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Mapa 8 – Policarpo: São Cristóvão Sítio do Sossego (cidade – campo)

3. GEOGRAFIA, HISTÓRIA E LITERATURA

3.4. Ciência e literatura na Primeira República

3.4.3. A “terra” na Primeira República

3.4.3.1. A “terra” em Euclides da Cunha

Os estudos amazônicos de Euclides da Cunha destacados por João Marcelo383 expõem uma determinada apropriação da categoria “terra” que os diferencia da abordagem euclidiana desenvolvida em Os Sertões. Tendo como subsídio a pesquisa de Luciana Murari384 e de João Marcelo385 podemos compreender que há no Euclides da Cunha de Os Sertões a necessidade de criar uma origem nacional para o Brasil. Dessa forma, quando opta por trabalhar com os “estudos euclidianos sobre a Amazônia” ele se afasta do eixo mais essencialista desse debate, muito associado à ideia de raça e à necessidade de construir uma nacionalidade para o Brasil a

378 MORAES,2008, p. 92-93. 379 MAIA, 2008, p.46.

380 Entendemos que o destaque da citação de A. C. Robert de Moraes é importante para o estabelecimento de uma unidade para esse capítulo em que estamos tentando rastrear a “equação geográfica” presente em alguns intelectuais do século XIX que refletiram sobre o Brasil como Nação: “Neste quadro de formação social tem- se um território a ocupar e um estado em construção, mas a população disponível não se ajusta à identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos. No contexto, ao abandonar-se o caminho proposto por José Bonifácio (cujo eixo repousava na gradativa abolição das relações escravistas), começa a tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não com sua sociedade, mas com seu território. Isto é, o Brasil não será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de indivíduos mas como um âmbito espacial”. MORAES, op. cit., p.92-93.

381 Ibidem, p.75-87. 382 MAIA, op. cit., p. 33-54. 383 Ibidem, 2008, p.126-154. 384 MURARI, 2009.

partir de um tipo étnico específico. A opção parece não cair na contradição encontrada em Os

Sertões, obra em que o sertanejo é alçado a símbolo de nossa nacionalidade ao mesmo tempo

que é condenado ao desaparecimento por ação das forças civilizatórias. Ao se afastar dessa perspectiva mais essencialista e contraditória, acaba se aproximando de uma visão mais pragmática associada às ideias de “invenção” e “produção”, e essa tendência acaba por revelar uma apropriação do “americanismo”386. Tal orientação enfrenta a natureza e seus desafios de forma mais técnica e menos romântica, por isso mais pragmática. Nesses termos é necessário destacar que essa incorporação mais pragmática vai dar um tom diferenciado à análise, visto que o “arcaico” é incorporado como elemento dinamizador do processo de “modernização”, e não como algo que deve ser extinto a partir do avanço da civilização.

Nas palavras de João Marcelo E. Maia387:

Barbárie transfigurada: nem eliminação da barbárie, nem sua condenação

ao aniquilamento físico e espiritual, mas transfiguração. No lugar da dicotomia dura entre civilização e barbárie, a percepção de que o elemento arcaico é mecanismo dinamizador, expressão passível de ser incorporada no projeto civilizador. Em sociedades marcadas pelo peso da terra, a civilização não pode ser reduzida pela imaginação ou pela política. Ela tem andamento geográfico e sociológico, mobilizando formas de sociabilidade próprias, gestadas pela ação lenta desse personagem especial.

A não “dicotomia dura” entre “civilização e barbárie” demonstra como Euclides da Cunha, ao optar pelo eixo analítico pautado na categoria de “terra”388, construiu um cenário que pode ser encarado como menos pessimista para o Brasil, no intuito de alcançar os

386 Sobre o “Americanismo” João Marcelo E. Maia nos diz que: “A experiência de uma 'engenharia' periférica deve ser compreendida não apenas como uma espécie de desvio do campo profissional, como seria de se esperar numa análise marcada por uma sociologia das profissões. Trata-se de recuperar o sentido intelectual da engenharia e das marcas que esse sentido teria deixado nos personagens, sentido esse marcado pelas seguintes características: a realização das vocações 'americanas', afeitas à cultura técnica e aos temas da vida material, e ciosas de condutas e estratégias que não se enquadrariam nos percursos tradicionais da elite intelectual nacional; a presença do positivismo não como doutrina, mas como código moral galvanizador de um ethos marcado pela disciplina, ética-existencial missionária e pela aversão aos padrões de sociabilidade intelectual da vida urbano literária carioca; e a expressão de um desenraizamento profissional característico dos padrões de evolução da engenharia brasileira. Os três aspectos podem ser visualizados como dimensões de um “americanismo positivista” próprio de Euclides e Licínio”. MAIA, 2008, p.123.

