• Nenhum resultado encontrado

A Torre do Tombo: da Torre do Castelo ao Mosteiro de S Bento

CAPÍTULO 1. O Património Cultural na construção e consolidação da identidade e da

1.3. Os arquivos portugueses: o estado da arte

1.3.1. A Torre do Tombo: de Arquivo Régio a Arquivo Nacional

1.3.1.1. A Torre do Tombo: da Torre do Castelo ao Mosteiro de S Bento

Os reis portugueses sempre reconheceram nos documentos que produziam ou recebiam, nomeadamente, contratos, doações, privilégios, testamentos, tratados, bulas, forais, mercês e outros, um valor probatório e patrimonial inestimável, pelo que, na fase de itinerância da Corte, quando se deslocavam, faziam-se acompanhar pelos seus arquivos, transportados numa arca metálica, com duas fechaduras, a chamada arca-burra. Para evitar perdas, fraudes ou outros danos, eram feitos vários exemplares de cada documento, que ficavam à guarda de personalidades da confiança régia, em locais considerados seguros, como os mosteiros ou os bispados. Assim se justifica, que um considerável número de documentos régios, tenham sido identificados nos conjuntos documentais provenientes de cartórios de importantes Mosteiros, como Santa Cruz de Coimbra, S. Mamede/ Santa Maria do Lorvão, Santa Maria de Alcobaça, S. João de Tarouca, S. Vicente de Fora em

Lisboa e nos de Bispados de Braga, Porto, Viseu, Lamego, Coimbra e Évora e ainda no Cartório da Ordem dos Templários / Ordem de Cristo.

Quando os reis portugueses, D. Afonso III ou D. Dinis, resolvem fixar a Corte e escolher Lisboa para capital do Reino, por ser a cidade mais importante e geograficamente a mais bem localizada, decidem igualmente fixar o seu arquivo na capital. Não se conhece a data precisa em que se decide pela instalação do Arquivo na Torre Albarrã ou do Haver do Castelo de S. Jorge, mas sabe-se com base em documentos escritos, que essa data se encontra balizada entre 1352 e 137890. Esta Torre do Castelo passou a chamar-se do Tombo, porque ali se guardavam os tombos, livros onde eram tombadas, isto é, registadas, as propriedades régias e o Arquivo passou a ser designado por Torre do Tombo, nome que detém há mais de 600 anos.

Com o decorrer do tempo, o Arquivo foi crescendo, em número de documentos e em importância, acompanhando o próprio crescimento da Administração do Reino, cuja complexidade e volume se articulava diretamente com a expansão do território. Para o Arquivo, eram remetidos todo o tipo de documentos, dos livros da chancelaria régia, a tratados com países estrangeiros, cartas de foral, sentenças, diplomas de instituição de morgadios e de capelas, testamentos, documentos da Casa dos Contos e outros.

O arquivo foi cumprindo com normalidade a sua missão, até aos tempos de D. Manuel, período em que nos iremos deter. Com D. Manuel vive-se o período áureo dos descobrimentos, dos contactos com outros povos e com outras culturas, dando origem a um inusitado aumento de documentos, o que se vem a refletir na grande actividade desenvolvida pela Torre do Tombo, que arrasta consigo dificuldades, na conservação, na organização e na identificação dos documentos, mas provoca, sobretudo, consideráveis atrasos na emissão das muitas certidões requeridas ao Arquivo, tanto por cidadãos nacionais, como estrangeiros, quer também pela própria administração régia.

Ao tomar conhecimento das dificuldades com que a Torre do Tombo se confrontava, para responder a essas solicitações, D. Manuel decide, de imediato, tomar

90

RAMOS, Fátima do Ó, “ A Torre do Arquivo do Rei e da Administração Régia”, in A Torre do Tombo na

Viragem do Milénio, Catálogo da exposição com o mesmo nome, Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/

Torre do Tombo, 2000, p.41; e RIBEIRO, João Pedro, Memorias authenticas para a história do Real Archivo, Lisboa, na Impressão Régia, 1819, p. 13.

