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Araripe Júnior, Euclides da Cunha e Graça Aranha

Mapa 8 – Policarpo: São Cristóvão Sítio do Sossego (cidade – campo)

3. GEOGRAFIA, HISTÓRIA E LITERATURA

3.4. Ciência e literatura na Primeira República

3.4.2. A Natureza na Primeira República

3.4.2.3. Araripe Júnior, Euclides da Cunha e Graça Aranha

Podemos afirmar, tendo como base as reflexões de Murari348, que um ponto central no pensamento de Araripe Júnior (1848-1911) constitui a relação entre a natureza e a formação da psicologia humana. A autora destaca que entre os intelectuais apresentados – Sílvio Romero e Capistrano de Abreu – Araripe Júnior é o que faz a apropriação mais original da obra de Buckle349. Além disso é necessário destacar que um dos autores que Araripe Júnior vai mobilizar na tentativa de criar a sua interpretação do Brasil está associado aos “teóricos do determinismo mesológico e de teorias da literatura como as de Taine, de seu discípulo Hennequin e de Buckle”350. Araripe Júnior inverte a perspectiva pessimista em relação à natureza, encarando-a como uma possibilidade de mescla da qual poderia surgir o brasileiro.

De acordo com a reflexão apresentada sobre Araripe Júnior, a influência da natureza na psicologia do brasileiro não é positiva conduzindo o homem a atos de violência e ao desenvolvimento de especulações mentais imaginativas, “fantasiosas” e “delirantes”351. Neste sentido, Luciana Murari352 destaca que a ação “dos elementos naturais como fontes de transformação da psicologia do brasileiro em relação ao homem europeu é, em toda a obra do crítico, uma questão primordial para a formação da sociedade no país”. Dessa forma, resiste nesse autor a tentativa de reafirmar o que é o ser do brasileiro, através da natureza. Por esse caminho é possível aproximar suas reflexões das intencionalidades estabelecidas pelo Romantismo, em que a natureza é uma espécie de ente originário fundante do brasileiro. Também é importante destacar que a possibilidade de os elementos naturais serem esses entes originários dos brasileiros afasta a probabilidade mais direta de se tentar a aproximação da nossa nacionalidade com a matriz europeia, mas ao mesmo tempo lhe confere mais autenticidade. Nas palavras de Luciana Murari353 a produção de “Araripe Jr. acaba por demonstrar a persistência de uma visão exótica da natureza brasileira que conformou a própria imagem de Brasil a respeito de si mesmo, procedimento que Roberto Ventura nomeou 'auto- exotismo'”. Afinal, percebemos que a obra desse pensador contribui para o entendimento da forma como pensamos o Brasil ainda hoje: Um gigante pela própria natureza? Ou um gigante

348 MURARI, 2009, p.87-98. 349 Ibidem, p.87-91.

350 Dito isto, é necessário ressaltar que Taine é um dos teóricos mobilizados por Lima Barreto em suas formulações sobre a própria concepção de literatura. Ver: BARRETO, 1956.

351 MURARI, op. cit., p.90. 352 Ibidem, p.93.

pelo que ainda mantemos em nós (brasileiros) de natural? Por exemplo, a sensualidade, a plasticidade, a ginga de corpo e de vida? Nossa energia criadora e nosso jeitinho são derivados da nossa mestiçagem?

As considerações de Araripe Júnior sobre as determinações da natureza na psicologia do brasileiro nos conduzem às reflexões de Euclides da Cunha (1866-1909), que teve, a propósito, sua obra Os Sertões admirada por Araripe Júnior354. Pode-se pensar numa aproximação entre os dois pensadores, na medida em que Euclides da Cunha manteve no seio de sua obra a tensão entre a objetividade científica – comum a sua época – e a necessidade de conferir uma subjetividade ao brasileiro, comum ao período do Romantismo. Nesse sentido, Luciana Murari355 assinala que a:

geografia brasileira descrita por Euclides da Cunha possui a força dramática dos grandes quadros da natureza de Humboldt. O que a define é a sucessão de violentos contrastes que, incorporados à linguagem descritiva, conferem a ela intenso movimento, tensão e dinamismo.

