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FOLHA DE APROVAÇÃO (PARA SER COLADA À PARTE)

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC

CENTRO DE ARTES - CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO

BRUNO FILIPPO POLICANI BORSETI

QUE REI SOU EU?

POLITIZAÇÃO DO TEATRO E TEATRALIZAÇÃO DO PODER NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Teatro na linha de pesquisa “Teatro, Sociedade e Criação Cênica”, pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGT – CEART/UDESC).

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B738q Borseti, Bruno Filippo Policani

Que rei sou eu? Politizão do teatro e teatralização do poder na teledramaturgia brasileira / Bruno Filippo Policani Borseti.

– 2015.

153 p. ; 21 cm

Orientadora: Fátima Costa de Lima Bibliografia: p. 141-147

Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianópolis, 2015.

1. Teatro. 2. Estética. 3. Novelas de rádio e televisão – Brasil. I. Lima, Fátima Costa de. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. III. Título.

CDD: 792 – 20.ed.

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AGRADECIMENTO

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RESUMO

A novela Que Rei sou Eu?, exibida pela Rede Globo de Televisão no fim dos anos 80, é um marco na história da teledramaturgia brasileira por romper-lhe os cânones tradicionais. O melodrama folhetinesco cede espaço à conscientização de problemas sociais e políticos numa operação dialética entre signos reais e ficcionais, o que acabou por gerar tensão no universo da realidade política e social. O recurso à sátira e à alegoria contribuiu para a tarefa de retratar a realidade brasileira da Nova República por meio de um reino europeu do século XVIII. Essas características realçam o poder da teatralização do mais importante produto da indústria cultural brasileira. Porém, a tensão entre ficção e realidade acabou por servir de contraponto: gerou a politização da arte da teledramaturgia, ao possibilitar sua articulação com a estetização das práticas políticas.

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ABASTRACT

Que rei sou eu?, aired by Globo TV in the late 80s, is a milestone in the history of Brazilian soap operas for breaking her traditional canons: melodrama gives way to awareness of social and political problems, a hybridization of signs real e fictional that generated tension in the world of political and social reality. The use of satire and allegory contributes to portray the reality of Brazilian New Republic through a European kingdom of the eighteenth century. These features enhance the power of dramatization of the most important product of the Brazilian cultural industry. But the tension between fiction and reality turned out to serve as a counterpoint to the politicization of aesthetics, to enable the articulation of a speech emphasizing the aesthetics of political practices.

Keywords: television drama, Que Rei sou Eu?,

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Lucien

Mas quem se interessa por essa América do Sul? O importante é Europa e Ásia.

Ravengar

Tudo é importante, Lucien. (Com uma chave na mão, aponta para a América do sul no Globo terrestre e diz, enfático:) Aqui!

Lucien (Olhando para o globo)

Ah é, aqui. E que país enorme é este?

Ravengar

Este país está sendo colonizado por portugueses. (Exaltado) Este país, no futuro, será um exemplo para o mundo!

Lucien

Exemplo do quê, mestre?

Ravengar

De corrupção e vagabundagem. (Sonoplastia de percussão de samba ao fundo) Um país muito rico, que será entregue aos estrangeiros de mão beijada, aos poucos1

1 Diálogo entre Mestre Ravengar (Antônio Abujamra), maquiavélico

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...9

1 QUE GÊNERO SOU EU? DIALETIZANDO A TELEDRAMATURGIA ...18

1.1 GÊNERO DE ORIGEM DA NOVELA BRASILEIRA...18

1.2 A VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS DA TV GLOBO...26

1.3 O PÚBLICO, ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A COISA REPRESENTADA ...31

2 QUE ÉPICO SOU EU?: UMA QUESTÃO DE GÊNEROS...35

2.1 A TRAMA PRINCIPAL....36

2.2 ELEMENTOS ÉPICOS....49

3 QUE REI SOU EU?: ENTRE CONTEXTO REAL E FICCIONAL...62

3.1 EUFORIA, ESPERANÇA E DESÂNIMO: A CONJUNTURA DOS ANOS 80...62

3.2 QUE REI SOU EU? EM DOIS BRASIS...73

4 TEATRALIZAÇÃO DO PODER E PODER DA TEATRALIZAÇÃO...83

4.1 TEATRALIZAÇÃO DA POLÍTICA....83

4.2 A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE DILSON FUNARO...94

4.3 CONSCIENTIZAÇÃO SOCIAL E VIOLÊNCIA EM QUE REI SOU EU?...106

4.4 AS ELEIÇÕES DE 1989 E A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA...119

4.5 POLITIZAÇÃO DO TEATRO: CONSEQUÊNCIAS DO MUNDO REAL...128

CONSIDERAÇÕES FINAIS...137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...141

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INTRODUÇÃO

A Rede Globo de Televisão exibiu, entre 13 de fevereiro e 16 de setembro de 1989, na tradicional faixa diária das 19 horas destinada às produções dramatúrgicas, a novela Que rei sou eu?.2 Escrita por Cassiano Gabus Mendes e dirigida por Jorge Fernando, Fábio Sabag e Mário Márcio Bandarra, Que rei sou eu? estendeu-se por 185 capítulos e foi reexibida dois meses depois em versão compacta de 70 capítulos, entre outubro e dezembro, em horário vespertino.3 A trama desenrola-se no fictício Reino de Avilan, situado na Europa entre os anos de 1786 e 1789, às vésperas da Revolução Francesa, cuja efeméride do bicentenário era festejada naquele ano de 1989. Avilan – com personagens, figurinos e cenários que caracterizavam as estruturas sociais e políticas do Ancién Regime - constituía a alegoria do Brasil contemporâneo, de modo que a distância entre significante e significado, normalmente próxima na teledramaturgia brasileira, alargou-se.

2 Optou-se pela palavra “novela” devido ao seu sentido usual no

Brasil, ao contrário dos países hispânicos, em que se utiliza

“telenovela” como sinônimo de obra dramatúrgica para a televisão,

diferenciando-se do gênero literário novela. .”