medidas visando ultrapassar as dificuldades que se faziam sentir quer a nível do edifício, para o que ordenou a execução de obras de ampliação e melhoramentos nos espaços ocupados pelo arquivo quer, sobretudo, a nível da organização e preservação dos documentos, que se estavam a danificar, em resultado do muito uso que tinham, para deles se extraírem certidões. Neste sentido, ordena ao guarda-mor Rui de Pina, a execução de cópias dos documentos da Chancelaria Régia e de outras proveniências, desde que considerados essenciais a uma boa administração, nestes termos:

“[…] tresladar e escrever verdadeiramente aquelles que pareceo que em algum tempo podiam ser necessárias e poer em ordem repartida per livros de cada huma comarca e cousas della e assi dos mestrados e outros de cousas místicas, segundo por os títulos d’elles se pode milhor veer […]”91.

A ordem régia em referência deu origem a uma coleção designada por Leitura Nova, identificada como:

“[…] um dos mais grandiosos projetos de afirmação coletiva e de magnificação do passado jamais produzidos a nível do livro manuscrito. No domínio da memória e da formação da consciência nacional, da construção do poder, bem como no domínio da arte, a Leitura Nova afirma-se, de facto como um empreendimento absolutamente espantoso. Sessenta volumes, in folio cuidadosamente caligrafados e iluminados, executados de 1504 a 1552, e contendo a documentação entendida como essencial! Empreendimento sem rival em qualquer outro país europeu e cuja dimensão e propósito são a prova da grandeza do pequeno povo extremo da Lusitânia num momento de apogeu. E afirma-se como testemunho ainda da

consciência régia de que uma nação é um passado em comum, o qual se impunha valorizar e preservar. “92

.

A Leitura Nova é composta por 60 livros manuscritos sobre pergaminho, letra gótica, português da época, ricamente iluminados, retratando o Portugal dos Descobrimentos e organizados, de acordo com as orientações régias, por livros das Comarcas, dos Mestrados, dos Reis e dos Místicos. Cada um deles inicia-se pela respetiva “Tabuada”, ou seja, pelo índice dos documentos que contém, a fim de facilitar as buscas, uma vez que os documentos originais, escritos em latim ou em português medieval, com caligrafia antiga e de leitura pouco acessível, tornavam demoradas as buscas e a execução das cópias, para responder atempadamente, aos muitos pedidos de certidões. Este trabalho de grande valor patrimonial e mérito arquivístico viria a ser concluído já no reinado de D. João III, e dele nos dá notícia o guarda-mor da Torre do Tombo, Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel I, nestes termos:

“[…] mandou escrever a mor parte da leitura da Torre do Tombo do Reino, em livros de pergaminho, muito bem escritos e iluminados, e pôr em boa ordem em que aqui estão, tamanha e de tamanho peso, que se não pôde acabar em seu tempo […]”93.

O Real Arquivo da Torre do Tombo vive por estes tempos, um dos seus períodos áureos. Considerado por todos, nacionais e estrangeiros, uma instituição de prestígio e dignidade, irá sofrer fortes constrangimentos, a muito curto prazo, pois com a morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, segue-se um período de 60 anos de União Ibérica, que não irá deixar boas memórias ao Arquivo da Torre do Tombo, pelas razões que serão indicadas. Antes, porém, deixamos um interessante registo, quanto à relação de Filipe II de Castela, I de Portugal, com a Torre do Tombo, que visitou frequentemente, durante a permanência

92

ALBUQUERQUE, Martim de e CARDOSO, Arnaldo Pinto, A Bíblia dos Jerónimos, Lisboa, Bertrand Editora, Lda., 2004, p. 40.

93 DAMIÃO de GÓIS, Crónica do Sereníssimo Senhor Rei D. Manuel I, Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1749, p. 598.

que fez em Lisboa após a sua aclamação. Este régio interesse parece articular-se com o documento: “Instruccion para el Gobierno del Archivo General de Simancas: autêntico manual de procedimento archivístico”·, apresentado pelo próprio rei, em 1588, para ser aplicado no Real Arquivo de Simancas, que à época se encontrava em fase de instalação e organização. Do documento constam: “las funciones archivísticas, de recogida, descripción y conservación de documentos, dotación de personal, horario de trabajo, salarios, etc., y que se ha considerado el primer reglamento de archivos y archivística”94, cujas semelhanças com a organização da Torre do Tombo são por demais evidentes.