Ao pontuar a influência de Humboldt na geografia brasileira euclidiana, a autora reforça nossa percepção, de que convive nesse autor a tensão entre um polo romântico – mais idealista – e um polo iluminista – mais técnico e racionalista356. A pesquisadora357 aponta uma diferença entre Euclides da Cunha358 e Araripe Júnior, e essa diferença reside na forma como ambos percebem a ação da natureza no homem e na formação cultural brasileira. No livro Os

Sertões, Euclides da Cunha apresenta a natureza como responsável pelas desigualdades

regionais existentes no território brasileiro. Na região centro-sul “a terra atrai irresistivelmente o homem”; quando, trata do sertão, no entanto, afirma que “a melancolia do deserto reflete a pobreza do meio”359. No que diz respeito a Araripe Júnior, as considerações estão 354 MURARI, 2009, p.98.

355 Ibidem, p.99.

356 Alexander Von Humboldt é um nome central na composição da geografia Moderna; esse fato ajuda a experimentarmos ainda mais a equação geográfica presente na reflexão desse autor e por consequência na Primeira República. Ver: MOREIRA, Ruy. O Pensamento Geográfico Brasileiro. vol. 1: As matrizes clássicas originárias. São Paulo: Contexto, 2008.

357 MURARI, op. cit., 2009, p.99.

358 Euclides da Cunha pertence a uma geração de intelectuais posterior aos intelectuais tratados até o momento – Joaquim Nabuco, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Capistrano de Abreu e Araripe Júnior. Dessa forma, nos aproximamos da geração de intelectuais que pertenceram ao mesmo período que Lima Barreto (1881-1922). Alguns desses intelectuais, como o próprio Euclides da Cunha e Graça Aranha, vão ter suas principais obras – Os Sertões e Canaã – publicadas no início do século XX; apesar das mudanças em relação à geração de 1870, o tema da “natureza” permanece presente. Beatriz Resende em sua introdução ao Subterrâneo do

Morro do Castelo traz reportagens escritas por Lima Barreto sobre o início do desmonte do morro do Castelo

e, em meio a estas, cria uma história ficcional. Tratam-se dos primeiros textos publicados pelo autor em 1905. Ver: RESENDE, Beatriz. O subterrâneo do morro do castelo: um folhetim de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Dantes Livraria Editora, 1997.

concentradas em questões de ordem mais subjetiva, a constituição da cultura e da psicologia do brasileiro em sua relação com a natureza imponente.

Luciana Murari360 ressalta o “jogo de antíteses” presente em Euclides da Cunha:

A trajetória em direção ao sertão de Canudos é paradigmática na obra de Euclides da Cunha, à medida que, a partir de um determinado ponto do território brasileiro, bruscamente definem-se duas regiões opostas por suas condições físicas. A primeira, dinâmica, rica e variada, a segunda imóvel, pobre e monótona. Assim, foi possível ao escritor reduzir a multiplicidade do território a uma dualidade geográfica entre o sul e o norte do país. A partir dessa ideia, Euclides da Cunha estabeleceu sua particular interpretação da realidade brasileira.

O território brasileiro na geografia de Euclides da Cunha contém dois núcleos opostos. O núcleo do Sul, que se aproxima da realidade europeia e é passível de ser absorvido pela técnica e pela civilização, e o núcleo do Norte – que engloba, basicamente, a região amazônica e o sertão nordestino –, onde seria impossível estabelecer a civilização e os aparatos técnicos típicos de sua consagração. Essa impossibilidade está diretamente associada à natureza e ao tipo de homem gerado na relação com ela. O olhar de Euclides da Cunha estabelece um padrão dualista de interpretação do Brasil segundo o qual o autor denuncia as desigualdades territoriais presentes no Brasil da época. Durante muito tempo essa dualidade foi incorporada por uma tradição de interpretação de cunho econômico, que reforçou a própria dualidade em alguns momentos e a questionou em outros. A incorporação realizada por Luciana Murari361 e assumida em nossa pesquisa, não visa projetar as consequências da leitura euclidiana ao longo do século XX; pretende notabilizar as “ferramentas mentais” utilizadas pelo autor, a fim de explorar a perspectiva geográfica de sua interpretação do Brasil. Nesse sentido, interessa-nos focalizar antes de tudo a cultura na qual o autor está inserido e a ideia de Brasil que surge a partir de sua elaboração e menos pensar sobre as possibilidades de supressão das desigualdades regionais constatadas por esse autor e por muitos outros posteriormente362.