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Em julho de 2012, durante a reprise da novela no Canal Viva4, escrevi ensaio intitulado “A originalidade de Que rei sou eu?”. Nele, ressalto que se trata de uma obra singular na história das novelas brasileiras:

Que rei sou eu? é singular não só porque inverte a equação das telenovelas, tornando secundárias as características do melodrama tradicional –, mas também e sobretudo porque, ao mesmo tempo que põe uma lupa sobre o contexto, é uma sátira alegórica: com o efeito crítico devastador de que só o humor é capaz, fala de um país (o Brasil de 1989 e, por que não?, o de hoje também) por meio de outro – um reino situado na Europa às vésperas da Revolução Francesa, cujos acontecimentos serviram-lhe de simulacro. Outras telenovelas, como Roque Santeiro, fizeram sátira alegórica; mas havia proximidade entre o universo representante e o universo representado, como na Asa Branca da Viúva Porcina e do Sinhozinho Malta, uma alegoria das crenças e dos tipos do Brasil profundo. Que rei sou eu? une dois universos distantes: um

4 Trata-se de canal por cabo que pertence às Organizações Globo.

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país latino-americano de fins do século 20 e um europeu do século 18. (FILIPPO, 2012, s/p)

Ao escolher como espaço cênico um reino europeu carcomido em sua estrutura social, com personagens e situações cômicas e satíricas, Que rei sou eu? buscou realçar problemas estruturais históricos e conjunturais da sociedade brasileira do fim da década de 1980: miséria, corrupção, incompetência dos poderes públicos, desigualdade social, hiperinflação, insensibilidade da elite governante, manipulação das massas, dívida externa, recorrência ao Fundo Monetário Internacional, inquietação internacional com o desmatamento da Amazônia. Esses elementos fazem de Que rei sou eu? uma produção totalmente original na história da novela brasileira. Na criação de Cassiano Gabus Mendes, uma das características da teledramaturgia está em plano secundário: a ênfase no sentimentalismo individual das personagens (CAMPEDELLI, 2001; TÁVOLA, 1996; ALENCAR, 2007; PALOTTINI, 1998) dá lugar à conscientização política das mazelas do país e à luta por mudanças revolucionárias.

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No ensaio supracitado, elenquei algumas dessas transposições:

E, para deixar mais explícita a representação alegórica, Cassiano Gabus Mendes recorreu a notícias que saíam nos jornais naqueles meses de vinte e três anos atrás – permitindo ao público a aproximação imediata entre Brasil e Avilan que hoje, àqueles que não viveram o período ou não se lembram dele, pode parecer sutil, quiçá imperceptível à nova geração, à medida que os fatos vão-se amarelando junto com os jornais que os fizeram conhecidos.

Como os planos econômicos que, no país pré-Real, cortavam os zeros da moeda como que querendo cortar os dígitos da inflação. Por isso, a moeda

de Avilan, o “ducato”, em seus

primeiros capítulos, perde três zeros e

vira “duca” – mudança quase simultânea à que, no Brasil, o Plano Verão de Maílson da Nóbrega eliminou três zeros do Cruzado e o transformou no Cruzado Novo, em janeiro de 1989. Das paradas de sucesso, Avilan importou do Brasil a lambada, gênero tropical, predecessor do axé, que fez a corte trocar o tradicional minueto pelos seus requebros abaixo da linha do equador da cintura.

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conselheiros da rainha, aconselhando-os a adotar o esporte no reino porque, além de distrair o povo como ópio, dava prestígio aos presidentes das federações e aos demais cartolas, que poderiam lucrar com a venda de jogadores! Para mostrar como estes se vestiam e faziam com a bola, Roberto Dinamite, ainda em atividade como atleta, entra em cena com a camisa da seleção brasileira que ostentava três estrelas, a última conquistada em

1970. “Esta camisa não ganha nada há muito tempo”, diz Charles Miller, quer

dizer, Luiz Gustavo. Bem, se o conselho pode continuar válido, as estrelas em nossa camisa já somam cinco (FILIPPO, 2012, s/p)

Esse entrelaçamento entre ficção e realidade gerou tensão no mundo real, sobretudo porque a exibição da novela coincidiu com um marco democrático do ano de 1989: a primeira eleição para presidente desde 1960, depois do ciclo militar implantado pelo Golpe de 19645.

Os conceitos de “politização da arte” e “estetização da política”, cunhados por Walter Benjamin (2014) são usados como referencial teórico para explicar o pendor – e o temor - à esquerda e à direita da novela, conforme sua apropriação por grupos sociais diversos da sociedade brasileira. A politização da estética, com discurso de apelo à luta popular por melhores condições de vida e pela conscientização da população sobre as mazelas do país, dialeticamente contribuiu para

5 Sobre este período histórico, cf. MODIANO (1992), VIEIRA (2000)

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estetização da política, à proporção que as características de uma das principais personagens da novela passaram a ser consideradas, no universo real, análogas às de um dos candidatos à Presidência da República do Brasil, com poder de sugestionar os eleitores, subtraindo-lhes a consciência política.

Maria Helena Weber, em ensaio publicado meses após o término de Que rei sou eu?, associou a novela a outras duas obras exibidas pela TV Globo no fim dos anos 1980, Vale Tudo e O Salvador da Pátria, do que resultou uma trilogia que a autora classifica de "Pedagogia da Despolitização", com o propósito deliberado de representar a política como esfera essencialmente corrupta e degenerada, de modo que sua legitimidade para transformar a realidade brasileira - e portanto a própria política - fosse questionada pelo público (WEBER, 2000). Degenerada e sem legitimidade, a política brasileira retratada por essas três novelas – sendo Que rei sou eu? a última - necessitaria de um herói que a saneasse. A autora assume a postura de que houve uma ação deliberada da Rede Globo para, em suas novelas, influenciar as eleições de 1989:

Essa telenovela encerraria, durante o período eleitoral, a trilogia pedagógica que prepararia os cidadãos brasileiros para o (des)entendimento sobre política e políticos e para o exercício do voto dirigido ao candidato que melhor propusesse soluções para salvar o País, preferencialmente, sem a insossa política e os desacreditados partidos, e fosse portador de juventude e de boas doses de imprevisibilidade. (WEBER, 2000, p. 87)

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A distribuição dos capítulos da dissertação obedece à amplitude temática de seu escopo. No primeiro capítulo, intitulado “Gêneros Literários e Telenovela”, deslindam-se as características dos gêneros épico, lírico e dramático e como estes se relacionam com a novela. Que rei sou eu?, pela ênfase secundária no aspecto individual das personagens e pela mistura entre ficção e realidade expressa por meio da sátira alegórica, representou, para o gênero telenovela, a introdução de elementos singulares à estilística da teledramaturgia brasileira, como a narrativa épica nos moldes brechtianos, narrar a saga do povo de Avilan pelas transformações sociais, tendo como pano de fundo a disputa pela sucessão do trono real. A predominância do drama e da lírica na indústria cultural não ergueu barreiras à aproximação com o épico. Bem ao contrário, Walter Benjamin observou que há uma forma comum entre o teatro épico e os meios de comunicação mais desenvolvidos à época, o rádio e o cinema. No ensaio O que é o teatro épico?, Benjamin afirma que, neles, assim como na poesia épica, há autonomia das partes, que podem ser lidas ou vistas e ouvidas separadamente, já que têm valor episódico.

