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1 QUE GÊNERO SOU EU? DIALETIZANDO A

2.1 A TRAMA PRINCIPAL

“Qual foi a novela mais

revolucionária de todos os tempos?

É difícil, mas teve uma novela que fez a cabeça de muita gente e que pessoas de várias gerações lembram com muito carinho: “Que Rei Sou Eu?. Não sei se foi revolucionária, mas certamente é única na história. Uma comédia, uma novela de época, mas que ao mesmo tempo trazia as questões sociais do país, numa comemoração dos

200 anos da Revolução

Francesa.” Edson Celulari 14

Um adônis de 25 anos assombra o pequeno reino europeu em fins do século XVIII: o filho bastardo do Rei Petrus II, fruto do relacionamento com uma humilde plebeia. Em cena de flashback, convalescendo no leito em que acabara de dar à luz, Maria Frommet, camponesa que contava quinze anos de idade, ouve de Petrus II que eles jamais se verão novamente, posto que as condições sociais radicalmente opostas e as intrigas

14 Entrevista concedida ao jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, 07/09/2008, Caderno 2, p.16.

que já começavam a tomar conta da corte sobre suas aventuras extraconjugais impelem-no, por prudência, a evitar correr riscos. A situação aflitiva a ambos não impregna o diálogo de mágoas e rancor: eles mantêm uma conversa amorosa, e a condescendência dela com a situação é proporcional ao reconhecimento dele ao filho e ao sentimento que nutre pela amante.

Rei Petrus II

Meu filho homem; ele é lindo, Maria!

Maria Frommet

Meu Deus!

Rei Petrus II

Eu quisera fazer alguma coisa por ele.

Maria Frommet

É impossível, meu rei. Ele será perseguido: não é filho legítimo.

Rei Petrus II

É, eu sei. Na corte só se fala de meu caso com uma camponesa. (Pausa) Maria, é com pesar, mas eu preciso me separar de você. (Pausa longa) É com o coração cheio de profunda dor que digo: “Não poderei vê-la; nem a você, nem ao menino.” Mas quero que você se case e seja feliz.

Maria Frommet

Eu entendo, majestade; eu sempre soube que seria impossível.

Rei Petrus II

Maria Frommet,ouça bem o que vou dizer: depois de minha morte,

este menino poderá subir ao trono de Avilan.

Maria Frommet

Isso é impossível, Majestade.

Não depois que eu deixar de existir. Está vendo este anel? Ele tem um brasão.

Com ele, você poderá provar que é mãe de meu filho. (Pausa) Quando for preciso.

E este outro eu peço que você coloque na mão do menino, assim que ele possa raciocinar como um homem. Os dois anéis são iguais, idênticos,

e só vocês dois os possuem. Entendeu bem?

Maria Frommet

Entendi, majestade. Um anel guardarei comigo; o outro, darei a meu filho.

Rei Petrus II

Eu deixei dinheiro suficiente para que você possa construir uma vida nova. Cuide bem de meu filho, Maria. Ele é meu único herdeiro.

Maria Frommet

Sim, meu rei.

Rei Petrus II

Este segredo deverá ficar entre nós dois somente. Ninguém poderá saber. E nem será revelado antes de minha morte. Mas não se esqueça disso: só depois de minha morte.

Eles matarão o menino se souberem disso antes de minha morte. Entendeu?

Maria Frommet

Entendi, majestade. É um segredo que guardarei pra sempre.

Rei Petrus II

Pra sempre não, Maria. Depois que eu morrer, ele poderá ser Rei de Avilan.

O anel é lindo, majestade!

Rei Petrus II

(Enfático) Não poderá ser usado antes de minha morte! Não se esqueça disso!

Maria Frommet

Não esquecerei.

Rei Petrus II

(Indo em direção à porta) Maria, minha doce Maria, eu gostaria tanto que você fosse a Rainha de Avilan. Mas é um sonho impossível.

Saiba, minha querida, que eu a amei muito,

jamais esquecerei os momentos que passamos, meu grande amor.

Maria Frommet

Não vá!

Rei Petrus II

É preciso. (Virando-se para a parteira,

e indo embora depois) Cuide bem dela. Parteira

Cuidarei.15

Petrus II e Maria Frommet não mais se viram, e nos vinte e cinco anos seguintes o rei guardou o segredo. Em 1786, ao leito em seus derradeiros momentos, Petrus II sussurra uma revelação a Mestre Ravengar, o temido e maquiavélico bruxo da corte: “Vocês terão uma grande surpresa”.