Ainda no que diz respeito a Euclides da Cunha e sua obra Os Sertões, é necessário destacar o tipo de homem e de brasileiro que vai surgir de sua análise. Na interpretação euclidiana do Brasil, há miscigenações diferenciadas em nosso território. Na região Sul predominou a mistura entre o homem branco (europeu) e os negros (africanos) que foram 360 Murari, 2009, p.101-102.

361 Ibidem

362 Entre os autores que se dedicaram as desigualdades na região Nordeste, ao longo do século XX, podemos destacar: CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de janeiro: Edições Antares, 1984.

trazidos para essa porção do território para servir de mão-de-obra escrava. No núcleo do Norte, não ocorreu a presença maciça dos negros africanos, e esse evento está associado ao fato de a exploração econômica ter se concentrado no litoral. Dessa forma, na região Norte predominou a miscigenação entre os índios e os desbravadores portugueses. Esse ponto revela uma característica contraditória e por isso de grande interesse presente em Os Sertões: ao mesmo tempo que o homem (sertanejo) deve ser superado e assimilado pela civilização também é tido por Euclides da Cunha como sendo uma “raça forte e antiga”363, “o cerne vigoroso da nossa nacionalidade”364. Quando Euclides da Cunha condena o “homem sertanejo” ao fim – tal como acontecido no Arraial de Canudos, revela-se um intelectual que incorpora a racionalidade e os seus padrões civilizatórios e iluministas. Não obstante, ao fazer essa afirmativa, também diz que o sertanejo é o cerne de nossa nacionalidade. Nesse ponto, o autor deflagra suas perspectivas associadas ao Romantismo, em que transparece a necessidade de se estabelecer através da história um passado comum para os brasileiros. Parece uma tentativa de evitar que nossa cultura seja totalmente assimilada pelos processos de modernização sem estabelecer um essencialismo ao brasileiro365.

O escritor Graça Aranha (1868-1931) é o último autor que destacamos, baseados na reflexão de Luciana Murari366, com o objetivo de realçar a categoria natureza. Seu livro de maior notoriedade foi o romance Canaã, lançado no mesmo ano que Os Sertões, em 1902. De acordo com Luciana Murari367 o romance de Graça Aranha privilegia as relações entre homem e natureza, mas em comparação com a obra de Euclides da Cunha apresenta algumas particularidades. Em outras palavras, enquanto a leitura euclidiana do Brasil expõe a forma como o Estado brasileiro adere à força civilizadora e ao seu caráter bárbaro, o romance de Graça Aranha vai matizar a relação entre a modernização e a tradição a partir dos problemas relacionados à imigração estrangeira. Dessa forma, em um primeiro momento o romance demonstra o otimismo do imigrante em relação à natureza e à beleza das paisagens apresentadas. Posteriormente, ao entrar em contato direto com a floresta densa e fechada, o otimismo se esvai e a sensação predominante é de vertigem frente à multiplicidade de cores, formas, cheiros e assimetrias presentes na floresta. O imigrante se sente tolido, enfastiado, exausto e fracassado frente à natureza desafiante que se torna um grande empecilho ao

363 MURARI, 2009, p.104. 364 Ibidem, p.104.

365Euclides da Cunha e Lima Barreto eram resistentes ao cosmopolitismo comum em sua época. Ver: SEVCENKO, 2009.

366 MURARI, op. cit., p.106-113. 367 Ibidem, p.106.

estabelecimento do progresso técnico e da civilização368.

Apesar dessa avaliação na forma como a natureza se faz presente nos trópicos brasileiros, Luciana Murari369 destaca que “para Graça Aranha uma cultura verdadeiramente brasileira seria fundada não a partir da eliminação da barbárie impressa pela imagem da natureza no espírito do brasileiro, mas de sua incorporação pela arte”. Nesse sentido, cabe à arte uma nova apropriação da natureza exuberante do Brasil uma espécie de “absorção civilizadora da natureza e do homem dela derivado, exatamente no que havia neles de grandioso, assombroso e imaturo”. Cabe, a partir do exposto, uma aproximação entre as ideias de Graça Aranha e Araripe Júnior, no que diz respeito à forma como ambos entendem a natureza no Brasil e sua função no futuro do país. Para Murari370, ambos os autores conservam “teorias da cultura brasileira” que “refletiam um sentimento de natureza que, na visão dos autores, era formador de uma sensibilidade particular, definidora do sentido do 'estar no mundo' para o homem brasileiro”. No caso desses dois autores a natureza assume, contraditoriamente, a possibilidade de uma inserção no mundo civilizado.