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necessário para o rádio, cujo público liga e desliga a cada momento, arbitrariamente, seus alto-falantes. O teatro épico faz o mesmo com o palco. [...] não haverá nada de surpreendente na exigência feita por Brecht a um ator de representar de tal maneira a cena escolhida da perna de pau, pelo mendigo, em Dreigroschenoper (Ópera dos três vinténs), que “só por causa

desse número as pessoas decidam voltar ao teatro, no momento em que a cena é representada.” (BENJAMIN, 1985, p. 83)

Assim, Walter Benjamin vê que a forma épica, a par de seu conteúdo, aplica-se ao conceito de politização da arte, segundo o qual a reprodução, ao permitir a cópia do original, aproxima a arte das massas, tornando mais clara sua nova função sociopolítica. Porém, isso é uma possibilidade que depende da intenção do autor. O teatro, que das artes é a que menos se presta à reprodução, pode politizar a estética apropriando-se de produtos culturais gerados pela reprodução, mesmo que esses produtos sirvam quase sempre ao reverso da politização: à estetização da política, de que a supremacia dos gêneros lírico e dramático é tanto causa como consequência.

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leitura que Walter Benjamin faz do teatro de Bertolt Brecht - as principais características da trama.

Ainda no primeiro capítulo, abordam-se as características dramatúrgicas das telenovelas brasileiras, suas primeiras produções, em busca de uma linguagem própria. Este trajeto é percorrido até o momento em a telenovela passou a receber a qualificação de brasilidade para caraterizar seu estilo temático e sua produção industrial.

Com isso, o que se pretende é entender a originalidade de Que rei sou eu? no panorama da teledramaturgia nacional – tema do segundo capítulo, que lhe ressalta a singularidade no que toca à integração, na estrutura dramática, de características épicas.

Como não se pode compreender nem a obra, nem a tensão que ela provocou no mundo real, sem entender o contexto histórico em que ela foi exibida, o terceiro capítulo faz uma síntese do Brasil de 1989, um país que passava por grandes mudanças históricas, tendo por fonte não só a bibliografia acadêmica, mas também material jornalístico que, por sua lógica imediatista, captou com mais precisão o redemoinho de alegria e tristeza que devastou a sociedade brasileira. O capítulo tenta, também, deslindar a articulação entre o real e o ficcional na constituição da verossimilhança das novelas, bem como a absorção da realidade brasileira pelo universo distante da Europa pré-revolucionária.

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de marketing político, potencializou a estetização da política.

Espero que o presente trabalho sirva de contribuição ao estudo da relação entre política e novela, bem como esclareça os pontos de contato e ruptura entre a dramática aristotélica e a dramática épica na teledramaturgia.

1 QUE GÊNERO SOU EU?:DIALETIZANDO A TELEDRAMATURGIA

Este capítulo aborda a taxionomia tradicional dos gêneros literários e o modo como a industrial cultural do século XX apropriou-se-lhes, revestindo-os de novas formas de manifestações artísticas tais como a absorção do texto dramático por rádio, televisão e cinema, de que a teledramaturgia é um dos formatos mais difundidos no Brasil. Amplificado em seu alcance pelos meios tecnológicos, o gênero dramático, adotando a perspectiva aristotélica, massificou-se através das novelas. Paradoxalmente, ao alcançar a maioria da população, parece ter-se despolitizado. Mas, como antítese à sua despolitização, dialeticamente parece ter gerado também outras formas de pensar a transformação da realidade social e política por meio da arte.

1.1 GÊNERO E ORIGENS DA NOVELA BRASILEIRA

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televisão estaria depois – ou seja, na sala estar dos lares brasileiros. Programas de auditório, noticiários jornalísticos, atrações de humor, show de astros da música brasileira e teledramaturgia. Com esses pilares a sustentar a grade de programação, em pouco tempo a telenovela diária afirmou a supremacia do gênero na indústria cultural. E, paulatinamente, encontrou na Rede Globo de Televisão a emissora que lhe daria o rótulo de qualidade de excelência internacional.

Há dois eixos originários da teledramaturgia, ambos intrinsecamente ligados ao desenvolvimento das radionovelas. O norte-americano, que nos anos 30 inaugurou o gênero, mostra histórias se prolongam indefinidamente, sem enredo com começo, meio e fim, e giram em torno de famílias, ambientes, comunidades ou cidades. Há também o cubano, que influenciou os países latino-americanos. (ALENCAR, 2004). As duas matrizes têm suas estruturas edificadas sobre a subjetividade das personagens.

A teledramaturgia americana ficou conhecida como soap opera. O exemplo mais nítido desse formato são os seriados, muitos dos quais transmitidos no Brasil desde os anos 70 e hoje, com a televisão por cabo e a venda em DVDs, cada vez mais acessíveis aos brasileiros.6 Já as novelas eletrônicas latino-americanas extruturaram-se na matriz cubana. Ao que, no Brasil, articulou-e à influência do folhetim, cuja origem remonta à França da primeira metade do XIX. Os romances folhetinescos eram publicados em capítulos nos jornais e nas revistas:

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Gravitando em torno das classes humildes ou marginais, o que atendia às expectativas românticas de popularização da arte, a narrativa em folhetim caracteriza-se pelo desfilar quilométrico de episódios emaranhadamente convencionais e por um sentimentalismo piegas, melodramático. Com tais ingredientes, ao mesmo tempo que prolongava a voga das novelas bucólicas e sentimentais da Renascença e do fim da idade Média, alimentava a imaginação de leitores menos exigentes, assim cumprindo uma função que hoje é desempenhada pelas novelas de televisão e pelos filmes de cow-boy e de aventuras policiais. (MOISÉS, 2004, p. 90)

Nesse período inicial do gênero no Brasil, a influência cubana é notória. Uma das primeiras radionovelas foi Em busca da felicidade, transmitida pela Rádio Nacional em 1941, uma adaptação do original cubano escrita por Leandro Blanco. E o maior fenômeno de audiência aconteceu em 1951, com O Direito de Nascer, adaptação de El Derecho de Nacer, escrita por Félix Caignet e transmitida pela Rádio Havana em 1948. Transposto para as telas em 1964 pela TV Tupi, O Direito de Nascer foi, também, o primeiro grande fenômeno de audiência da televisão brasileira. (ALENCAR, 2004)

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A telenovela de modelo brasileiro, talvez latino-americano, é uma história contada por meio de imagens televisivas, com diálogo e ação, uma trama principal e muitas subtramas que se desenvolvem, se complicam e se resolvem no decurso da apresentação. Naturalmente, a trama planejada como principal é a que leva o enredo básico, a fábula mais importante, do começo ao fim da ação, e a que justifica todo o projeto, dando-lhe unidade.

