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Biodiversidade Economia

D) A visão da autonomia cultural: a partir da crítica ao conceito de biodiversidade enquanto construção hegemônica, esta abordagem tem

3.2.1 A Tragédia dos Commons e o declínio da biodiversidade

biodiversidade diante do discurso econômico ambiental. O tema desdobra-se em três ideias-forças: a) a primeira ideia-força consiste na retomada da temática da Tragédia dos Commons, já referida anteriormente na abordagem quanto aos DPIs, a qual agora tem por objeto a biodiversidade; b) a seguinte ideia-força visa traçar um panorama geral quanto às formas de abordagem da temática ambiental sob a perspectiva econômica, buscando-se, na medida do possível, apresentar algumas distinções entre a economia ambiental e a economia ecológica; c) a última ideia-força conceitua a Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB). Esse transcurso tem por principal objetivo demonstrar como a perspectiva econômica, pautada na ideia de mercado, também influencia de forma considerável a mercantilização da biodiversidade, tal como o faz em relação aos bens imateriais protegidos pelos DPIS.

3.2.1 A Tragédia dos Commons e o declínio da biodiversidade

Anteriormente referiu-se que o declínio da biodiversidade na contemporaneidade pode ser entendido como mais uma evidência dos riscos inerentes ao processo de industrialização e que colocam em xeque as próprias possibilidades de sobrevivência. Esta perda da biodiversidade, que, como já mencionado, motivou o nascimento das discussões em torno do tema, alertando os cientistas e motivando diversos estudos científicos e compromissos políticos no plano internacional. A percepção quanto a este declínio, o qual traz uma série de consequências dramáticas para a vida humana sobre a Terra, torna necessário retomar a exposição já realizada a respeito da Tragédia dos Commons, uma vez que esta discussão pode auxiliar na compreensão da inclusão da temática ambiental na esfera econômica, embora, esta abordagem possa constituir alvo de diversas críticas.

Considerando que os pressupostos teóricos já foram expostos quando da análise deste mesmo tema em relação aos DPIs, o que se pretende neste momento é apenas situar a temática da biodiversidade no contexto da Tragédia dos Commons, sem, contudo, repetir os preceitos

teóricos desenvolvidos naquele item na pesquisa. Desse modo, como explicado anteriormente, as características intrínsecas a serem consideradas para a classificação dos bens no campo econômico são: a rivalidade e exclusividade. Os recursos comuns, nessa perspectiva, tem acesso livre e apresentam problemas de rivalidade no seu uso, pois a utilização que cada indivíduo faz do recurso comum pode conflitar, principalmente a partir de um determinado nível de intensidade, com a utilização disponível para os demais.

O meio ambiente, de modo geral, é considerado um recurso comum, pois está disponível para qualquer um usufruir livremente, individual ou coletivamente. A análise a partir do viés econômico revela que o meio ambiente é considerado um bem que permite a rivalidade, pois é escasso e destinado ao esgotamento total quando utilizado além dos seus limites sustentáveis. Além disso, o acesso ilimitado ao meio ambiente, o qual pode ser alcançável por qualquer indivíduo, faz com que ele também seja um bem destinado a não-excluibilidade.

Assim, pode-se afirmar que o meio ambiente constitui um exemplo consistente do enfoque trazido por Hardin (1968). Os bens ambientais constituem o exemplo mais notável de recursos comuns, pois são recursos cujo acesso é livre, mas que geram problemas de acessibilidade plena, isto é, a proporção e a intensidade com que cada agente utiliza o bem são limitadas pela conduta do próximo. De forma exemplificativa, as florestas tropicais, a água doce potável e a biodiversidade podem ser enquadradas nessa perspectiva. Todos esses exemplos revelam, hodiernamente, problemas de congestionamento, degradação e esgotamento, uma vez que a utilização do seu potencial por todos os interessados, uns de modo mais intenso do que outros, dá-se perante um panorama competitivo.

A Tragédia dos Commons descreve os problemas em torno da má gestão dos recursos comuns, o que pode levar a um cenário irreversível, no qual os bens são totalmente consumidos, uma vez que os atores envolvidos operam independentemente, possuindo incentivos para sobrecarregar o uso dos bens. Consequentemente, chega-se à uma situação de desequilíbrio na sociedade e de colapso do recurso comum. Portanto, a inexistência de regras para a gestão dos recursos comuns culmina num processo de individualização e busca da máxima exploração dos recursos naturais no intuito de maximizar lucros.