Em síntese, procuramos enunciar como cada um desses autores inserem a categoria de natureza em suas reflexões. Nosso objetivo consiste tão somente em demonstrar como a natureza é um elemento central no debate dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do século XX. Acreditamos que a presença dessa categoria reforça o que estamos chamando de “equação geográfica” no pensamento social da Primeira República. Em síntese, podemos afirmar que a partir de Joaquim Nabuco percebemos as distâncias que havia entre a natureza exuberante (local) e a civilização europeia com suas tendências universalizantes e globais. Essa distância pode nos ajudar a entender melhor a crítica que Joaquim Nabuco 368 MURARI, no segundo capítulo do seu livro, trabalha com os autores que demonstram a luta do homem contra a natureza tropical no Brasil. Essa luta aprofunda a compreensão da inflexão do entendimento pautado no Romantismo – segundo o qual a natureza era idealizada e bucólica – para a perspectiva Realista e Naturalista em que a natureza é palco de conflitos. Nesse sentido, destacamos a análise que Murari faz de

Triste Fim de Policarpo Quaresma: “A trajetória do personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, é

paradigmática do percurso da intelectualidade brasileira em sua busca da essência nacional, do romantismo ao realismo naturalista. Quaresma inicia o romance lendo Rocha Pita, pesquisando canções populares autênticas, pregando a adoção do tupi como língua nacional, gabando-se das maravilhas naturais do país. Como seus projetos de redenção da cultura nacional restavam incompreendidos e ridicularizados por seus pares, Quaresma voltou-se para a vida no campo, como forma de acesso a uma autenticidade nacional inquestionável, enraizada na terra, em sua riqueza e fertilidade sem par. Sua opção pela vida no campo nutriu-se de uma imagem pastoral, a partir da oposição à cidade onde seu desabrido patriotismo o havia transformado em vítima do sarcasmo e da humilhação públicos. (…). O trabalho no campo não se mostrou nem fácil nem ameno, mas uma labuta ingrata sob o calor do sol tropical. (…). Afinal, os resultados mofinos, pelos quais obtinha pobre praga, a invasão das pragas e pestes, a pobreza do solo e a necessidade de trabalho árduo e constante acabaram vencendo-o. Aquele que esperava encontrar no contato com a terra as raízes do seu patriotismo convencia-se de que não havia lugar para ele no mundo. 'As terras não eram ferazes e ela [a agricultura] não era fácil'”. Exploraremos melhor essas ilações no nosso próximo capítulo. Ver: MURARI, 2009, p.128-129.

369 Ibidem, p.112. 370 Ibidem, p.113.

direciona ao Romantismo, com sua exaltação da natureza e do índio, assim como sua luta contra a escravidão.

No que diz respeito a Tobias Barreto, destacamos a antítese entre cultura e natureza, oposição essa que configura a avaliação pessimista do autor em relação ao Brasil. Em relação a Capistrano de Abreu e Sílvio Romero, percebemos como a natureza é um ponto forte se entender a unidade do Brasil. Na exposição sobre Araripe Júnior encontramos uma inversão interessante no que diz respeito às perspectivas pessimistas. Para esse autor, a natureza pode ser a mescla a partir da qual pode surgir o povo brasileiro. Finalmente, reforçamos que Euclides da Cunha estabelece um padrão dualista de entendimento do Brasil, segundo o qual a região norte (amazônia e sertão) contrasta com a região sul (centro sul). Nesse contraste, a relação entre civilização e barbárie se estabelece de diversas formas; denuncia-se a barbárie dos projetos civilizatórios e o aprofundamento das desigualdades regionais existentes no país. Próximo a Araripe Júnior, Graça Aranha pontua a necessidade de a arte assumir a natureza e fundar a cultura brasileira em acordo com os padrões civilizatórios e europeus.