Consequentemente, a telenovela se baseia em diversos grupos de personagens e lugares de ação – são os sets, vistos hoje em dia como verdadeiros núcleos de famílias ou grupos humanos; esses vários grupos de personagens se relacionam internamente, e um grupo com outro ou outros. Os problemas dos protagonistas, é claro, assumem a primazia no enredo e conduzem a trama. (PALLOTTINI, 2012, p. 48-49, grifo nosso)

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É possível observar na estrutura melodramática a presença de mecanismos que visam a mimese (identificação) e a catarse. Tais elementos estão evidentes, também, na telenovela, enquanto representante atual do gênero. [...] Tais considerações acerca da finalidade do melodrama constituem a base da tragédia grega clássica, proposta por Aristóteles, ou seja: a identificação (mimese) e a purificação das emoções suscitadas por ela (catarse). Segundo Aristóteles (s/d), para atingir o seu público, a tragédia deve despertar, através da mimese, uma purgação emocional - a catarse, provocada por uma identificação com o que está sendo representado. (SILVA e BRAGA, 2005, s/p)

A aproximação entre a visão aristotélica e a estrutura dramática das novelas também foi realçada por Renata Pallotini:

A telenovela conservou, ao longo dos tempos, uma concepção subjetiva da personagem que, em geral, ignora as influências de caráter econômico e social, e adota, pelo menos para seus protagonistas, uma visão predominantemente aristotélica. (PALOTTINI, 2012, p. 50)

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ser desenvolvida ao longo deste capítulo, e ao contrário do que sustenta Pallotini, obras de teledramaturgia não estão totalmente alheias à situação social, política e econômica. E essas, por sua vez, não se encontram totalmente apartadas do enfoque comportamental e psicológico das personagens.

A divisão entre poesia lírica, poesia épica e poesia dramática encontrou na Poética, de Aristóteles, uma das mais importantes tentativas de sistematização. De maneira sintética, por épico, em seu sentido aristotélico, entende-se o texto em prosa em que se narram os feitos históricos de povos e heróis; é de tamanho extenso, com o verbo no passado pretérito, e a voz do narrador está na terceira pessoa. Difere-se da Lírica, que é a expressão dos sentimentos subjetivos dos indivíduos, de tamanho menor, na primeira pessoa, e suas características temporais transmitem a ideia de presente contínuo; e da Dramática, representação dialógica que se dá mediante o desenvolvimento contínuo da fábula num crescente de tensão até o desenlace; nela, o narrador é substituído pelos personagens em ação. Logo, seu tempo de ação é o presente - mas não o presente contínuo da Lírica, e sim o presente imediato da representação que se esvai na medida do desenrolar da história. (STAIGER,1975).

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Mas a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia (chega até a servir-se do metro épico), e demais, o que não é pouco, música e espetáculo cênico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência representativa, quer na leitura, que na cena; e também a vantagem que resulta de, adentro de mais breves limites, perfeitamente realizar a imitação; além disso a imitação dos épicos é menos unitária (demonstra-o a possibilidade de extrair tragédias de qualquer epopeia) e, portanto, se pretendessem eles compor uma epopeia sobre uma única fábula trágica, se quisessem ser concisos, mesquinho resultaria o poema, se quisessem conformar-se às dimensões épicas, resultaria prolixo. (ARISTÓTELES, 1991, p. 70)

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Como apropriada pela indústria cultural, ela deslocou o público do teatro para a sala de estar das residências: bastava ligar o rádio, de início, para acompanhar as radionovelas; e, alguns anos depois, ligar a televisão para assistir as soap operas7.

No Brasil, a novela passou a protagonizar os gêneros em cujas obras a relação dialógica estabelecida entre os personagens das fábulas foi transposta para os aparelhos receptores de sons e de imagens. Embora tenha sido o cinema, também arte dramática e dialógica, que originalmente provocou esse deslocamento (Benjamin, 2013), ao contrário do rádio e da televisão, o cinema empurra o público para fora de casa. Se o faz com tanto sucesso há mais de cem anos, é porque a projeção da imagem em sala escura materializa a cena e envolve a platéia em efeito mágico inigualável. Mas, a novidade do rádio que teve continuidade na televisão é a de que não se precisaria, doravante, frequentar a sala teatral como o recinto único onde se vê o drama desenrolar-se à frente, com os atores em ação.

Além disso, entre o público e a cena havia, agora, intermediários eletrônicos.8

7

Literalmente, “ópera de sabão”, porque de início, nos Estados Unidos, as obras radiofônicas eram patrocinados pelas fábricas de sabão. Com o tempo, passou a designar um formato de dramaturgia de rádio e televisão.

8 Foi o cinema, também arte dramática e dialógica, que

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1.2 A VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS DA TV GLOBO

Da chegada da televisão ao Brasil em 1950, no auge da Era do Rádio9, à primeira telenovela diária, passaram-se 13 anos, até que 2-5499 Ocupado fosse veiculada pela TV Excelsior, em 1963. Ao longo da década de 50, a dramaturgia inseria-se na programação das emissoras por meio de teleteatro ou de histórias curtas, de poucos capítulos, veiculados em alguns dias na semana. Assim como O Direito de Nascer, 2-5499 Ocupado era adaptação de original estrangeiro: 0597 da Ocupado, do argentino Alberto Migré. (ALENCAR, 2004)

Quando a TV Globo foi inaugurada, em 26 de abril de 1965, Tupi e Excelsior10 lideravam a produção

9 Denomina-se Era do Rádio o período que abrange as décadas de

40 e 50, quando o rádio torna-se o principal meio de comunicação de massa do país. Embora as primeiras emissoras do Brasil datem de 1923, foi só a partir do início da década de 30, quando um decreto de Getúlio Vargas permitiu às emissoras veicular anúncios comerciais, que o rádio passou a penetrar amplamente nas camadas populares, mudando-lhe radicalmente o perfil educativo-elitista que o caracterizava até então – o qual era preconizado pelo pioneiro da radiodifusão no Brasil, Edgar Roquete Pinto. Com as verbas publicitárias e o aumento do número de aparelho nas residências, as emissoras puderam investir em conteúdo artístico, contratando uma plêiade de músicos, cantores, compositores, jornalistas, dramaturgos e comunicadores. Para o descontentamento de Roquete Pinto, as transmissões de óperas, conferências de cientistas, professores e execução de música clássica deram lugar aos programas de auditório, à música popular e às radionovelas. Cf. CALABRE (2002)

10 Primeira emissora de televisão brasileira, a Tupi saiu do ar em

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teledramatúrgica. Num período de pouco mais de um lustro, a emissora carioca deu um passo decisivo para suplantar a concorrência – não sem antes espelhar-se em dois grandes sucessos da Tupi para dar uma guinada estética em suas produções, rumo à liderança. Em outubro de 1976, segundo reportagem de capa da revista Veja intitulada “TV Globo – A Hollywood Brasileira”, os dez programas mais vistos na televisão brasileira foram transmitidos pela Globo. Sobre suas novelas, escreve a revista:

A Globo não inventou a telenovela. De seus estúdios, porém, partiu a contribuição decisiva para sua transformação em um gênero paracinematográfico, de dimensões hollywoodianas, mas tipicamente brasileiro na linguagem, na temática e no alucinado ritmo de produção. (VEJA, 06/10/76, p. 82)

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histórias tinham por inspiração obras consagradas da literatura universal.

