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Mapa 8 – Policarpo: São Cristóvão Sítio do Sossego (cidade – campo)

3. GEOGRAFIA, HISTÓRIA E LITERATURA

3.4. Ciência e literatura na Primeira República

3.4.3. A “terra” na Primeira República

3.4.3.2. A “terra” em Vicente Licínio

Preliminarmente, é necessário destacar que Vicente Licínio se insere em um conjunto de ideias que são empregadas para interpretar o Brasil que remontam a Euclides da Cunha e sua obra Os Sertões. Nas palavras de João Marcelo E. Maia392 a partir da obra euclidiana a “imaginação espacial brasileira ganhara um autor de referência”. A partir de Vicente Licínio também podemos afirmar que a tradição interpretativa euclidiana vai ganhar vários desdobramentos, como em Cassiano Ricardo com a questão do “bandeirantismo”, e em Gilberto Freyre com a relação entre “civilização” e “litoral”. Especificamente, no que diz respeito a Vicente Licínio e ao seu “americanismo”, o desdobramento se dá através dos temas associados à sociedade industrial, à máquina e ao fordismo. Licínio teve uma formação positivista393 e pode ser considerado um positivista tardio394, visto que no período de sua formação intelectual o positivismo já se encontrava em declínio.

Sua formação intelectual ocorreu no período entre 1902 e 1914395 e foi concluída com a passagem pela Escola Politécnica, onde obteve o título de engenheiro geógrafo (3º ano) e 391 MAIA, 2008, p.148.

392 Ibidem, p.155. 393 Ibidem, p.156. 394 Ibidem, p.161. 395 Ibidem, p.102.

posteriormente, de engenheiro civil (5º ano). Vicente Licínio pertence à mesma geração de intelectuais de Lima Barreto e passaram pela mesma instituição na formação superior.

Não é por acaso que João Marcelo396 cita o livro Memórias da Politécnica de Paulo Pardal, em que colhe o depoimento de Lima Barreto sobre o professor Licínio Atanásio Cardoso – pai de Vicente Licínio – e professor de Lima Barreto na Politécnica:

O caturra Licínio Cardoso era o oposto de Oto de Alencar. Positivista de quatro costados, não admitia nada que contrariasse o esquema comtiano. Como professor, celebrizou-se pelo rigor com que julgava seus discípulos. Tinha mesmo um certo orgulho nisso. Considerava-se, ele próprio, uma barreira. Reprovou muita gente.

De acordo com Francisco de Assis Barbosa397, biógrafo de Lima Barreto, Licínio Atanásio Cardoso foi professor da cadeira de mecânica na Politécnica, reprovou diversas vezes o aluno Afonso Henriques de Lima Barreto, que em texto de periódico estudantil proferiu “pilhérias” em relação ao professor398. Depois de muitas reprovações, Lima Barreto, acusava Licínio Cardoso de perseguição e racismo: “Lima Barreto não tinha dúvida de que estava sendo perseguido por Licínio Cardoso, convicção esta que os anos só fizeram confirmar. Preto, pobre, tinha que ser reprovado sempre”399. Ainda no que diz respeito aos aspectos geracionais, vale destacar que Vicente Licínio, Euclides da Cunha e Lima Barreto fazem parte de um grupo de intelectuais descontentes com o Primeira República400.

Retomando o debate sobre a formação intelectual de Vicente Licínio, é importante ressaltar que para esse intelectual a filosofia positivista serviu como uma espécie de “porta teórica” e “código moral” para pensar a relação “homem e meio”; além disso, também operou 396 MAIA, 2008, p.103.

