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QUE REI SOU EU? EM DOIS BRASIS

1 QUE GÊNERO SOU EU? DIALETIZANDO A

3.2 QUE REI SOU EU? EM DOIS BRASIS

Na primeira semana de exibição de Que rei sou eu?, a crítica jornalística destacou o paralelismo entre Avilan e Brasil da Nova República. N’O Globo, reportagem publicada no dia da estreia fazia a associação direta:

Qualquer semelhança entre o Brasil e Avilan, o reino do país imaginário onde se desenvolve a trama da próxima novela das sete, “Que rei sou eu?”, não é mera coincidência [...] Contradições, injustiças e desmandos marcam a vida em Avilan, onde poucos têm muitos e a maioria passa fome [...] Se agente avançar duzentos anos, encontra o verde-amarelo Plano Cruzado do então ministro da Fazenda Dilson Funaro. E a identificação fica mais clara quando se vêm em Avilan o autor da proposta, conselheiro

32 Durante a campanha eleitoral, todos os candidatos fizeram questão de manter-se afastados tanto do legado quanto da figura de Sarney, devido à sua impopularidade. O próprio PMDB, cujo candidato era Ulysses Guimarães, declarou-se oposição a Sarney. Ver O GLOBO, 14/07/1989, p. 6.

Bouchet, condenado à guilhotina porque as coisas não saíram como se esperava. (O GLOBO, 13/02/89, Segundo Caderno, p. 8)

No Jornal do Brasil, Ingo Ostrovsky relacionou a novela não ao presente ou ao passado recente, mas a um futuro próximo: o plebiscito sobre forma e sistema de governo que, previsto pela Constituição de 1988, aconteceria quatro anos depois. Em sendo Avilan um reino com todos os problemas encontrados no Brasil, deveriam os brasileiros espelhar-se na novela para imaginar como seria o país se optassem pelo retorno à monarquia:

E se o Brasil fosse um reino? Nos próximos seis meses, os súditos e súditas desta quase capitania hereditária poderão rir à vontade com a nova novela das sete. Que rei sou eu? promete mostrar a bagunça tupiniquim travestida de nobreza, usando para isso, um imaginário reino, Avilan, onde os ministros pensam mais na comissão a receber do que no país; onde o rei moribundo tira do baú um herdeiro bastardo e onde o povo é pobre, miserável. Um reino onde poucos têm muito e muitos não têm nada. [...]

Que rei sou eu? antecipa em três anos

os delírios a que se entregarão os monarquistas. Em 1992, segundo a nova Constituição, nós vamos decidir se queremos ou não o rei de volta, se vale a pena transferir a capital de Brasília para Petrópolis. Portanto, é só prestar atenção na novela para saber como seria este país se fosse um

reino. (JORNAL DO BRASIL, 19/02/89, Domingo Programa, p.2) 33

N’O Estado de São Paulo, Jeferson Barros estabelece correlação entre personagens da novela e figuras proeminentes da Nova República: o rei Petrus II, morto logo no início, é Tancredo Neves; rainha Valentine é José Sarney; Bergeron Bouchet, o conselheiro da Moeda, é Dilson Funaro, pai do Plano Cruzado. Como Jean-Pierre é identificado com os arroubos juvenis de “uma certa esquerda”, pode-se supor que se trata da figura de Fernando Collor, sobretudo quando Jeferson Barros salienta que, mesmo sendo rebelde, o herdeiro é da corte. Ou seja: diz ser contrário ao status quo, mas faz parte dele, representa, no sangue, a linhagem política tradicional. Pode ser rebelde ou bastardo, mas nunca deixará de ser aristocrata. E, embora sem citar-lhe o nome, o crítico vê na figura do bruxo Ravengar a esfinge de Antônio Carlos Magalhães, que ocupava o cargo de ministro das Comunicações e era eminência parda no governo Sarney.

Que rei sou eu? pretende ser a

primeira novela de época sobre a longínqua era Cruzado. Não se preocupem, no entanto, os ministros da Nova República, digo, os conselheiros do Ancien Regime, a sucessão está garantida para um filho do Rei Petrus II. Guerrilheiro e bastardo, é verdade; muito parecido com os arroubos juvenis de uma certa esquerda nacional, mas, de qualquer maneira, filho da corte. Morto

33 Na verdade, o plebiscito aconteceu em abril de 1993. A República presidencialista saiu amplamente vitoriosa das urnas.

