão de validez que o falante vincula à emissão” (HABERMAS, 1987-b, p. 171). Diante disso, Flecha, Gómez e Puigvert (2001) interpretam

84 que a visão de Weber ressalta como ponto de chegada a destruição da racionalidade e permite, conseqüentemente, discursos e práticas de ataque à democracia e às ciências sociais. Já a perspectiva habermasiana, para as autoras e autores, resgata a gênese da modernidade, enquanto busca pelo entendimento democrático, colocando os sujeitos sociais, comunicantes, no centro desse processo.

Diante dessas elaborações, Habermas reformulou os conceitos de socialização e conservação, no horizonte comunicativo, ao invés de atribuí-los a processos de mera recepção, por parte dos sujeitos, de elementos das estruturas já formatadas. Nesse sentido, escreveu que

a razão comunicativa não se limita a dar por suposta a consciência de um sujeito ou de um sistema, apontando que aquele participa na estruturação daquilo que se há de conservar. A perspectiva utópica de reconciliação e liberdade está baseada nas condições mesmas da socialização (Vergesellschaftung) comunicativa dos indivíduos, está já inserida no mecanismo lingüístico de reprodução da espécie. (HABERMAS, 1987-a, p.507)

Frente ao exposto, podemos dizer que Habermas elabora uma teoria dual, na qual evidencia que nem os sistemas e nem os sujeitos determinam, sozinhos, a realidade. Para fazê-lo, parte dos seguintes pontos: do conceito de mundo da vida, de Schütz52, o qual reelabora; da racionalização sistêmica weberiana, a qual supera; e, ainda, das categorias sistêmicas, de Parsons, que respaldam, neste, a superação dos processos de burocratização, mas que, em Habermas, aparecem como processos ainda presentes na sociedade. Tendo em vista os avanços teóricos de Habermas, passamos a compreender que “o mundo da vida, enquanto o horizonte em que os agentes se movem 'desde sempre', fica por sua parte delimitado em conjunto pelas mudanças estruturais da sociedade e se transforma na medida em que produz essa mudança” (HABERMAS, 1987-b, p. 169). Os sujeitos são, ao mesmo tempo, construtores e resultado do contexto social e sistêmico (HABERMAS, 1987-a, p. 115). Nesse sentido, Habermas explicita que o mundo da vida “está na origem dos sistemas que agora tentam colonizá-lo” (HABERMAS, 1987-a, p. 144); colonização esta que, embora seja a dominante em muitas situações, passa a ser superada diante da capacidade de comunicação e reflexão dos sujeitos, bem como de suas ações baseadas em consensos alcançados

52Schütz chega a propor um conceito intersubjetivo de mundo da vida, mas baseado em vivências subjetivas de

um ator solitário. Tratou-se, portanto de uma visão idealista que não abarcou devidamente os processos de interação social. (ibid., p. 144)

85 linguisticamente.

Habermas (1987-b, p. 239-240) exemplifica esse processo com o caso do matrimônio, argumentando que este surgiu no âmbito do mundo da vida, nas sociedades primitivas, para regular as relações entre elas; contudo, mediante a burocratização das relações, o matrimônio passou a colonizar as relações inter-tribos. Atualizando esta temática, o Crea (1998, p. 17) demonstra que o matrimonio se tornou instituição inválida para todas/os, entrando em crise como conseqüência de processos reflexivos do cotidiano, impulsionadores de movimentos sociais na temática. Diante disso, passam a serem aceitas, gradativamente, novas maneiras de estabelecer relações, bem como novas formações de casais53, o que conduziu, ainda, a novas formas jurídicas de matrimônio, não apenas aquele entre homens e mulheres.

Ao recuperar o papel do sujeito na construção da realidade, Habermas (1987-b, p. 315)

teoriza que o transfundo em que se desenvolve o mundo da vida, portanto os sujeitos e a comunicação, abrange não apenas dimensões cognitivas de tradições culturais consolidadas, mas também um caráter psicológico das competências adquiridas e testadas. Estas competências incidem naquelas dimensões, podendo transformá-las, a partir de apoios interpessoais, emergidos por meio de solidariedades acreditadas nos marcos da racionalidade comunicativa. Para o autor a solidariedade é, então, uma possibilidade da comunicação e ação humanas, que, ao mediar as relações, proporciona superar a colonização do mundo da vida. De modo antagônico, Habermas (1987-b) apresenta que, as relações que são mediadas pelo dinheiro e pelo poder (meios econômico e administrativo deslinguistizados), promovem a colonização do mundo da vida, pois inviabilizam o plano de igualdade fundamental à comunicação. Nesse sentido, Ferrada (2001), mencionando Habermas, alerta que a colonização do mundo da vida pelo dinheiro e pelo poder gera diferentes exclusões e crises, como a do desemprego e a da opressão cultural, que estão nas origens da destruição dos processos solidários.