397 BARBOSA, 1981, p.93. 398 Ibidem, p.83-84. 399 Ibidem, p. 96.

400A aproximação entre o descontentamento de Vicente Licínio e Euclides da Cunha é realizada por João Marcelo: “A percepção dessa geração republicana era fortemente marcada pela experiência frustrante da República, não apenas pelo desencanto com o regime, mas pelo estado social produzido por ele. Tanto Euclides da Cunha quanto Vicente Licínio se sentiam desajustados nesse meio, em especial na vida carioca, e viam com o horror o fechamento das altas posições da vida pública para homens com seus talentos. O positivismo, dotar-lhes de uma profunda ética de convicção, contribuía para a formação de uma economia moral estóica, propícia ao trabalho e à sobriedade, que se chocava com a suposta frivolidade que caracterizaria o mundo social da Primeira República. Funcionava, por assim dizer, como um puritanismo 'aristocrático' exercitada plenamente diante do avanço do mundo do nivelamento. Vê-se que a dinâmica intelectual mobilizada por esses intérpretes, que combinava pensamento e ação era animada por um diagnóstico eminentemente tocquevilleano. No vocabulário desses homens, tratava-se de combinar republicanismo e meritocracia, igualdade e organização, pares que traduzem, para nossa experiência civilizatória, o dilema entre igualdade e liberdade desenhado por Tocqueville”. A aproximação entre Vicente Licínio e Euclides da Cunha e Lima Barreto é de nossa responsabilidade. Como já destacamos, o trabalho de Nicolau Sevcenko realiza um paralelo entre Lima Barreto e Euclides da Cunha. Ver: MAIA, 2008, p.159; SEVCHENKO, 2009.

essa relação de forma simbólica401. João Marcelo402 nos diz do “o argumento que mais lhe encantara no comtismo, e que nunca mais seria abandonado, a despeito de formulações mais sofisticadas que ganharia em obras posteriores: a relação entre homem e meio, tão comum no discurso científico do século XIX”. No desdobramento da forma como Vicente Licínio se apropria da relação “homem e meio” é necessário destacar a avaliação que realiza da “arquitetura norte-americana” associando-a ao tema da “terra”. Nesses termos, para Vicente Licínio há uma relação entre a expansão para Oeste realizada na formação territorial estadunidense e o estabelecimento de alguns padrões arquitetônicos locais. O “Oeste” estadunidense, segundo esse autor, é a porção territorial que configura o “tipicamente americano” ao revelar “a história do povo, conquistando a terra e estabelecendo-se em organismos sociais”. Nesse sentido o “bangalô seria a residência própria dos tipos sociais que empreenderam essa conquista caraterizada pela terra democratizada, configurando uma residência funcional, e de pequeno custo, construída em madeira e com pouca decoração”. No extremo oposto estaria o “Leste” dos Estados Unidos, “marcado pela centralidade de Nova York, espaço da produção europeia, no qual predomina a aristocracia e o dinheiro”403. Para Vicente Licínio os Estados Unidos se tornam um modelo de sociedade em que a consolidação da democracia e o alto nível de organização social atingido estão diretamente associados à democratização do acesso à terra.

Em outros trabalhos de Vicente Licínio, menos influenciados pelo comtismo e mais voltados para o Brasil, a relação homem e meio se faz presente404. Nessa orientação, vale destacar as suas considerações sobre o Rio São Francisco como sendo o rio responsável pela união entre a “região norte” e a “região sul” do país. Consideramos que pela dimensão de sua bacia hidrográfica e pelo fato de o Rio São Francisco cortar vários estados brasileiros – do que hoje consideramos sudeste ao nordeste do Brasil – ele possuiria a “geografia favorável” à “unidade nacional”405.

Sobre a centralidade analítica da categoria “terra” em Vicente Licínio, seu “americanismo” e a função dos rios, João Marcelo406 ressalta que:

se lá a terra nova operou de forma enérgica, mobilizando massas democratizadas sob o influxo do trabalho livre, aqui essa democratização operou de forma vagarosa, sob a condução de uma vida material

401 MAIA, 2008, p.163. 402 Ibidem, p.165.

403 Trechos de Vicente Licínio citado por Ibidem, p.166. 404 Ibidem, p.266.

405 Ibidem, p.166-167. 406 Ibidem, p.172.

constantemente ameaçada pela dissolução e instabilidade. Nos Estados unidos, o Mississippi não teria exercido nenhum efeito positivo sobre a vida do país, pois o vale deste rio seria, para Vicente Licínio, geografia da mesmice. Aqui, São Francisco surgiria como exemplo de nossa dura luta pela estabilidade, levada a cabo através da ação anônima dos homens, e não de uma política oficial com relação ao território.