Em tempos de transmissões limitadas, ainda sem alcance de âmbito nacional, Ivani Ribeiro dominava a audiência em São Paulo, enquanto no Rio a TV Globo usava personagens excêntricos ambientados em paisagens distantes, em tramas baseadas em obras do século anterior, como O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, transformada na já citada Eu compro Essa Mulher, com Carlos Alberto, Yoná Magalhães, Cláudio Marzo, Ziembinski e Leila Diniz.

O Sheik de Agadir, por exemplo, é inspirada em Taras Bulba, romance de Nikolai Gogol. Nesse histórico texto de 1966, Glória Magadan inseriu um mistério, o do personagem Rato, que com luvas pretas enforcava agentes nazistas, deixando sobre o corpo uma tarântula também negra, e que só no final tem sua identidade revelada. (ALENCAR, 2004, p. 22)

Esse recorte temporal, entre 1966 e 1970, começa com Eu Compro está Mulher, primeiro folhetim exótico e primeiro grande sucesso da emissora, a ponto de fazê-la alcançar o primeiro lugar em audiência no Rio de Janeiro no horário das 21h30m.11 E termina com A

11 No entanto, não foi sua primeira novela: antes, a Globo produzira,

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Cabana do Pai Tomás, exibida até março de 1970 – e cujo fracasso de audiência contribuiu decisivamente para a mudança estética de suas telenovelas.

Entre as autoras desse período, sobressai o nome de Glória Magadan. Cubana que migrou para o Brasil depois da Revolução de 1959 após passar por Porto Rico e Venezuela, Magadan chegou à TV Globo em dezembro de 1965, na qual chegou a ocupar o cargo de diretora de dramaturgia. Seu prestígio ficou abalado depois da baixa audiência de A Cabana do Pai Tomás, o que levou ao seu desligamento da emissora. Era dela a decisão de que as produções teriam de ser distantes da realidade brasileira. Em primeiro momento, a estratégia conquistou audiência, o que se atesta pelo sucesso de Eu Compro esta Mulher; mas já ao fim da década de 60 não satisfazia o público, que se vinha acostumando a novas maneiras de retratar a sociedade brasileira em produções audiovisuais:

Em 1968, Antônio Maria e Beto Rockfeller, da TV Tupi, abriram caminho para a renovação da telenovela brasileira. Traziam o cotidiano dos brasileiros para a tela da TV com diálogos mais verossímeis e uma direção de câmera mais ágil e despojada.

As duas novelas fizeram grande sucesso e alertaram os produtores brasileiros para o fato de que o público talvez já estivesse cansado de sheikes, duques e duquesas, de toda a distância espaço-temporal do dia-a-dia do telespectador que caracterizava a

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telenovela até então. Ambas irão buscar inspiração nas realidades multifacetadas das diversas regiões do país e darão início ao processo de desenvolvimento do gênero.

Beto Rockfeller trazia uma série de novos elementos que se apresentavam na realidade cultural do momento, o final dos anos 60. O Cinema Novo buscava maior aproximação com o

público. O filme “Macunaíma” recorre

ao herói sem nenhum caráter em uma produção que abandona posturas mais

“intelectualizadas”, colocando no lugar

uma colorida diversão. Outros filmes se aproximam da Jovem Guarda, como

“Roberto Carlos em Ritmo de

Aventura”. Surge o anti-herói como

protagonista, como no caso de “O Bandido da Luz Vermelha”, que circula

por uma São Paulo degradada e atravessada pelos meios de comunicação. (ALENCAR, 2004, p. 51)

Antônio Maria e Beto Rockfeller romperam não somente com o folhetim exótico, que a Tupi também fazia por vezes12 – mas também com o tom pegajoso, piegas das histórias românticas que o melodrama exacerbava ao nível mesmo do dramalhão, o que

12 Vejam-se alguns exemplos: em 1964, a TV Tupi levou ao ar A

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impunha aos atores um jeito artificial de interpretar.13 Ao demitir Glória Magadan, a Rede Globo bateu a claquete para que suas produções retratassem personagens e histórias próximas do público. Já na virada para os anos 70, Véu de Noiva, Pigmalião 70 e Verão Vermelho demonstravam que a verossimilhança, nesse momento, estreitava a relação espaço-tempo.

Em meados dos anos 70, a Globo - que já conquistara a hegemonia da audiência - inaugurou, no horário das 18 horas, o que se convencionou chamar de “novela de época”. Embora se passassem em período histórico distante – em geral século XIX e início do XX –, essas novelas não se enquadram no folhetim exótico: ao retratar a realidade brasileira e adaptar clássicos da literatura nacional, elas levavam para a tela histórias e personagem com o qual o público, de alguma forma, identificava-se. Os protagonistas despiam-se da excentricidade e encarnavam tipos populares em sua práxis simples e facilmente reconhecível: Nando, de Pigmalião 70, rapaz jovem que trabalha com a mão como feirante; Beto Rockfeller, vendedor de loja de sapatos que, na malandragem, consegue frequentar as altas rodas; e Antônio Maria, que empresta nome à novela, motorista particular que se emprega na casa do dono de supermercado.