A problemática evidenciada pela Tragédia dos Commons auxilia a compreensão, por conseguinte, de algumas discussões existentes na atualidade em relação à gestão dos bens ambientais, e, no enfoque desta

pesquisa, à gestão da biodiversidade. Problemas de gestão da biodiversidade têm sido amplamente constatados e documentados em estudos internacionais que revelam um declínio alarmante da biodiversidade. O Panorama da Biodiversidade Global 3 (SCDB, 2010) apresentou diversas indicações do contínuo declínio da biodiversidade em todos os seus principais componentes (na perspectiva adotada pela CDB quanto à diversidade biológica). O documento apontou que espécies que foram avaliadas como em risco de extinção estavam, de fato, aproximando-se da extinção e quase um quarto das espécies de plantas eram consideradas ameaçadas de extinção. Quanto a esse aspecto, a figura abaixo revela que mais de um terço das espécies avaliadas são consideradas ameaçadas:

Figura 5. Proporção de espécies em diferentes categorias ameaçadas

Além disso, o mesmo documento revelava que habitats naturais em diversos lugares do mundo, tais como zonas úmidas de água doce, pântanos salgados, recifes de coral, bancos de algas marinhas e outros, continuavam a diminuir em extensão e integridade. A ampla fragmentação e degradação de florestas, rios e outros ecossistemas causou a perda da biodiversidade e de serviços ecossistêmicos, bem como a diversidade genética da agricultura e da pecuária encontrava-se em franco declínio. O relatório ainda citava a pegada ecológica60 da humanidade

como um forte indicador de que a biocapacidade da Terra já foi ultrapassada (SCDB, 2010). O Panorama da Biodiversidade Global 4 não evidenciou mudanças significativas nesta tendência.

De forma mais específica o estudo sobre o Panorama da Biodiversidade Global 3 (2010) é claro em identificar “a sobre- exploração e a utilização insustentável” como causas diretas dessa perda de biodiversidade. Trata-se de uma terminologia comum à análise da

60 O termo “pegada ecológica” foi utilizado, inicialmente, por William Rees, em 1992. Em 1995, Rees e Mathis Wackernagel publicaram a obra Our Ecological Footprint: Reducing Human Impact on the Earth. “A Pegada Ecológica é, de fato, uma das primeiras tentativas abrangentes para medir o suporte de carga humana, não como uma avaliação especulativa do que o planeta pode ser capaz de suportar, mas como uma descrição de quantos planetas seriam necessários em um dado ano para apoiar a demanda de recursos humanos naquele determinado ano. A partir de sua introdução na discussão acadêmica, o conceito tem alcançado um crescente interesse na sociedade, do mundo científico às pessoas comuns. Os resultados da Pegada Ecológica para 150 nações em todo o mundo são bem conhecidos e bastante impressionantes: desde meados da década de 1980, a pegada da humanidade tem sido maior do que a capacidade de suporte do planeta, e, a pegada total da humanidade de 2008 excedeu a biocapacidade da Terra em cerca de 44 por cento” (BASTIANONI, 2010, tradução livre). Texto original: “The Ecological Footprint is, in fact, one of the first comprehensive attempts to measure human carrying capacity, not as a speculative assessment of what the planet might be able to support, but as a description of how many planets it would take in any given year to support human demand of resources in that given year. Starting from its introduction into the academic debate, the concept has achieved increasing interest in society, from the scientific world to the common people. The results of the Ecological Footprint for 150 Nations worldwide are well-known and rather striking: since the mid-1980’s, humanity’s footprint has been larger than the planet’s carrying capacity, and in 2008 humanity’s total Footprint exceeded the Earth’s Biocapacity by approximately 44 per cent.”

gestão dos recursos no plano econômico e, principalmente no âmbito da Tragédia dos Commons. Em virtude da combinação do acesso livre e da rivalidade, essa conjuntura pode culminar em uma tendência para o sobreuso ou o subinvestimento. No caso do sobreuso, aquele que se utiliza da biodiversidade tende a avaliar as vantagens e os custos de acesso ao recurso. Assim, caso queira intensificar a utilização de um recurso biológico, mesmo que isto possa significar um decréscimo em termos de fruição do bem para a coletividade, o usuário tenderá a avaliar o quanto deste incremento na produção irá reverter em seu proveito. Afinal, ele externaliza sobre o recurso comum, mas internaliza apenas parcialmente tal externalização. Isso faz como que exista uma tendência à intensificação sem restrições da exploração sobre a biodiversidade.

Contudo, se todos os usuários pensarem da mesma forma, a soma dessas ações pode culminar na Tragédia dos Commons, uma vez que o recurso, até então tido como comum e suficiente, passa a ser escasso. Por outro lado, no caso do subinvestimento, aquele que gera externalidades positivas que beneficiam a todos os usuários do recurso comum, internaliza a totalidade dos custos do seu investimento, mas, dada a dificuldade ou impossibilidade de exclusão dos demais dos benefícios do seu investimento, ele recupera uma fração mínima ou nula das externalidades positivas que gerou.