A partir da reflexão acima, podemos afirmar que nos Estados Unidos o amadurecimento das relações democráticas e do nível de organização social faz com que a unidade seja conquistada através do estabelecimento de parâmetros sociais. No caso do Brasil, a questão se apresenta de forma diferente, visto nosso atraso em relação ao estabelecimento de uma democracia que estabelecesse o acesso à terra e a construção de valores sociais e organizacionais que estabelecessem uma maior coesão social. Nesse sentido, ainda que de forma preliminar nossa unidade social deve estar relacionada a aspectos naturais, tais como o Rio São Francisco. Não parece se distanciar dessa avaliação o envolvimento de Vicente Licínio com projetos educacionais na década de 1920 – a educação seria uma forma de construirmos a nossa nacionalidade tendo como parâmetros valores sociais e culturais, tal como nos Estados Unidos, no paralelo traçado. De acordo com João Marcelo407, na perspectiva “liciniana, a educação seria uma grande força dinamizadora de uma republicanização aberta, cujo sentido seria a produção de uma sociabilidade assentada no trabalho livre, e não no direito constitucional”. Dessa forma, se os Estados Unidos são considerados um modelo de sociedade democratizada pela “terra”, o Brasil é visto como um “caso médio na fenomenalidade americana”408.

Outra questão trabalhada é a maneira como a categoria “terra” vai ser pensada por Vicente Licínio e Euclides da Cunha. De acordo com João Marcelo409 “a terra operada na escrita de Euclides da Cunha tem forte conotação literária, sendo referida a paisagens caudalosas e descrita de forma detalhada e imaginativa”, mas no que diz respeito a “geografia de Vicente Licínio” afirma que ela “é seca, não sendo alvo de descrições 'humboldtianas'”. Dito isto, podemos afirmar que em relação aos estudos amazônicos de Euclides da Cunha a reflexão de Vicente Licínio apresenta um tom mais pragmático. Por esse caminho, percebemos que em Vicente Licínio há uma ruptura maior com os aspectos relacionados ao Romantismo. São menores nesse autor as oscilações entre uma perspectiva “idealista” combinada com o “realismo”, comum aos intelectuais da época – como no próprio Euclides da Cunha de Os Sertões: “A paisagem da Amazônia descrita por Euclides”, prossegue, 407 MAIA,2008, p.203.

408 Ibidem, p.171. 409 Ibidem, p.173.

“sugere uma sociabilidade nova, marcada pela regulação moderna da barbárie e pelo advento de personagens americanos, a terra nova de Vicente Licínio radicaliza essas sugestões, já que prescinde de sujeitos específicos”. No entanto, ao deixar os “sujeitos específicos”, acaba promovendo uma associação simbólica e espacial associada “ao tema da vida material”, ponto central e fomentador da “vida nacional”.

Mais adiante em sua reflexão sobre a relação entre “terra e máquina”, João Marcelo410 destaca uma interessante passagem de Vicente Licínio:

Um inventor, um mecânico hábil europeu é geralmente filho, senão neto, de um homem que já se ocupava de outras máquinas. No Brasil, ao contrário, os melhores mecânicos tiveram que ver e aprender tudo sem nenhuma assimilação ou incitação hereditária paterna. Quase todos os maquinistas de nossos navios vieram do norte, onde haviam sido marujos tão somente. Da jangada nordestina ao transatlântico moderno, quantos séculos haverá, no entanto, de intervalo, fundidos em duas décadas apenas na vida de um homem.

Primeiramente, percebemos aqui que a relação entre o homem e o meio é mediada pelo artefato técnico “jangada” e “navio”. Após esse momento, ocorre uma espécie de “transfiguração”: o homem adaptado à jangada, apesar de não contar com uma educação técnica e profissional, desenvolveu no seu contato com a “terra” habilidades que permitem sua adaptação ao mundo das máquinas, no universo da modernização. João Marcelo411 destaca que “o autor escapa do argumento racialista para enfatizar uma inteligência prática que marcaria os tipos médios brasileiros, capazes de operar com facilidade diversos tipos de maquinismos modernos”. Mais adiante o autor destaca novamente a importância da educação no pensamento de Vicente Licínio: “a educação seria ferramenta para produção de uma sociabilidade que aproveitasse 'a energia potencial de nossa terra'. Essa será uma das chaves que aproximam a imaginação espacial liciniana de certo pragmatismo de extração norte- americana”. No desenvolvimento de sua reflexão, João Marcelo412 indica que a apropriação que Vicente Licínio faz da Rússia é, na maioria das vezes, um exemplo negativo em relação ao Brasil no que diz respeito aos processos de modernização “marcado por desorganização, artificialismo e mal-estar social, cuja grande expressão literária seria Dostoiévski”. Nesse sentido, em nosso entendimento, a grande expressão de sociedade ideal no que diz respeito à organização social e à modernização é os Estados Unidos, o que combina com a perspectiva filosófica mais pragmática que harmoniza pensamento e ação como ferramentas

410 MAIA, 2008, p.177. 411 Ibidem, p.177. 412 Ibidem, p.187-188.

modernizantes e propulsoras de uma interpretação do Brasil que envolve uma determinada “imaginação espacial”.

