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CAPÍTULO 1. O Património Cultural na construção e consolidação da identidade e da

1.4. Os arquivos portugueses: que perspetivas?

“É no convite a percorrer as diferentes épocas através de documentos que abriram, trilharam e registaram caminhos, que se interpela a reflexão […] que futuro para este passado?”232

Na última década do século XX, Chiavenato coloca um novo desafio organizacional:

“O início da década de 1990, marca a terceira etapa do mundo organizacional: a Era da informação que surge com o tremendo impacto provocado pela tecnologia da informação (TI). A nova riqueza passa a ser o conhecimento, o recurso mais valioso e importante, substituindo o capital financeiro. Em seu lugar, surge o capital intelectual” 233

232

DAVID, Maria Inês, Catálogo da Exposição Os Arquivos no Diálogo Intercultural, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, outubro de 2008, p. 6.

233 CHIAVENATO, Idalberto, Administração dos novos Tempos, Rio de janeiro, Editora Campus, 2ª edição, 2004, p.33.

É neste desafio, que se devem inscrever as novas perspetivas para os arquivos e para os seus profissionais.

A matriz da década de 90 “informação é poder” tem perdido o seu potencial, com base no pressuposto de que o excesso de informação, muita da qual supérflua, é causador de ruído. Cada vez mais se privilegia a informação organizada, de modo a evitar perdas de tempo e de recursos, o que conduz paulatinamente, da sociedade da informação para a sociedade do conhecimento, com objetivos e metodologias diferentes. A gestão da informação preocupa-se com o objeto, que é a própria informação disponível no documento, enquanto a gestão do conhecimento se foca nos interesses das pessoas e na sua aprendizagem, exigindo do profissional a capacidade para transformar informação em conhecimentos e colocá-los ao serviço do cidadão. É assim que o conhecimento se transforma em capital intelectual, e se assume como o recurso económico mais importante para a competitividade dos indivíduos, das organizações e dos países.234

Neste sentido se inscreve, no início dos anos noventa, Peter Drucker quando defende:

“Aumentar a produtividade do trabalho intelectual e dos serviços deve ser uma prioridade económica para os países desenvolvidos e aquele que o consiga fazer primeiro dominará economicamente o século XXI. O segredo é o aumento de produtividade do trabalho intelectual, a todos os níveis […]”235

O conhecimento resulta da interação entre as pessoas e a informação e da capacidade de desenvolver ambientes de aprendizagem, na medida em que, a criação de conhecimento incorpora saberes, competências e experiências que, utilizando a mesma informação como matéria-prima, poderão desenvolver diferentes aprendizagens e, por consequência, proporcionar conhecimentos diversificados. Desta situação decorre que o

234

Esta dicotomia tem como base o texto de BASTO, Victor, A Gestão do Conhecimento como Vantagem

Competitiva das Organizações, Porto, Universidade do Porto, 2003, pp. 39 – 41.

processamento de conhecimento exige uma visão multidisciplinar e um tratamento crítico dos temas e das questões a organizar, porque a informação de qualquer documento incorpora a narrativa comprometida de quem o fez, na forma, no conteúdo, na disposição, no escrito, no omitido, no exposto e no disposto. De acordo com esta perspetiva, poderá afirmar-se que cada geração interpreta o passado de maneiras diferentes, em conformidade com a sua experiência de vida, com os seus saberes e dele retira as suas próprias ideias, pelo que a omissão ou diminuição de capital humano, na análise interpretativa do passado, poderá causar um empobrecimento ao conhecimento.

É na criação do conhecimento, que para os arquivos e seus profissionais se deverão abrir novas perspetivas. Os profissionais de arquivo não deverão ter medo de se assumirem como criadores de conhecimentos, ter capacidade para transformar a informação disponível nos seus arquivos em conhecimentos úteis, mostrando ao cidadão as suas múltiplas funções: administrativas, probatórias, informativas e educativas, o que significa, potenciar os arquivos, para bem do cidadão, dos governos e da democracia. Neste âmbito, os arquivos têm potencialidades para se assumirem, cada vez mais, como um fator de desenvolvimento das sociedades. O que não deixa de ser questionável é o diminuto conhecimento que a generalidade dos cidadãos tem dos seus arquivos.

Ao refletir sobre esta situação, poderemos questionar até que ponto ela não poderá estar dependente do passado dos arquivos, dum passado fechado, ostracizado e inacessível, que marcou os arquivos portugueses ao longo de gerações, em que eram completamente desconhecidos para o comum dos cidadãos e, para quem os conhecia, não tinha deles uma imagem muito positiva, como afirmámos anteriormente.