Na abertura o testamento do rei, enfim a surpresa é revelada. Cabe a Ravengar lê-lo em voz alta perante a Rainha Valentine e membros da corte, todos vestidos de preto em sinal de luto, condição que não os impede de, ao longo da leitura, interrompê-la com

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rumorejos de torpor e indignação com o que estão a ouvir:

Que todos saibam que há 25 anos atrás, portanto em 1761, eu, Petrus II, amei loucamente uma camponesa. Uma jovem de 15 anos, linda como uma flor. Uma jovem de nome Maria Frommet. Maria Frommet era uma jovem do nosso povo, suave como a brisa matinal, morna como as tardes de outono, real como a terra em que trabalhava. Infelizmente, afastei-me dela por imposição das nossas condições. Mas essa menina, essa jovem, me fez o homem mais feliz do mundo por um curto espaço de tempo. Agora, chega o momento de se fazer justiça com essa moça. Saibam todos que, em 1761, Maria Frommet teve um filho. Um filho homem, meu único herdeiro varão. Avilan tem novo rei, meu povo! Meu filho com Maria Frommet – ele é o legítimo herdeiro do trono de Avilan! É preciso encontrá-lo. E que se coloque a coroa de Avilan sobre a cabeça de meu filho. Ele será Petrus III, o Rei de Avilan. 16

Escandalosamente, pois o testamento revela, para além da questão política da existência de um bastardo que deverá assumir a coroa, a condição social do reino. Avilan se mostra um território devastado pela miséria do povo e pela corrupção, incompetência e insensibilidade da classe governante.

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O Conselho do Rei é formado por seis nobres responsáveis pela administração do reino. Cada conselheiro responde por uma pasta – o que, na linguagem política hodierna, equivale aos ministérios. Todos os conselheiros aproveitam-se do cargo público para enriquecer por meio de práticas ilícitas – exceto o Conselheiro da Moeda, que se preocupa com o povo e tenta, em vão, sanear as combalidas finanças do país.

Para eles, qualquer alteração no status quo ameaça-lhes os interesses escusos tanto quanto as veleidades de Valentine e Ravengar de assumir o poder do Avilan após a morte de Petrus II. Ao longo do tempo, descobre-se que, mesmo ancião e moribundo, ele teve a morte antecipada por um cálice envenenado que lhe fora dado a mando de Valentine. Antes de o trono ficar vago, Ravengar revela à sua assistente Fanny que o destino o aparou porque o rei, ao não gerar um homem herdeiro, possibilitou a subida de Valentine ao dono, após sua morte. Com isso, o poder do bruxo, cuja influência se fazia sentir nos passos da rainha, se faria ainda maior.

Fanny

Mestre, vossa excelência precisa descansar.

Ravengar

Petrus vai morrer.

Fanny

O Rei?!

Ravengar

Está velho, doente, vai morrer com certeza.

Fanny

Desculpa, mestre, mas é uma boa notícia.

Ravengar

Fanny

O senhor terá mais liberdade de ação.

Ravengar

As coisas não são tão fáceis assim, não são simples.

Você sabe que a Rainha Valentine tem o espírito muito forte.

Fanny

Está nas suas mãos.

Ravengar

As mulheres são imprevisíveis, Fanny.

Fanny

Não para o senhor. A rainha seguirá todos os seus conselhos;

não conseguirá enfrentar todos os abutres da corte sozinha. O senhor sabe disso.

Ravengar

Petrus não tem herdeiros. Nesse ponto, o destino me aparou.

Fanny

Essa é a sorte.

Ravengar

Isso veremos, Fanny, veremos.

Fanny

Mestre, Ravengar é temido por todos. Ninguém irá enfrentá-lo.

Finalmente, o poder nas suas mãos, nas mãos mágicas de Ravengar.17

Mas, com a abertura do testamento surgiu esse filho herdeiro. Para evitar que o poder lhe escape, Ravengar elabora um plano secreto: já que o príncipe estava desaparecido, inventaria um filho bastardo e, coroando-o rei, faria dele seu títere.