Chegamos, então, ao segundo grupo conceitual da teoria da ação comunicativa, formado pelos conceitos de argumento e argumentação, ao entender que eles são centrais para o entendimento, sem o qual não há ação comunicativa. Habermas delimita o argumento como emissões problemáticas, as quais carregam tanto pretensões de validade, quanto razões para que se tornem questionáveis. Já a argumentação seria um processo mais amplo de

53

Refiro-me aqui à casais formados por pessoas de sexo diferentes ou iguais, as quais tenham auto- reconhecimento coincidentes ou diferentes do que indica o fenótipo.

86 conversação, em que os sujeitos se vêem estimulados a refletir e reelaborar seus argumentos, mediante a interlocução. Neste processo, uma opinião, reconhecida intersubjetivamente, pode tornar-se saber. (HABERMAS, 1987-a, p. 47) As pretensões de validade se afirmam na medida em que constituam um consenso provisoriamente válido, sendo compreendidas e reconhecidas pelas/os interlocutoras/es. Assim, as pretensões de validade requerem uma pretensão transubjetiva de validade, fundamentada na racionalidade. Cabe ressaltar que o consenso de que fala Habermas (ibid.) abarca a possibilidade do dissenso e do conflito, pois estes podem ser superados mediante a argumentação, que dá as bases para que as emissões sejam revistas e as hipóteses eventualmente refutadas.

É necessário esclarecer, aqui, que as pretensões de validez se delineiam dentro de um contexto universal, mas também de um mundo da vida particular, e, por isso, precisam reportar-se a todos os mundos que compõem o mundo da vida: o mundo social, que é aquele compartilhado por todas/os e no qual se dá a totalidade das relações interpessoais; o mundo objetivo, que é o mundo físico, único pra todas/os, vinculado à totalidade dos fatos, ao estado de coisas; e o mundo subjetivo, aquele em que se processa a totalidade das experiências pessoais, sendo, portanto o mundo a que o próprio sujeito tem acesso privilegiado. As bases do mundo subjetivo estão, por meio das interações, nos outros dois mundos. (HABERMAS, 1987-b, p. 69)

A partir disso, compreendemos que as pretensões de validade opõem-se às pretensões de poder, sendo que a definição entre uma e outra é feita a partir dos meios utilizados para que os enunciados sejam vistos/ouvidos/percebidos como verdadeiros ou como bons. Daí, temos que as pretensões de poder se vinculam à imposição dos argumentos, por meios de força, ao passo que as pretensões de validade vêm representadas por argumentos que não são absolutos, pelo meio da comunicação. (HABERMAS, 1987-a, p. 130-1) Conforme Flecha, Gómez & Puigvert (2001), esta distinção é de grande valor e utilidade ética, uma vez que ajuda a separar o bom e o verdadeiro de seus antípodas. Nesse sentido, contribui para que vejamos a reprodução das desigualdades escondida no relativismo, que criva o discurso das/os pós- modernas/os, por exemplo, quando fazem a seguinte argumentação: são ações de poder tanto a “invasão” de terra, como estratégia de pressão para a reforma agrária, quanto as ações governamentais de desmobilização dos movimentos sociais e a grilagem de terras; portanto, nenhuma ação é melhor do que a outra.

87 pretensões de validade e as de poder ao elaborar as formas de argumentação a que se articulam as diferentes pretensões de validez: à pretensão de verdade (minhas formulações coincidem com a realidade objetiva) vincula-se a argumentação teórica; à pretensão de retitude (o que falo contempla os valores e normas sociais ) une-se a argumentação prática; e à pretensão de veracidade (o que falo coincide com o que realmente penso e sinto) vincula-se a crítica estética. O consenso deve, então, ser buscado tanto nos âmbitos cognitivo e ético, especialmente, mas também no estético e afetivo. Sobre as condições para o consenso, que é sempre provisório, Habermas escreve:

um consenso não pode produzir-se quando, por exemplo, um ouvinte aceita uma verdade de uma afirmação, mas põe simultaneamente em dúvida a veracidade do falante ou a adequação normativa de sua emissão; e o mesmo vale no caso em que, por exemplo, um ouvinte aceita a validez normativa de um mandato, mas põe em dúvida a seriedade do desejo que no mandato se expressa ou a pressuposição de existência anexa a ação que se lhe ordena (e com isso a executabilidade do mandato). (HABERMAS, 1987-b, p. 172)