Ao fim e ao cabo fica a percepção de que o Estado brasileiro, entre o Império e a Primeira República, imaginou alguns “Brasis”, e para isso utilizou uma imaginação espacial, ora privilegiando a literatura, ora a ciência, mas ao empreender seus projetos esqueceu de incluir os brasileiros.

Quadro Histórico das Ideias Geográficas

Império (1822-1889) Geração de 1870 (Transição) Primeira República (1889-1930)

1808 – Chegada da Família Imperial 1822 – Independência

1838 – fundação do IHGB

O Brasil se torna independente pelas mãos do colonizador.

Declara independência de Portugal para se tornar Império sob os auspícios da

monarquia lusitana.

A unidade territorial é uma preocupação central da monarquia lusitana. Imaginar uma subjetividade que atribuísse ao brasileiro uma identidade é

fundamental para a manutenção da unidade territorial. Criaram o Brasil; falta inventar os

brasileiros. - Gonçalves de Magalhães (1811-1882) - Gonçalves Dias (1823-1864) - José de Alencar (1829-1877) - Von Martius (1794-1868) - Varnhagen (1816-1878) Índio-Natureza Romantismo Classicismo (mito-épico-gregos) A literatura e os intelectuais ligados a sua produção foram mobilizados pela tentativa

de imaginar/inventar uma identidade nacional.

O Brasil já nasce querendo ser “moderno”. Nesse momento já se fala da possibilidade de construir uma identidade nacional para o

país (pátria). - Joaquim Nabuco (1849-1910) - Tobias Barreto (1839-1889) - Silvio Romero (1851-1914) - Capistrano de Abreu (1853-1927) - Machado de Assis (1839-1908) 1888 – Abolição da Escravatura 1889 – Proclamação da República

Inflexão na concepção de natureza desenvolvida pela geração anterior de intelectuais. A partir desse momento a natureza será encarada como um estorvo à civilização, como algo que deve

ser dominado (domesticado) e que fornece uma subjetividade ao brasileiro (metafísica).

A literatura perde força para o discurso científico, prova disso é consolidação das perspectivas

literárias Naturalista e Realista. Ganham força as teorias deterministas (T. Buckle, Spencer, Taine), a Antropogeografia (F.

Ratzel), o positivismo (A. Comte) e as teorias raciais (determinismo, evolucionismo e ou

darwinismo social).

-Euclides da Cunha (1866-1909) -Graça Aranha (1868-1931) -Lima Barreto (1881-1922) - Roquette Pinto (1884-1954)

Geração de 1870 (Transição) Primeira República (1889-1930) Pós-1930 - Joaquim Nabuco (1849-1910) - Tobias Barreto (1839-1889) - Silvio Romero (1851-1914) - Capistrano de Abreu (1853-1927) - Machado de Assis (1839-1908)

Sociedade estratificada pela falta de mobilidade social

típica do Antigo Regime (Império)

-Euclides da Cunha (1866-1909) -Graça Aranha (1868-1931) - Roquette Pinto (1884-1954) -Lima Barreto (1881-1922) -Olavo Bilac (1865-1918) - Coelho Neto (1864-1934) - Monteiro Lobato (1882-1948)

Reformas Urbanas no Rio de Janeiro (capital federal) Revolta da Vacina (popular)

Unificação do território (Barão de Rio Branco)

Produzir uma literatura brasileira? Modernismos campo-cidade

sertão-litoral

Semana de Arte Moderna (1922)

Sociedade estratificada por suas características

biológicas e sociais, apesar de “republicana” e

“democrática” em seus aspectos formais. “Modelo Higienista”

“Pessimista” em relação à miscigenação

- Sérgio Buarque de Holanda (1902- 1982) - Gilberto Freyre (1900-1987) - Roquette Pinto (1884-1954) - Humberto Mauro (1897-1983) “Modelo Sociológico” “Elogio” da miscigenação