1.3 O PÚBLICO, ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A COISA OBSERVADA

O Brasil se reconhece nas telas. O sucesso das telenovelas com temática próxima da realidade brasileira

13 Sobre a importância e a permanência do melodrama, ver análise

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gera identificação entre o público e a obra. Como signo da indústria cultural, a novela revela um conjunto de valores expressos por recursos literários, sonoros e visuais que são assimilados pela sociedade brasileira como universo que lhe é próximo. Essa identificação não é só consequência da obra, mas também requisito primordial para a sua eficácia mimética, que exige do telespectador uma capacidade cognitiva de processar o que vê e identificar-se como pertencente à realidade mimetizada. Assim, a figura do telespectador passivo, sentado à frente da tela e absorvendo acrítica e pavlovianamente o que se lhe impõe, embora se tenha tornado lugar-comum para pensar a influência da televisão, é reducionista e insuficiente para explicar esse processo. Segundo Bucci, o telespectador torna-se um agente ativo na relação entre público e televisão:

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necessários para integrar expectativas diversas e dispersas, os desejos e as insatisfações difusas, consegue incorporar novidades que se apresentem originalmente fora do espaço que ela ocupa e, em sua dinâmica, vai dando os contornos do grande conjunto, com um tratamento universalizante das tensões. (BUCCI, 1997, p.12)

Bucci refere-se à produção televisiva de modo geral. No caso das telenovelas, a eficácia do ativamento das “expectativas diversas e dispersas” e dos “desejos e as insatisfações difusas” depende da forma como os autores trabalham a realidade brasileira. Na perspectiva aristotélica, tanto mais eficaz será a identificação do público quanto se realçarem os conflitos individuais. Não significa que o foco na subjetividade das personagens elimine abordagem da estrutura social dentro da qual a fábula se desenrola. Há uma conformação das duas esferas, com preeminência da subjetividade na estrutura dramática, de modo que a materialidade das personagens – todo o sistema de signos que a caracteriza: o gestual, o figurino, a maneira de falar etc. - constrói-se também pela influência do meio.

Assim, a tão decantada alienação que as novelas provocam, em razão da sublimação ou negação dos conflitos sociais, políticos e econômicos, carece de análise mais sofisticada. Não só eles estão presentes como exercem papel importante na ativação dos mecanismos que permitem a proximidade entre obra e público.

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latino-americanos, Jesús Martin-Barbeiro chega à conclusão de que as novelas e outros gêneros perscrutam-lhe a subjetividade:

Em forma de tango ou telenovela, de cinema mexicano ou reportagem policial, o melodrama explora nestas terras um profundo filão de nosso imaginário coletivo, e não existe acesso à memória histórica nem projeção possível sobre o futuro que não passe pelo imaginário. De que filão se trata? Daquele em que se faz visível a matriz cultural que alimenta o reconhecimento popular na cultura de massa. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 316)

Esse imaginário melodramático nos países da América Latina constrói-se, num processo que começa na primeira metade do século XX. Nesse período, se pode observar uma espécie de descompasso entre Estado e Nação, devido a que o papel do Estado na construção da Nação – ou seja, na edificação de uma identidade comum em meio a tantas diferenças regionais e sociais – teve caráter modernizante. Dessa particular modernização resultou a formação de massa urbano-industrial cujo desenvolvimento caminhou pari passu ao dos meios de comunicação de massa. Desse modo, rádio, cinema e televisão atuaram como instâncias mediadoras entre a população e o Estado. Desse modo, eles absorveram, na dramaturgia, os conflitos que se sublimavam na vida política nacional:

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desconhecimento de uma identidade e a luta contra as injustiças, as aparências, contra tudo o que se oculta e se disfarça: uma luta por se fazer reconhecer. Não estará aí a secreta conexão entre o melodrama e a história deste subcontinente? (...) Seria então sem sentido indagarmos até que ponto o sucesso do melodrama nesses países testemunha o fracasso de certas instituições políticas que se desenvolveram desconhecendo o peso dessa outra sociabilidade, incapazes de assumir sua densidade cultural? (MARTIN-BABERO, 2003, p. 317)

A busca pelo reconhecimento está presente de maneira forte nas histórias criadas pelos dramaturgos brasileiros: por meio de lugares, situações e personagens. Toda a ficção teledramatúrgica é, nesse sentido, uma alegoria do Brasil. Desde o fim dos anos 60, as telenovelas da Rede Globo encurtaram a distância entre a representação e a coisa representada.

2 QUE ÉPICO SOU EU?: UMA QUESTÃO DE GÊNEROS

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aos diálogos fulcrais, de modo que a própria trama se mostra, ela própria, um elemento singular.

2.1 A TRAMA PRINCIPAL

Qual foi a novela mais revolucionária de todos os tempos?

É difícil, mas teve uma novela que fez a cabeça de muita gente e que pessoas de várias gerações lembram com muito

carinho: “Que Rei Sou Eu?. Não

sei se foi revolucionária, mas certamente é única na história. Uma comédia, uma novela de época, mas que ao mesmo tempo trazia as questões sociais do país, numa comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa.”

Edson Celulari 14

Um adônis de 25 anos assombra o pequeno reino europeu em fins do século XVIII: o filho bastardo do Rei Petrus II, fruto do relacionamento com uma humilde plebeia. Em cena de flashback, convalescendo no leito em que acabara de dar à luz, Maria Frommet, camponesa que contava quinze anos de idade, ouve de Petrus II que eles jamais se verão novamente, posto que as condições sociais radicalmente opostas e as intrigas

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que já começavam a tomar conta da corte sobre suas aventuras extraconjugais impelem-no, por prudência, a evitar correr riscos. A situação aflitiva a ambos não impregna o diálogo de mágoas e rancor: eles mantêm uma conversa amorosa, e a condescendência dela com a situação é proporcional ao reconhecimento dele ao filho e ao sentimento que nutre pela amante.

Rei Petrus II

Meu filho homem; ele é lindo, Maria! Maria Frommet

Meu Deus! Rei Petrus II

Eu quisera fazer alguma coisa por ele. Maria Frommet

É impossível, meu rei. Ele será perseguido: não é filho legítimo.

Rei Petrus II

É, eu sei. Na corte só se fala de meu caso com uma camponesa. (Pausa) Maria, é com pesar, mas eu preciso me separar de você. (Pausa longa) É com o coração cheio de profunda dor

que digo: “Não poderei vê-la; nem a você, nem ao menino.” Mas quero que

você se case e seja feliz. Maria Frommet

Eu entendo, majestade; eu sempre soube que seria impossível.

Rei Petrus II

Maria Frommet,ouça bem o que vou dizer: depois de minha morte,

este menino poderá subir ao trono de Avilan.

Maria Frommet

(48)

Não depois que eu deixar de existir. Está vendo este anel? Ele tem um brasão.

Com ele, você poderá provar que é mãe de meu filho. (Pausa) Quando for preciso.

E este outro eu peço que você coloque na mão do menino, assim que ele possa raciocinar como um homem. Os dois anéis são iguais, idênticos,

e só vocês dois os possuem. Entendeu bem?

Maria Frommet

Entendi, majestade. Um anel guardarei comigo; o outro, darei a meu filho. Rei Petrus II

Eu deixei dinheiro suficiente para que você possa construir uma vida nova. Cuide bem de meu filho, Maria. Ele é meu único herdeiro.

Maria Frommet Sim, meu rei. Rei Petrus II

Este segredo deverá ficar entre nós dois somente. Ninguém poderá saber. E nem será revelado antes de minha morte. Mas não se esqueça disso: só depois de minha morte.