Retomando o histórico do Real Arquivo, a União Ibérica vem a revelar-se ruinosa para a Torre do Tombo, pois durante esse período perde documentos, prestígio e dignidade, como o afirma Jorge da Cunha, num relatório de 1631, de que se transcrevem excertos:

“[…] Estava em grande desconcerto e perdição […]

Os livros da Casa da Índia, livros da chancelaria del rei dom João o 3º, em pedaços comidos pelos ratos e gastados do lixo (…) e outros papéis de importância; todos soterrados debaixo do lixo, mães de um palmo de alto, cousa piedoza, que com muitos trabalhos se tiraruão, e estauão ainda em cima delles os cauacos de quando fizerão os almarios […]

Faltão vinte e tantos cofres e caixas encoiradas, que estauão cheos de papeis, consta de hum pedaço de inventário feito e assinado por Damião de Goês goarda mor, que foi deste Archivo […]

Estão muitos livros desencadernados, sem capas, arriscando-se a se perderem de todo […]

Tenho grande sentimento de ver o danificamento deste Archivo porque me criei nelle, e porque o meu próprio génio e inclinação são

94 TRIGUERO RODRIGUEZ, Maria Teresa, Archivo General de Simancas, in El Património documental y

cartórios e papeis, humanidades e antiguidades e assi antes que morra desejo vello recuperado “95

.

A recuperação da identidade nacional não trouxe ao Real Arquivo, nem o retorno dos seus documentos, nem o prestígio perdido. Desta situação nos dá conta Tomé Lopes, escrivão da Torre do Tombo, que em relatório datado de 1683, faz saber: “[…] que a porta do arquivo fora arrombada e queimados os livros dos almoxarifados de Santarém […]”96

. O tempo foi passando sem que tenham sido tomadas medidas para inverter esta situação.

Em 1745, D. José I nomeia para guarda-mor da Torre do Tombo, Manuel da Maia, general e engenheiro da Casa Real, pessoa da sua inteira confiança, e um defensor de causas, o que gera algumas expectativas em relação ao futuro do Arquivo.

Manuel da Maia, em relatório de 1751, dirigido ao Conselho da Fazenda, lamenta a situação do arquivo, denunciando a precariedade em que se encontrava o edifício, para o qual solicita uma rápida intervenção e reclama pela dotação de pessoal, capaz de elaborar índices que proporcionem maior rapidez na recuperação dos documentos. Justifica o seu pedido, nestes termos:

“parecia que se não tinha refletido até ao presente que o Arquivo Real hera hum tesouro de muitas secretarias e chancelarias que incessantemente hião crescendo e posto que o seu valor não estivesse manifesto como nos thesouros dos metaes era em tudo tão imenso que os superava […]”97.

95 Relatório de Jorge da Cunha, datado de 1631. O original encontra-se no Arquivo Cadaval, Códice 1090, fólios 98-101. Transcrito e publicado por RAU, Virgínia, A Torre do Tombo em 1631, Lisboa, separata da Academia Portuguesa de História, 1945.

96

Relatório de Tomé Lopes, citado por AZEVEDO, Pedro de, As Gavetas do ANTT, in Arquivo Histórico

Português, 1906, vol. IV, pp. 1 – 4.

97 PT/TT/ Ministério do Reino, Maço 293, Relatório enviado ao Conselho da Fazenda, datada de 29 de

Lamentavelmente, passados quatro anos sobre a apresentação deste relatório e sem que nenhuma medida tivesse sido tomada, Manuel da Maia vê “a Torre do Tesouro”, como gostava de lhe chamar, desmoronar-se e envolver nas suas ruínas o Real Arquivo, ficando tudo debaixo do entulho. E, quando as ordens eram para “salvar os vivos e enterrar os mortos”, Manuel da Maia, numa atitude carismática, tudo faz para salvar o Real Arquivo.

1.3.1.2. A Torre do Tombo: do Mosteiro de S. Bento à Cidade

Documentos relacionados