Com relação ao quarto grupo conceitual, relativo à compreensão mítica e compreensão moderna do mundo, Flecha, Gómez & Puigvert (ibid., p. 132) esclarecem, primeiramente, que tais conceitos não correspondem ao relativismo, o qual nega as verdades universais e, colocando a racionalidade como mais uma forma de conhecer o mundo, permite que tanto a magia, quanto as crendices exclusoras sejam reconhecidas no mesmo patamar do conhecimento racional, feito e refeito em comunicação. Em segundo lugar, a autora e os autores indicam que na separação entre a compreensão mítica e a moderna de mundo tampouco se pressupõe que apenas visões ocidentalizadas contenham racionalidade. Nesse sentido, apontam que todas as culturas, incluindo as mais modernas, recorrem às explicações míticas sempre que não têm elementos de saber suficientes para explicar a realidade. Este grupo conceitual comparece na teoria da ação comunicativa para explicar que a compreensão moderna fixada apenas nas dimensões cognitivo-instrumentais distorceu a racionalidade. Diante disso, empenhado em teorizar sobre uma racionalidade universal, Habermas (ibid.) argumenta em favor da interação entre as diferentes culturas, a qual, partindo das peculiaridades de cada uma, garanta uma compreensão moderna e comunicativa de mundo. Ou seja, para Habermas, é no encontro intercultural que as pretensões de validade de cada cultura podem se afirmar ou se reformular e alcançar padrões mais universais os quais, ao mesmo tempo em que não descaracterizam as culturas e ajudam cada uma a intensificar internamente a comunicação, também contribuem para uma convivência respeitosa entre as

88 culturas.

A fim de explicar e contribuir com esta perspectiva, Habermas (ibid.) resgata diferentes teóricos das ciências sociais, que lhe dão base para explicar as ações teleológica, normativa e dramatúrgica e as concepções de linguagem a que estas se vinculam, bem como para que formule o conceito de ação comunicativa e o tipo de linguagem que este exige. Pela relevância da ação comunicativa neste trabalho, vamos retomar, a seguir, este percurso de Habermas, buscando elucidações por meio de exemplos:

- ação teleológica: conceito formulado por Weber para designar ações em que são escolhidos os melhores meios para se atingir os fins; o eixo da ação está na decisão entre alternativas de ação orientadas ao mundo objetivo. (HABERMAS, 1987-a, p. 122) A linguagem é concebida como um meio a mais na busca por tais meios para atingir os fins (ibid., p. 135). Como modalidade da ação teleológica, há a ação estratégica, baseada no cálculo que uma pessoa faz de sua ação, tendo em conta as decisões que a outra pessoa irá tomar; envolve manipulação. É como se o ator que realiza a ação quisesse produzir, independendo dos outros, os próprios êxitos. (HABERMAS, 1987-b)

Podemos encontrar a ação teleológica, por exemplo, quando uma/m agricultora/or escolhe a melhor estação, o melhor terreno e as melhores sementes para plantar, por antever que, assim, terá uma produção melhor e com menos trabalho. Este tipo de ação manifesta-se, ainda, em ações muito corriqueiras como escolher tomar um banho quente próximo da hora de deitar, porque o calor da água traz relaxamento ao corpo, ajudando a dormir melhor. Já a ação estratégica, se apresenta em situações que envolvem manipulação, como pode ser notado no seguinte exemplo: uma pessoa pede à outra uma carona, argumentando para que faça determinado caminho sob a justificativa de que a rua pretendida inicialmente poderia ter engarrafamento, quando, na verdade, o objetivo era manipular o condutor a ir o mais próximo possível do destino do caronista, independente do quanto isso aumentaria o percurso original daquele.

- ação regulada por normas: partindo de Durkheim e Parsons, Habermas aponta que este tipo de ação se faz presente quando as pessoas de um grupo se orientam conforme as normas fixadas no mundo social que têm em comum, tanto aquelas explícitas (consenso normativo), quanto as implícitas (consenso de fundo). A proposta de aprendizagem que abarca a ação normativa é a interiorização de valores e regras. Por isso, a linguagem tem a função de transmitir os valores culturais e ratificar um consenso a cada ato de entendimento normativo

89 (HABERMAS, 1987-b). Diante desse tipo de ação, temos o seguinte exemplo: seguindo uma das normas colocadas pelo Incra para a cessão de uso da terra, um grupo de agricultores/as acampadas/as cumpre mensalmente a exigência de tirar e apresentar a este órgão uma certidão negativa dos seus antecedentes criminais, o que reforça, ao mesmo tempo, o valor e a norma social de que ex-detentos não podem ter certos direitos sociais, bem com que a posse da terra deve ser dada a pessoas honestas, respeitosas.