A rutura dos arquivos portugueses começa nos anos oitenta do século XX, a exigir uma atualização permanente, se quisermos transformar os arquivos em fontes de conhecimento, o que passa pela aproximação dos arquivos ao cidadão, e pelo modo como se conseguirem impor na sociedade, através da oferta de serviços de qualidade.

O património documental, atualmente disponível na Web, constitui uma matéria- prima informativa vastíssima e diversificada, a pedir uma valorização, possível e desejável, de forma a constituir-se em capital intelectual.

O papel emergente que cabe aos arquivos e aos seus profissionais passa por apoiar e fomentar, pedagógica e tecnicamente, hipóteses de trabalho que proporcionem a

transformação da informação disponível nos documentos, em conhecimento e proceder à sua divulgação. Esta nova capacitação, que representa um desafio para os arquivos e seus profissionais, poderá ser um ponto de partida para novas descobertas e, mais ainda, um fator de sustentabilidade para os arquivos.

A utilização do património documental não pode ser considerada como um luxo para a formulação de novos conhecimentos, porquanto representa uma potencial fonte geradora de conhecimentos.

Assim se abrem aos arquivos portugueses novas perspetivas, que se cruzam com as diretrizes do programa Horizonte 2020, Programa Quadro de Investigação e Inovação (2014 – 2020) do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, aprovado a 11 de dezembro de 2013236.

O Programa considera:

“A União tem como objetivo reforçar as suas bases científicas e tecnológicas mediante a realização do Espaço Europeu de Investigação, […] bem como incentivar a União a avançar para uma sociedade do conhecimento e a tornar-se numa economia com uma indústria mais competitiva e sustentável […]. Com vista a atingir esse objetivo, a União deverá realizar atividades para fins de implementação de investigação, desenvolvimento tecnológico, demonstração e inovação, promoção da cooperação internacional, difusão e otimização de resultados e incentivo à formação e mobilidade.” 237

236 Regulamento (UE) Nº 1291/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013,

Jornal Oficial da União Europeia, PT, de 20.12.2013, L347/104-173.disponível em:

www.ec.europa.eu/research/participants/data/ref/h2020/legal_basis/fp/h2020-eu- establact_pt.pdf

Para maximizar o seu impacto, o Horizonte 2020 prevê: “[…] desenvolver sinergias estreitas com outros programas da União, em áreas como a educação, […] a cultura ou os meios de comunicação.” 238

O ponto 6, do Horizonte 2020, designado por Uma Europa num Mundo em Mudança – Sociedades inclusivas, inovadoras e reflexivas tem como objetivo específico:

“[…] promover uma maior compreensão da Europa, encontrar soluções e apoiar sociedades europeias inclusivas, inovadoras e reflexivas num contexto de transformações sem precedentes e de interdependências globais crescentes […]”239.

Prosseguindo os seus objetivos, o Programa sugere a realização da investigação necessária para apoiar a tomada de decisões que possam contribuir para uma Europa mais democrática:

“ […] A Europa tem uma história comum colossal tanto no que se refere à cooperação como ao conflito. […] É necessária investigação para compreender a identidade e o sentimento de pertença das comunidades, regiões e nações. A investigação apoiará os responsáveis políticos na conceção de políticas que promovam o emprego, combatam a pobreza e previnam o desenvolvimento de várias formas de divisões, conflito e exclusão política e social, discriminações e desigualdades, tais como as desigualdades entre géneros e inter-geracionais, a discriminação com base na deficiência ou na origem étnica, ou a clivagem digital ou da inovação nas sociedades europeias e noutras regiões do mundo […]”240.

238

Ibidem, p. L347/107.

239 Ibidem, p. L347/161. 240 Ibidem, p. L 347/163.

A Europa tem uma história colossal, é uma realidade incontornável, tal como o pressuposto, quanto à necessidade de promover um amplo trabalho de investigação no âmbito das ciências sociais, com destaque para a historiografia, dada a capacidade que tem para explorar mudanças de tempo e de espaço, o que lhe permite explorar futuros imaginados. Esta investigação exige um trabalho multidisciplinar, posicionado na exploração do conhecimento do passado, que povoa os documentos de arquivo.