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Para tanto, não bastaria escolher para falso rei um jovem com grau razoável de consciência sobre a realidade social e política do reino. Em havendo isso, o bonifrate poderia almejar desprender-se das amarras e andar com as próprias pernas. O plano consiste em retirar dos sangradouros, das ruas sujas e miseráveis, um mendigo alienado de sua existência e, aos poucos, alfabetizando-o nas idiossincrasias da corte, metamorfoseá-lo em rei. À aflição de Valentine, com a pergunta sobre se já encontrara o bastardo, Ravengar expõe suas maquinações:

Rainha Valentine

Encontrou o bastardo?

Ravengar

Isto vai ser quase impossível, Majestade, a não ser que ele se apresente.

Rainha Velentine

Mas é exatamente isso que eu quero que aconteça. A Corte não pode conhecer esse miserável. Ele tem que morrer antes!

Ravengar

Eu tive um pensamento a respeito, Majestade.

Eu estou aqui para pedir sua permissão.

Rainha Valentine

Fale, mestre...

Ravengar

Eu pensei que seria muito mais proveitoso

se esse bastardo fosse apresentado por Vossa Majestade.

Mas você ficou maluco, Ravengar! Você está querendo que eu apresente esse bastardo à Corte?!

É uma loucura! Que ideia!

Ravengar

Calma, majestade, calma! Deixe-me terminar.

Rainha Valentine

Que loucura!

Ravengar

Não seria o bastardo legítimo, majestade, mas um homem feito por mim,

que nos obedeceria cegamente. E mesmo se algum bastardo aparecesse com alguma prova, seria um impostor. Está atingindo meu pensamento, Majestade?

Rainha Valentine

Você quer dizer que você inventaria um príncipe herdeiro?

Ravengar

Sim, Majestade.

Rainha Valentine

Mas isso seria uma ameaça!

Ravengar

Majestade, seria um homem que eu escolheria do meio do povo. Um homem que eu educaria como um príncipe. Um homem com a cabeça feita por mim.

Rainha Valentine

Mas mesmo assim... Seria uma ameaça.

Ravengar

Seria um escravo, um escravo de nossas ordens, jamais uma ameaça.

E você escolheria esse homem no meio do povo?

Ravengar

Sim, majestade.

Rainha Valentine

E o educaria como se fosse um príncipe...

Ravengar

Exatamente, Majestade, até que subisse ao trono.

Rainha Valentine

Eu acho perigoso, eu acho que é arriscar demais.

Ravengar

Ele seria um boneco em nossas mãos. É melhor do que enfrentar o bastardo com direitos adquiridos.

Rainha Valentine

Eu vou pensar...18

De início relutante, Valentine aquiesce. Assim, o mendigo Picheot, figura popular de Avilan, em cujos becos e vielas assomava à cata de esmolas e de almas caridosas que lhe dessem bebida, é capturado no meio da noite por Ravengar, transforma-se em Príncipe Lucien e, depois, em Rei Petrus III, o Rei de Avilan.

Em paralelo a isso, o legítimo herdeiro de Avilan, o filho bastardo, mostra todo seu inconformismo com a situação de miséria do povo e a corrupção dos nobres: muito antes de saber-se herdeiro, Jean Pierre lidera um grupo cada vez mais numeroso de rebeldes revolucionários que, praticando atos de violência, sequestro, ataque a soldados e armamentos da corte, pretende tomar o poder. Astuciosamente, os rebeldes

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infiltram seus membros na corte, para passar-lhes informações valiosas.

Jean Pierre só toma ciência de sua condição quando Petrus II morre. Maria Frommet, não cumprindo a recomendação do rei de cuidar bem do menino, deixou-o para uma cigana criar. A cigana é Loulou Lion, a cafetina em cuja taberna os nobres da corte e outros abastados costumam divertir-se. Ela cuida de Jean- Pierre desde os quatro anos de idade. Sabe do segredo, que revela ao filho adotivo somente depois da morte de Petrus II. Porém, o detalhe do anel é esquecido, de modo que, na primeira parte da telenovela, não há maneira de comprovar que Jean Pierre pode ser Petrus III.