- ação dramatúrgica: O eixo da ação dramatúrgica é a auto-encenação, o que implica que as pessoas se comportem diante das outras como se fossem seu público, produzindo uma dramaturgia pela qual possam construir deliberadamente uma imagem que querem transmitir de si as/os outras/os, de modo convincente (HABERMAS, 1987-b, p. 124). Goffman é a quem recorre Habermas para esta formulação. Neste caso, a linguagem é um meio para a encenação, por isso, incorpora formas de expressão verbal e não verbal, de contornos estéticos e estilísticos, que lhe tornem mais convincente.

Como exemplo de ação dramatúrgica, temos a encenação de bom comportamento feita por presas/os, quando traçam planos de fuga. (FLECHA, GÓMEZ & PIUGVERT, 2001, p. 134) A ação dramatúrgica, porém, aparece em outros contextos de nossa vida cotidiana, sempre que nos comportamos de diferentes formas ante nossos interlocutores e querendo transmitir certa imagem de nós mesmos. Quando estamos paquerando, por exemplo, e nos arrumamos para o encontro, ficamos risonhos e buscamos falar sobre coisas interessantes, estamos fazendo ação dramatúrgica.

- ação comunicativa: Mead e Garfinkel foram os autores de referência para a formulação habermasiana deste tipo de ação. Ela designa interações entre sujeitos, capazes de linguagem e de ação, que se valem destas capacidades para se comunicar, chegar ao consenso e coordenar ações no sentido acordado (HABERMAS, 1987-a, p. 124). A conversação emerge da totalidade do mundo da vida, cujas estruturas “fixam as formas de intersubjetividade do entendimento possível” (HABERMAS, 1987-b, p. 179). O aspecto central da ação comunicativa é “a interpretação, entendida como negociação de definições suscetíveis de consenso” (ibid, 134). A concepção de linguagem é a que se vale de meios verbais e não- verbais para atingir o entendimento. Exige, assim a superação da linguagem perlocutória – o falante busca produzir efeitos no ouvinte –, pela linguagem ilocutória – o falante busca comunicar, assim, suas emissões são feitas para serem compreendidas e aceitas pelo ouvinte. A segunda condição é a substituição das pretensões de poder pelas de validade. Apenas por

90 meio de argumentos de validade, podem-se ampliar os processos reflexivos, que derivam em interpretações intersubjetivamente partilhadas, funcionando como mecanismo coordenador de ação. (HABERMAS, 1987-a, p. 137-138) Nesse sentido, Habermas escreve: “Na realidade, o entendimento lingüístico é somente o mecanismo de coordenação da ação, que ajusta os planos de ação e as atividades teleológicas dos participantes para que possam construir uma interação”. (HABERMAS, 1987-b, p. 138) Com isso, o conceito de ação comunicativa contém e ultrapassa a ação teleológica, a normativa e a dramatúrgica, ao organizar inclusive a escolha dos melhores meios para atingir os fins e permitir a reflexão sobre as normas e as encenações, com base no entendimento comunicativo.

Encontramos um exemplo de ação comunicativa quando quem ensina desenha o currículo com as/os educandas/os, explicitando os conteúdos que crê central, num processo que considera aqueles pré-definidos normativamente, e abrindo o currículo para a conversação, ainda mediante a fala de que este é o papel do educador progressista. Assim, estariam viabilizadas condições para que as/os estudantes refletissem com a/o professora/or e decidissem como e no que aprofundar na realização do ensino, definindo assim os conteúdos a serem abordados, além de acrescentar temas que realcem o sentido dos conteúdos definidos intersubjetivamente.

Tendo em vista as críticas infundadas que julgam romântica e irrealizável a ação comunicativa, faz-se importante reforçar, com base em Habermas (1987) e em Flecha, Gómez e Puigvert (2001), que esta não é apenas uma proposição, na medida em que também explica um tipo de interação que diferentes sujeitos sociais, coletiva ou individualmente, já praticam no mundo da vida, conforme tivemos chance de exemplificar neste capítulo, anteriormente. Os movimentos sociais de luta pela reforma agrária realizaram ação comunicativa quando recentemente puseram em xeque a validade das leis que regulamentam a produção orgânica, mediante realização de processos democráticos (fóruns de discussão) e condução de ações coletivas de pressão, que proporcionaram o estabelecimento de um marco legal menos capitalista para a produção de alimentos, contemplando parte das exigências políticas, econômicas e técnicas para a produção agroecológica. À luz de Mello54, entendemos que esta situação demarca que os consensos de fundo, como a inquestionável legitimidade das leis, já não são suficientes para garantir a estabilidade social, sendo preciso e já se realizando a elaboração de novos consensos explicitamente. Nesse sentido, reforçando a importância dos