Tancredo Neves, ou seja, Petrus II, o poder escapa efemeramente para José Sarney (Rainha Valentine), cuja primeira ordem é destruir o herdeiro. [...] o público será brindado com o remake da ascensão e queda do Cruzado [...] e de seu pai. O Dílson Funaro da Globo é Daniel Filho, que faz o conselheiro Bergeron Bouchet. Até na tipologia física a produção se esmerou na construção do personagem Bergeron Funaro. Daniel Filho é parecido com o ex-ministro da Fazenda. E, também, terá a cabeça cortada simbolicamente, já que a guilhotina em Avila não funciona. Como nenhuma escola de samba, essa novela das 7 tem dois destaques excepcionais: Tereza Rachel e Antônio Abujamra, que faz o conselheiro Ravengar, no qual alguns olhos mais maldosos poderão encontrar um poderoso ministro da Nova República, com poder de vida e de morte sobre os sinais eletrônicos. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 19/02/1989, Caderno 2, p. 5)

Contudo, o Brasil de Que rei sou eu?, originalmente, não caberia nas molduras da Nova República, e sim no período da ditadura A proposta de levá-la ao ar remonta ao fim da década de 1970. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, conhecido artisticamente como Boni, que por trinta anos foi um dos principais executivos da Rede Globo de Televisão, escreveu em sua autobiografia que o autor Cassiano Gabus Mendes lhe apresentara a ideia em 1977; porém, devido à

possibilidade de censura, ela só foi realizada mais de dez anos depois:

Em 1977, pedi ao Daniel Filho que sondasse o Cassiano Gabus Mendes sobre a possibilidade de ele escrever uma novela para o horário das 20h. O Cassiano propôs um "capa e espada", engraçado e também uma chanchada política. Não topei por dois motivos: Roque Santeiro tinha sido proibido e uma comédia chanchada às 20h seria uma temeridade. Em 1988, o Cassiano voltou à carga. Aproveitando a extinção da censura, resolvi arriscar. Quando li a sinopse liguei para ele exultante:

- Adorei. Quero dar o título para a sua novela e já tenho a letra da música de abertura. Vamos chamá-la de Que rei

sou eu? Topa?

- Maravilha. Vamos nessa.

Com o Grupo Luni, fiz um rap para a abertura chamado "Rap do Rei” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2011, p. 394)

Em matéria publicada na semana da estreia da novela, Veja afirma que Cassiano Gabus Mendes tivera a ideia de escrevê-la em 1983. Essa versão é confirmada por Tato Gabus Mendes, em depoimento colhido para esta dissertação.34 Entretanto, a história da criação de Que rei sou eu? ao fim da década de 1970

34 Na semana da estreia da novela, Veja publicou:

“Que rei sou eu? gira na imaginação de Gabus Mendes desde 1983. Na época ele chegou a entregar uma sinopse para a Globo, que acabou engavetando o projeto.” VEJA, 15/02/89, P.75. O depoimento de Tato Gabus Mendes foi concedido em 02/05/2015

tem capítulos que envolvem outro grande autor de folhetins: Braúlio Pedroso. Naquele mesmo ano de 1977, O Estado de São Paulo, na edição de 18 de outubro, noticia que ele estava escrevendo uma novela intitulada Que rei sou eu? para o horário das 22h, a qual teria sido censurada, pelo que a direção da TV Globo lhe teria encomendado sinopse de nova novela. Embora longa, a citação do trecho a seguir contribui para o esclarecimento do processo de criação da temática e para reavivar um fato que permanece esquecido até mesmo dentro da emissora :

A direção da TV-Globo, embora não confirme oficialmente a proibição de censura à novela “Que rei sou eu?” – prevista para estrear dia 16 de janeiro no horário das 22h – solicitou a Bráulio Pedroso, o autor, a sinopse de uma nova novela que deverá ser entregue ainda hoje ao diretor Walter Avancini. O próprio Avancini alega que a medida é apenas de “cautela”, mas, na verdade, a emissora começou a temer pela interdição quando os responsáveis pela censura solicitaram o envio de mais de 20 capítulos escritos, alterando a rotina de censura prévia que normalmente é feita sobre a sinopse e os dez primeiros capítulos gravados.

Na emissora o que se comenta é que tão logo a censura requereu mais 20 capítulos escritos, após examinar os 10 gravados, a medida intranquilizou tanto a direção quanto a como o pessoal contratado para trabalhar na novela. As gravações foram

interrompidas e Bráulio Pedroso foi chamado a escrever nova novela. Os diretores da emissora não esperaram o veto oficial, possivelmente para evitar prejuízos, como aconteceu quando do lançamento de “Roque Santeiro” e “Despedida de Casado”, vetadas quando as gravações já estavam em ritmo acelerado. No caso de “Que rei sou eu?”, emissora gravou apenas os dez capítulos iniciais para a censura e adiantou algumas tomadas de rua bem como das cenas com Milton Gonçalves e Stepan Nercessian, os atores principais da novela.

O que o pessoal contratado para a novela estranhou foi um memorando que circulou na emissora na semana passada, confirmando a estreia da série para 16 de janeiro. Alguns interpretaram o memorando como uma exigência da censura para minimizar o impacto no caso de uma nova proibição.