Fomentar o uso do património documental, do presente e do passado, disponível no Portal Português de Arquivos, cruzá-lo com o património documental de outros países da Europa, e/ou do Mundo, igualmente disponíveis na Web e a partir dessa informação, colocar questões, que surgirão naturalmente, em consequência de diferentes experiências de vida, de diferentes conhecimentos acumulados e de interesses diversificados. Transformar informação em conhecimento, deverá ser assumido pelos arquivos e pelos seus profissionais, como um objetivo prioritário, indo ao encontro do contexto expresso no ponto 6.3.3. do Horizonte 2020:

“As coleções europeias que se encontram em bibliotecas, incluindo as digitais, arquivos, museus, galerias e noutras instituições públicas contêm um rico manancial de documentação e objetos de estudo ainda por explorar. Estes recursos de arquivo representam juntamente com o património intangível, não só a história de cada Estado- Membro, como também o património coletivo de uma União que se afirmou ao longo do tempo. Esses materiais deverão ser colocados à disposição dos investigadores e dos cidadãos, também através das novas tecnologias a fim de permitir que se olhe para o futuro, através do arquivo do passado. A acessibilidade e a preservação do património cultural sob essas formas são necessárias para a vitalidade dos compromissos de vida dentro das atuais culturas europeias e entre elas, e contribuem para o crescimento económico sustentável.”241

Para que o ideal preconizado pelo Horizonte 2020 possa ser atingido são sugeridas atividades, como as que se indicam:

“a) Estudar o património, a memória, a identidade, a integração e a interação e tradição cultural da Europa, incluindo as suas representações nas coleções culturais e científicas, arquivos e museus, para melhor informar e compreender o presente através de interpretações mais ricas do passado;

b) Investigar a história, a literatura, a arte, a filosofia e as religiões dos países e regiões da Europa, e o modo como estas informaram a diversidade europeia contemporânea;

c) Investigar o papel da Europa no mundo, a influência mútua e os laços existentes entre as regiões do mundo e uma visão das culturas europeias de um ponto de vista exterior.”242

O processo cultural será longo, mas fundamental, não para uniformizar, mas como espaço de liberdade, porquanto o êxito da unidade europeia estará sempre associado à sua diversidade cultural e linguística, valorizando o que é próprio da dimensão cultural europeia, como o perspetivava Graça Moura:

“É nessa perspetiva que falar do património ou da herança cultural europeia faz todo o sentido. Esse património e essa herança implicam- nos e explicam-nos. Não podemos conhecer verdadeiramente a Europa, nem conhecer-nos uns aos outros, sem um verdadeiro conhecimento desses dados que são essenciais, quer para aprofundar as nossas relações e a nossa vida comum, quer para compreender o nosso passado, quer ainda para assegurar a criação cultural do presente e do futuro.”243

242

Ibidem, p. L 347/164.

243 MOURA, Vasco Graça, A Identidade Cultural Europeia, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013, p.83.

Neste âmbito, faz todo o sentido aprofundar o conhecimento do nosso património, e muito em particular do património arquivístico, a partir do qual, se atinge com facilidade um conhecimento plural, que permite compreender o papel nuclear da nossa identidade, para a construção europeia, como defende Graça Moura:

“Hoje, com a padronização e banalização implicadas por um mundo cada vez mais globalizado, devemos questionar-nos se a identidade coletiva de que estamos a falar não carece de ancorar cada vez mais na História, enquanto narrativa do passado que se pretenderia objetiva e numa memória, com ela entrelaçada, […] de cuja partilha decorre uma especial dinâmica, ao mesmo tempo de afirmação e sobrevivência, para aquela identidade”244

.

Para intervir assertivamente no futuro, é fundamental compreender bem o presente, sustentado por um conhecimento do passado, o que exige domínio dos conteúdos dos documentos de arquivo. Lembramos que, para investigar, e sistematizar conhecimentos sobre o património, edificado ou paisagístico, material ou imaterial, o conteúdo de milhares de documentos de arquivo, é fundamental, pois é neles que se pode encontrar as respostas para as dúvidas que os diferentes tipos de património colocam, é neles que se encontram as respostas para as transformações porque passou esse património, transformações determinadas pela vivência das sociedades, em diferentes tempos históricos. É nossa convicção, de que um dos principais investimentos futuros dos arquivos portugueses e dos seus profissionais deverá focar-se na formação.

Aos arquivos e aos seus profissionais espera-os uma nova missão, cujos resultados não se podem prever, mas que irão ser, certamente, um contributo determinante para a evolução da sociedade, tornando-a mais democrática e mais humanista.

É tempo de abrir os arquivos ao diálogo com os cidadãos. É tempo de pôr os cidadãos a refletir, livremente, sobre os ensinamentos e experiências transmitidos pelos

documentos de arquivo. É tempo dos arquivos se assumirem, definitivamente, como parte fundamental do património cultural, âncora para o desenvolvimento da cidadania e da democracia.

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