Eles matarão o menino se souberem disso antes de minha morte. Entendeu?

Maria Frommet

Entendi, majestade. É um segredo que guardarei pra sempre.

Rei Petrus II

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O anel é lindo, majestade! Rei Petrus II

(Enfático) Não poderá ser usado antes de minha morte! Não se esqueça disso!

Maria Frommet Não esquecerei. Rei Petrus II

(Indo em direção à porta) Maria, minha doce Maria, eu gostaria tanto que você fosse a Rainha de Avilan. Mas é um sonho impossível.

Saiba, minha querida, que eu a amei muito,

jamais esquecerei os momentos que passamos, meu grande amor.

Maria Frommet Não vá!

Rei Petrus II

É preciso. (Virando-se para a parteira, e indo embora depois) Cuide bem dela. Parteira

Cuidarei.15

Petrus II e Maria Frommet não mais se viram, e nos vinte e cinco anos seguintes o rei guardou o segredo. Em 1786, ao leito em seus derradeiros momentos, Petrus II sussurra uma revelação a Mestre Ravengar, o temido e maquiavélico bruxo da corte: “Vocês terão uma grande surpresa”.

Na abertura o testamento do rei, enfim a surpresa é revelada. Cabe a Ravengar lê-lo em voz alta perante a Rainha Valentine e membros da corte, todos vestidos de preto em sinal de luto, condição que não os impede de, ao longo da leitura, interrompê-la com

15

(50)

rumorejos de torpor e indignação com o que estão a ouvir:

Que todos saibam que há 25 anos atrás, portanto em 1761, eu, Petrus II, amei loucamente uma camponesa. Uma jovem de 15 anos, linda como uma flor. Uma jovem de nome Maria Frommet. Maria Frommet era uma jovem do nosso povo, suave como a brisa matinal, morna como as tardes de outono, real como a terra em que trabalhava. Infelizmente, afastei-me dela por imposição das nossas condições. Mas essa menina, essa jovem, me fez o homem mais feliz do mundo por um curto espaço de tempo. Agora, chega o momento de se fazer justiça com essa moça. Saibam todos que, em 1761, Maria Frommet teve um filho. Um filho homem, meu único herdeiro varão. Avilan tem novo rei, meu povo! Meu filho com Maria Frommet – ele é o legítimo herdeiro do trono de Avilan! É preciso encontrá-lo. E que se coloque a coroa de Avilan sobre a cabeça de meu filho. Ele será Petrus III, o Rei de Avilan. 16

Escandalosamente, pois o testamento revela, para além da questão política da existência de um bastardo que deverá assumir a coroa, a condição social do reino. Avilan se mostra um território devastado pela miséria do povo e pela corrupção, incompetência e insensibilidade da classe governante.

16

(51)

O Conselho do Rei é formado por seis nobres responsáveis pela administração do reino. Cada conselheiro responde por uma pasta – o que, na linguagem política hodierna, equivale aos ministérios. Todos os conselheiros aproveitam-se do cargo público para enriquecer por meio de práticas ilícitas – exceto o Conselheiro da Moeda, que se preocupa com o povo e tenta, em vão, sanear as combalidas finanças do país.

Para eles, qualquer alteração no status quo ameaça-lhes os interesses escusos tanto quanto as veleidades de Valentine e Ravengar de assumir o poder do Avilan após a morte de Petrus II. Ao longo do tempo, descobre-se que, mesmo ancião e moribundo, ele teve a morte antecipada por um cálice envenenado que lhe fora dado a mando de Valentine. Antes de o trono ficar vago, Ravengar revela à sua assistente Fanny que o destino o aparou porque o rei, ao não gerar um homem herdeiro, possibilitou a subida de Valentine ao dono, após sua morte. Com isso, o poder do bruxo, cuja influência se fazia sentir nos passos da rainha, se faria ainda maior.

Fanny

Mestre, vossa excelência precisa descansar.

Ravengar

Petrus vai morrer. Fanny

O Rei?! Ravengar

Está velho, doente, vai morrer com certeza.

Fanny

Desculpa, mestre, mas é uma boa notícia.

(52)

Fanny

O senhor terá mais liberdade de ação. Ravengar

As coisas não são tão fáceis assim, não são simples.

Você sabe que a Rainha Valentine tem o espírito muito forte.

Fanny

Está nas suas mãos. Ravengar

As mulheres são imprevisíveis, Fanny. Fanny

Não para o senhor. A rainha seguirá todos os seus conselhos;

não conseguirá enfrentar todos os abutres da corte sozinha. O senhor sabe disso.

Ravengar

Petrus não tem herdeiros. Nesse ponto, o destino me aparou.

Fanny

Essa é a sorte. Ravengar

Isso veremos, Fanny, veremos. Fanny

Mestre, Ravengar é temido por todos. Ninguém irá enfrentá-lo.

Finalmente, o poder nas suas mãos, nas mãos mágicas de Ravengar.17

Mas, com a abertura do testamento surgiu esse filho herdeiro. Para evitar que o poder lhe escape, Ravengar elabora um plano secreto: já que o príncipe estava desaparecido, inventaria um filho bastardo e, coroando-o rei, faria dele seu títere.

17

(53)

Para tanto, não bastaria escolher para falso rei um jovem com grau razoável de consciência sobre a realidade social e política do reino. Em havendo isso, o bonifrate poderia almejar desprender-se das amarras e andar com as próprias pernas. O plano consiste em retirar dos sangradouros, das ruas sujas e miseráveis, um mendigo alienado de sua existência e, aos poucos, alfabetizando-o nas idiossincrasias da corte, metamorfoseá-lo em rei. À aflição de Valentine, com a pergunta sobre se já encontrara o bastardo, Ravengar expõe suas maquinações:

Rainha Valentine Encontrou o bastardo? Ravengar

Isto vai ser quase impossível, Majestade, a não ser que ele se apresente.

Rainha Velentine

Mas é exatamente isso que eu quero que aconteça. A Corte não pode conhecer esse miserável. Ele tem que morrer antes!

Ravengar

Eu tive um pensamento a respeito, Majestade.

Eu estou aqui para pedir sua permissão.

Rainha Valentine Fale, mestre... Ravengar

Eu pensei que seria muito mais proveitoso

se esse bastardo fosse apresentado por Vossa Majestade.

(54)

Mas você ficou maluco, Ravengar! Você está querendo que eu apresente esse bastardo à Corte?!

É uma loucura! Que ideia! Ravengar

Calma, majestade, calma! Deixe-me terminar.