Além de solicitar uma nova novela a Bráulio Pedroso, a direção da Globo decidiu também enviar novamente a sinopse e os dez primeiros capítulos à censura, exigindo um parecer por escrito sobre a obra, pois pretende reativar o projeto para o próximo ano. A novela “Que rei sou eu?” conta a história de um país imaginário constituído por uma escola de samba. O diretor da Censura Federal, Rogério Nunes, informou, ontem, que “não existe nenhuma decisão da censura

contra ou a favor da novela “Que rei sou eu?”, da TV Globo. Segundo ele, os primeiros capítulos da novela chegaram ontem àquela divisão e só a partir de hoje começarão a ser examinados pelos censores. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 18/10/1977, p. 14)

A biografia de Braúlio Pedroso confirma-lhe a autoria da primeira versão de Que rei sou eu? e detalha o seu enredo. Se na versão de Cassiano Gabus Mendes o Brasil era alegorizado no reino de Avilan, em Braúlio Pedroso reduzia-se a distância entre significante e significado: o Brasil era uma grande escola de samba, e suas disputas políticas inseriam-se no confronto entre duas agremiações rivais. E havia alusão satírica aos enredos das escolas de samba – os quais, seja propositalmente, como os enredos oníricos que Joãosinho Trinta começava a desenvolver à época, seja de modo não intencional, devido à deficiência de pesquisa e das letras de samba-enredo, misturavam fatos e personagens históricos, o que acabou por inspirar o escritor Sérgio Porto a compor, na década de 1960, o Samba do Crioulo Doido. Bráulio Pedroso teve contato direto com enredo de escola de samba no carnaval de 1977, quando foi julgador do quesito enredo no desfile do Grupo Especial do Rio de Janeiro, ao lado do gramático Evanildo Bechara. Com a proibição da censura, o autor de Beto Rockfeller teve de substituí-la pela novela O Pulo do Gato, exibida às 22h entre janeiro e julho de 1978:

Na verdade, isso só aconteceu [a

exibição de “O Pulo do Gato”] diante

nascida quando ele fez parte do corpo de jurados do desfile das escolas de samba do carnaval de 1977: uma novela enredo falada em versos, com um elenco quase só de intérpretes negros, cantando as disputas políticas internas de duas agremiações rivais. Em entrevista publicada na revista

EleEla, ele dizia que aquilo era o

mundo da fantasia popular brasileira misturado à literatura de cordel, a coisa mais maluca do mundo. Toda escola de samba tinha seu rei e sua rainha, quer dizer, o sonho do reinado ainda continuava presente no brasileiro, pelo menos subconscientemente. Daí o título: “Que rei sou eu?” Nada a ver com a história homônima de autoria de Cassiano Gabus Mendes levada ao ar em 1989, na qual havia algumas semelhanças com o enredo que Bráulio tinha imaginado e que, depois do elenco escalado e tudo, teve sua gravação suspensa. [...]

Na proposta anterior de Bráulio Pedroso, de repente Lampião saído diretamnete do cordel, apareceria indo ao encontro de Luiz XIV que estava à procura da Marquesa de Santos na caatinga, quando chegam os Cavaleiros da Távola Redonda, enfim, o mundo fantástico de Momo, não por mera coincidência, também rei. (SÉRGIO, 2010, p. 209-210)

Boni, em entrevista para esta dissertação, disse não se lembrar do projeto de Bráulio Pedroso; e, mesmo quando confrontado com a matéria d’O Estado de São

Paulo e com a biografia de Bráulio Pedroso, mantém a versão de sua autobiografia:

Foi logo após Roque Santeiro ser proibida. Nós achamos que “Que rei sou eu?” seria proibida também e nós a protelamos. Não me recordo do projeto do Bráulio Pedroso, nem de ele ter apresentado a nós uma novela com este título, mesmo porque o nome “Que rei sou eu?” foi sugerido por mim. Pode ser que tenha sido uma simples coincidência, uma vontade do Bráulio, mas ele não nos apresentou esse projeto. Quando o Cassiano me apresentou o projeto, eu me lembrei de uma música de carnaval chamada “Que rei sou eu?” e sugeri a ele o mesmo nome. Também sugeri que a música fosse usada como tema de abertura, mas Cassiano não quis usar música de carnaval, por temor de que a novela ficasse associada a carnaval, e pediu algo diferente. Foi aí que eu compus o rap que virou tema de abertura. Pode ser que tenha havido uma coincidência, uma vontade do Bráulio, mas não tenho na memória o projeto do Bráulio. (BONI, 2015, APÊNDICES)

A sátira alegórica levada ao ar – que se propôs uma versão panorâmica abrangente dos piores vícios da elite política nacional - coincidiu com a primeira eleição presidencial depois do ciclo de governos militares instalados em 1964. E, devido ao seu potencial crítico,

gerou tensão no mundo real, o que será analisado no próximo capítulo.

4 TEATRALIZAÇÃO DO PODER E PODER DA TEATRALIZAÇÃO

Inicio este capítulo com breve síntese sobre como o conceito de teatralização articula-se à política, de modo que sirva de intróito à análise, nos subtítulos posteriores, da relação entre ficção e realidade, no universo político brasileiro, proporcionada pela exibição de Que rei sou eu?

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