Torna-se importante, neste ponto, destacar que tanto a sobre- exploração, como o subinvestimento são entendidos como falhas de mercado no que tange à concretização de uma eficiente distribuição dos resultados da apropriação entre a coletividade e o indivíduo, o que se evidencia, especialmente, por meio de deficiências no mecanismo dos preços. Como não existe um mercado para a biodiversidade, não há que se pagar pela utilização desses bens, e, desse modo, a sua utilização indiscriminada acaba por ser incentivada. O custo da degradação ambiental (perda de biodiversidade, por exemplo) gera, nesse sentido uma externalidade negativa que deverá ser suportada por toda a coletividade. De acordo com Hardin (1968), a solução para a Tragédia dos Commons concentra-se em impedir o livre acesso, permitindo a apropriação dos recursos comuns, com a sua atribuição global a um único titular ou com a sua distribuição em parcelas de propriedade privada.

Embora Hardin (1968) exponha que o problema não está na natureza dos commons, mas sim na sua gestão ineficiente, a demasiada ênfase nas titularidades e nas formas de apropriação e a rigidez na caracterização desses títulos de apropriação constitui um dos problemas a serem enfrentados no que tange à busca de soluções para a Tragédia dos

Commons. Nesse sentido, a principal contribuição da metáfora proposta por Hardin (1968) está no fato de servir como advertência para o fato de que a falta de uma reação de cooperação e de empenho coletivo pode conduzir aos efeitos trágicos. Segundo Araújo (2008), isso tem sido levado em consideração no âmbito internacional, onde se multiplicam as iniciativas cujo escopo manifesto é o de evitar descoordenações extremas face aos problemas dos recursos comuns globais (global commons), sem, no entanto, procurar estabelecer titularidades fortes que possam complicar uma solução.

É por isso que o Direito Internacional tem se esforçado em definir os poderes e as prerrogativas quanto ao “domínio público internacional” nos oceanos, na Antártida, nos rios internacionais, no espaço aéreo e sideral. Trata-se, fundamentalmente, de sinalizar, independentemente do exercício de quaisquer poderes efetivos ou do desenvolvimento de qualquer atuação alicerçada em “acervos de direitos”, que em nenhuma parte do planeta se admitirá que recursos estejam expostos ao acesso livre no seu sentido mais radical e de que existe a intenção permanente de manter todos os recursos ao alcance de soluções de governabilidade e de sustentabilidade (ARAÚJO, 2008, p. 101).

A perspectiva trazida pela Tragédia dos Commons tem sido utilizada para fortalecer o discurso econômico em torno da temática ambiental e trazer novas discussões em torno da apropriação desses bens e sua respectiva valoração. Costuma-se afirmar, nesse teor, que o acesso livre aos recursos comuns (à biodiversidade, por exemplo) torna a sua tutela praticamente inexistente, uma vez que os indivíduos buscam no presente um retorno de suas ações, sem avaliar corretamente as consequências futuras. A partir de uma leitura estrita da teoria da Hardin (1968), o uso não regulado e a sobre-exploração da fauna e flora silvestre são problemas a serem contornados pela definição de regras precisas que regulem o acesso, a extração e o manejo de tais recursos. Isso possibilitaria mitigar as ameaças existentes sobre tais recursos. Não obstante, sabe-se que os arranjos institucionais nesse sentido podem se mostrar demasiadamente complexos em razão dos padrões reprodutivos e da mobilidade das espécies, das mudanças globais dos ecossistemas, da complexidade da dinâmica social e econômica e das políticas existentes nas comunidades.

Não obstante tais dificuldades, a Tragédia dos Commons tem sido citada rotineiramente como base teórica para a defesa da utilização da propriedade privada e de instrumentos de mercado como opção mais

viável para contornar a crise ambiental. Pode-se, nesse sentido, afirmar que esta teoria tem servido de substrato para um “cercamento” dos recursos ambientais, e, em especial, da biodiversidade. Efetivamente, a contemporaneidade tem assistido à uma nova fase da acumulação primitiva do capital sobre os recursos naturais, até então fora da economia de mercado. A criação de novas mercadorias, títulos, entre outros, utilizando-se, inclusive dos componentes da biodiversidade, demonstra a lógica de transformação (“cercamento”) dos recursos comuns em mercadorias, passíveis de compra e venda (SANTOS, 2014).

Isso é o que vem ocorrendo com as sementes, por exemplo, para as quais os DPIs constituem o principal mecanismo de inserção e proteção na economia. Hodiernamente, cresce a percepção de que, como nas economias das sociedades industrializadas os recursos comuns são ativos de mercado subaproveitados, devem ser estabelecidos direitos de propriedade privada como forma mais eficiente de geri-los. É principalmente neste sentido que se construiu a ideia de uma economia ambiental ou verde, a qual será desenvolvida no próximo item.

3.2.2 O discurso econômico em torno do meio ambiente: entre