No entanto, à medida que o ex-mendigo vai adquirindo dotes de nobre, Maria Frommet, rebatizada de Lenore Gaillard e casada com um nobre de outro reino, reaparece em Avilan para realizar o sonho de ver seu filho coroado rei. Não se identifica como Maria Frommet - logo, mantém o segredo de que é mãe do futuro rei. Frequenta a corte e conhece o falso príncipe, que inicialmente acredita ser seu rebento, porém não lhe revela que é sua mãe. A desconfiança começa quando ela nota a ausência do anel no dedo dele. Faz diversas insinuações a Lucien sobre o objeto que comprovaria sua identidade de herdeiro; mas, como ele mostra desconhecê-lo, Maria Frommet passa a ter a certeza de que se trata de um farsante e começa a empreender a busca pelo filho de verdade. Ela é, portanto, a única que pode revelar o embuste de Mestre Ravengar e Rainha Valentine.

Ciente de sua condição de herdeiro legítimo, Jean Pierre não abandona seus ideais revolucionários. Bem ao contrário, em suas palavras dirigidas a Loulou Lion, mulher que o criara desde os quatro anos,

imediatamente após ela revelar-lhe o segredo, há a junção dos ideais de nobreza às necessidades de transformação da realidade política, social e econômica de Avilan. Fala o personagem Jean Pierre:

Isso quer dizer que, um dia, eu poderei ser o Rei de Avilan! Mas o rei está morto. Então, agora, o rei sou eu?! Você sabe o que isso quer dizer? Que um dia eu poderei salvar este país! Que um dia eu poderei acabar com a miséria do povo! Que um dia eu poderei acabar com a fome, a doença, a injustiça. Sim, Loulou, o dia em que eu for coroado o Rei de Avilan!19

Assim, Jean Pierre, o verdadeiro Rei de Avilan, e Lucien Elan, o falso que acabou sentando no trono, acabam por transformar-se em protagonista e antagonista – numa contenda que somente será decidida no último capítulo, quando ambos se enfrentam em duelo de armas e de palavras:

Jean-Pierre

Você arrasou muitos povoados em Avilan, Pichot. Muita gente inocente morreu.

Lucien/Pichot

E hoje, quantos morreram aqui?

Jean-Pierre

Não, isso não foi um massacre. Isso foi uma batalha. Onde você perdeu.

Lucien/Pichot

Você quer a minha coroa, né, Jean Pierre?

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Jean-Pierre

Ela me pertence.

Lucien/Pichot

Mas você não terá tempo de usá-la.

Jean-Pierre

Eu soube que você matou friamente Messier François Gaillart. É verdade?

Lucien/Pichot

Era um homem sem a menor importância.

Jean-Pierre

Não para mim. Era marido de minha mãe, Maria Frommet.

Lucien/Pichot

Ele falava muito alto. Me irritava.

Jean-Pierre

Eu não sei como Julliet foi gostar de um tirano como você, Pichot!

Lucien/Pichot

Você usa muito esta palavra, Jean Pierre.

Só que quando se tem o poder nas mãos, é preciso pulso firme para não fraquejar.

Jean-Pierre

Só que você não provou isso. Você manteve aquele conselho corrupto, que arruinou o país!

Lucien/Pichot

Você é um sentimental, um piegas. E um piegas não pode governar um país.

Jean-Pierre

Não, Pichot. Você que é um boneco, um produto da mente doentia que é Ravengar.

Um idiota que ficou meses e meses aprendendo a matar, a exterminar, a odiar!

Ah, Pichot!

Será que você não percebeu que este país está cansado de políticos corruptos,

de políticos matreiros, de negociatas que deixam o povo cada vez mais pobre?

Lucien/Pichot

Você é um “molóide”, um fraco!

Jean-Pierre

Que pena, Pichot, que Ravengar não lhe deu uma inteligência própria! Você está perdido! Ravengar fugiu, fugiu como todo covarde que se preza.

Lucien/Pichot

Você está mentindo! Ravengar jamais fugiria.20

Quando descobre que o herdeiro é Jean Pierre, persegue-o tenazmente. Entre eles – ambos de ambos de origem modesta - não está em jogo somente a disputa pela legitimidade do trono, mas por duas concepções de mundo: Luciean Elan renuncia às suas origens e se torna um tirano que despreza o povo. Jean Pierre não corta as raízes: quer assumir o rei para lutar pelo povo.

Após mostrar a trama principal, articulo-a com os elementos épicos que aparecem na trama de Que rei sou eu?

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