387 Ibidem, p.142.

388 É interessante notar como até os dias atuais os nordestinos costumam identificar as pessoas que possuem a mesma origem – em relação ao lugar onde nasceram e viveram até um determinado momento – como “conterrâneos”. Essa denominação indica que a criação dos laços sociais que unem um determinado grupo social se dão através do pertencimento a uma determinada “terra”. Metaforicamente falando, se somos “conterrâneos” somos “fruto de uma mesma terra”. A palavra “conterrâneo” pode igualmente ter seu sentido aproximado da palavra “patriota” que também significa, pertencente a uma mesma “pátria”. A ideia de “pátria” amplia a noção de “conterrâneo” para a escala nacional; em termos de país somos patriotas não só por amar a pátria, mas também por ter nascido nela. Seria a manutenção da expressão “conterrâneo”, pelos nordestinos, uma indicação da importância da leitura euclidiana no pensamento social brasileiro ao longo do século XX? Essa questão foge aos limites desse trabalho, mas fica a possibilidade de desdobramento.

processos de modernização. O caminho apontado não é curto, muito menos fácil, vistas as condições do atraso técnico e moral nos quais o autor enquadrava o Brasil. Tendo como foco um olhar geográfico, é possível perceber na análise que João Marcelo empreende dos estudos euclidianos sobre a Amazônia, algumas nuanças na forma como Euclides da Cunha observa a relação do homem com o meio. Na exposição dos textos do autor de Os Sertões fica explícito como o homem se adapta ao meio, e não o contrário, e essa característica de alguma forma demonstra o atraso técnico no qual a Amazônia está submersa.

Destacamos as palavras do próprio Euclides da Cunha citadas por João Marcelo389:

Porque os homens que ali mourejam… nunca intervêm para melhorar sua única estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vezes a canoa num tronco caído há dez anos à beira de um canal; insinuam- se mil vezes com as maiores dificuldades numa ramagem revolta barrando- lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as canoas sobre os mesmos salões de argila endurecida.

Dito isto, é necessário fazer um contraponto e afirmar que Euclides da Cunha não vai concordar com as formas de acesso à modernização que vão se efetivar no Brasil com as reformas urbanas. Essas eram encaradas pelo autor como medidas superficiais que não alterariam a configuração do Brasil como nação; sua proposta está mais próxima de ações como as do Marechal Rondon, que alcançavam o Brasil em dimensões territoriais mais amplas390.

Outro ponto que merece destaque é a comparação que Euclides da Cunha faz entre o papel das ferrovias no Brasil e na Argentina. Neste país, as ferrovias são encaradas como a causa do progresso, em outros termos, são tidas como uma fonte para se obter o progresso, e 389 MAIA, 2008, p.140-141.

390 De acordo com João Marcelo E. Maia: “a engenharia euclidiana não se pautava pelos padrões franceses que estruturariam a vida profissional no Rio de Janeiro no período”. Regina Abreu, Apud João Marcelo E. Maia, destaca “'Havia também divergências importantes com relação ao significado e ao sentimento da engenharia para uns e para outros. Euclides da Cunha, como Rondon, privilegiava o trabalho das comissões pelo interior do país por acreditar que nesse trabalho estavam as reformas de base necessárias, sendo absolutamente cético com relação às reformas urbanas que se multiplicaram na virada do século. No seu entender, essas reformas eram superficiais, 'reformas pelas cimalhas’, e o país precisava de trabalho mais amplo, que interligasse todo o território nacional e incorporasse o conjunto das populações dispersas no todo nacional.'” João Marcelo E. Maia volta ao tema para a reafirmação da categoria “terra” como uma forma civilizatória desenvolvida por Euclides da Cunha em prol de uma bandeira de autenticidade. Ibidem, p. 153. A posição crítica assumida por Euclides da Cunha em relação as reformas urbanas se aproxima da posição de Lima Barreto, mas os motivos parecem diferenciar um pouco. Em nossa leitura, no caso de Lima Barreto, a perspectiva crítica em relação às reformas urbanas está associada ao afastamento dos pobres e negros do centro da cidade e na não consideração da cultura popular nos parâmetros estéticos e políticos das reformas, extremamente afrancesadas. Já destacamos que Lima Barreto e Euclides da Cunha eram avessos ao cosmopolitismo comum em sua época. Para mais detalhes sobre as “sintonias e antinomias” entre Euclides da Cunhas e Lima Barreto. Em A Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República ver crônica onde Lima Barreto faz uma crítica ao Marechal Rondon. Ver: MAIA, 2008, p.114; SEVCHENKO, 2009.

não seu efeito. E essa característica, está associada ao empreendimento cultural e educacional por parte do Estado em inventar e/ou imaginar o “argentino”. No caso do Brasil, encaramos as ferrovias como sendo o efeito do progresso, em outras palavras, os artefatos técnicos se tornaram os sujeitos da civilização, o progresso em si. Nesse sentido, destacamos a reflexão ainda contemporânea de Euclides da Cunha citada por João Marcelo391: “Não seria difícil demonstrar que é para os argentinos uma causa o que é para nós um efeito; o progresso atual advém-lhes, antes de tudo, de suas estradas de ferro; as nossas estradas de ferro resultam, antes de tudo, do nosso progresso”. Pondo a lógica ao avesso do caso argentino, como faz Euclides da Cunha, também podemos atribuir essa característica ao não investimento do Estado brasileiro em projetos culturais e educacionais mais amplos. As tentativas de se estabelecer uma identidade nacional foram construídas verticalmente – de cima para baixo – à revelia da participação dos populares e de suas culturas, tal como foi o estabelecido o nosso estado republicano.