Rainha Valentine Que loucura! Ravengar

Não seria o bastardo legítimo, majestade, mas um homem feito por mim,

que nos obedeceria cegamente. E mesmo se algum bastardo aparecesse com alguma prova, seria um impostor. Está atingindo meu pensamento, Majestade?

Rainha Valentine

Você quer dizer que você inventaria um príncipe herdeiro?

Ravengar Sim, Majestade. Rainha Valentine

Mas isso seria uma ameaça! Ravengar

Majestade, seria um homem que eu escolheria do meio do povo. Um homem que eu educaria como um príncipe. Um homem com a cabeça feita por mim.

Rainha Valentine

Mas mesmo assim... Seria uma ameaça.

Ravengar

(55)

E você escolheria esse homem no meio do povo?

Ravengar Sim, majestade. Rainha Valentine

E o educaria como se fosse um príncipe...

Ravengar

Exatamente, Majestade, até que subisse ao trono.

Rainha Valentine

Eu acho perigoso, eu acho que é arriscar demais.

Ravengar

Ele seria um boneco em nossas mãos. É melhor do que enfrentar o bastardo com direitos adquiridos.

Rainha Valentine Eu vou pensar...18

De início relutante, Valentine aquiesce. Assim, o mendigo Picheot, figura popular de Avilan, em cujos becos e vielas assomava à cata de esmolas e de almas caridosas que lhe dessem bebida, é capturado no meio da noite por Ravengar, transforma-se em Príncipe Lucien e, depois, em Rei Petrus III, o Rei de Avilan.

Em paralelo a isso, o legítimo herdeiro de Avilan, o filho bastardo, mostra todo seu inconformismo com a situação de miséria do povo e a corrupção dos nobres: muito antes de saber-se herdeiro, Jean Pierre lidera um grupo cada vez mais numeroso de rebeldes revolucionários que, praticando atos de violência, sequestro, ataque a soldados e armamentos da corte, pretende tomar o poder. Astuciosamente, os rebeldes

18

(56)

infiltram seus membros na corte, para passar-lhes informações valiosas.

Jean Pierre só toma ciência de sua condição quando Petrus II morre. Maria Frommet, não cumprindo a recomendação do rei de cuidar bem do menino, deixou-o para uma cigana criar. A cigana é Loulou Lion, a cafetina em cuja taberna os nobres da corte e outros abastados costumam divertir-se. Ela cuida de Jean-Pierre desde os quatro anos de idade. Sabe do segredo, que revela ao filho adotivo somente depois da morte de Petrus II. Porém, o detalhe do anel é esquecido, de modo que, na primeira parte da telenovela, não há maneira de comprovar que Jean Pierre pode ser Petrus III.

No entanto, à medida que o ex-mendigo vai adquirindo dotes de nobre, Maria Frommet, rebatizada de Lenore Gaillard e casada com um nobre de outro reino, reaparece em Avilan para realizar o sonho de ver seu filho coroado rei. Não se identifica como Maria Frommet - logo, mantém o segredo de que é mãe do futuro rei. Frequenta a corte e conhece o falso príncipe, que inicialmente acredita ser seu rebento, porém não lhe revela que é sua mãe. A desconfiança começa quando ela nota a ausência do anel no dedo dele. Faz diversas insinuações a Lucien sobre o objeto que comprovaria sua identidade de herdeiro; mas, como ele mostra desconhecê-lo, Maria Frommet passa a ter a certeza de que se trata de um farsante e começa a empreender a busca pelo filho de verdade. Ela é, portanto, a única que pode revelar o embuste de Mestre Ravengar e Rainha Valentine.

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imediatamente após ela revelar-lhe o segredo, há a junção dos ideais de nobreza às necessidades de transformação da realidade política, social e econômica de Avilan. Fala o personagem Jean Pierre:

Isso quer dizer que, um dia, eu poderei ser o Rei de Avilan! Mas o rei está morto. Então, agora, o rei sou eu?! Você sabe o que isso quer dizer? Que um dia eu poderei salvar este país! Que um dia eu poderei acabar com a miséria do povo! Que um dia eu poderei acabar com a fome, a doença, a injustiça. Sim, Loulou, o dia em que eu for coroado o Rei de Avilan!19

Assim, Jean Pierre, o verdadeiro Rei de Avilan, e Lucien Elan, o falso que acabou sentando no trono, acabam por transformar-se em protagonista e antagonista – numa contenda que somente será decidida no último capítulo, quando ambos se enfrentam em duelo de armas e de palavras:

Jean-Pierre

Você arrasou muitos povoados em Avilan, Pichot. Muita gente inocente morreu.

Lucien/Pichot

E hoje, quantos morreram aqui? Jean-Pierre

Não, isso não foi um massacre. Isso foi uma batalha. Onde você perdeu. Lucien/Pichot

Você quer a minha coroa, né, Jean Pierre?

19

(58)

Jean-Pierre Ela me pertence. Lucien/Pichot

Mas você não terá tempo de usá-la. Jean-Pierre

Eu soube que você matou friamente Messier François Gaillart. É verdade? Lucien/Pichot

Era um homem sem a menor importância.

Jean-Pierre

Não para mim. Era marido de minha mãe, Maria Frommet.

Lucien/Pichot

Ele falava muito alto. Me irritava. Jean-Pierre

Eu não sei como Julliet foi gostar de um tirano como você, Pichot!

Lucien/Pichot

Você usa muito esta palavra, Jean Pierre.

Só que quando se tem o poder nas mãos, é preciso pulso firme para não fraquejar.

Jean-Pierre

Só que você não provou isso. Você manteve aquele conselho corrupto, que arruinou o país!

Lucien/Pichot

Você é um sentimental, um piegas. E um piegas não pode governar um país. Jean-Pierre

Não, Pichot. Você que é um boneco, um produto da mente doentia que é Ravengar.

(59)

Ah, Pichot!

Será que você não percebeu que este país está cansado de políticos corruptos,

de políticos matreiros, de negociatas que deixam o povo cada vez mais pobre?

Lucien/Pichot

Você é um “molóide”, um fraco! Jean-Pierre

Que pena, Pichot, que Ravengar não lhe deu uma inteligência própria! Você está perdido! Ravengar fugiu, fugiu como todo covarde que se preza. Lucien/Pichot

Você está mentindo! Ravengar jamais fugiria.20

Quando descobre que o herdeiro é Jean Pierre, persegue-o tenazmente. Entre eles – ambos de ambos de origem modesta - não está em jogo somente a disputa pela legitimidade do trono, mas por duas concepções de mundo: Luciean Elan renuncia às suas origens e se torna um tirano que despreza o povo. Jean Pierre não corta as raízes: quer assumir o rei para lutar pelo povo.

Após mostrar a trama principal, articulo-a com os elementos épicos que aparecem na trama de Que rei sou eu?

2.2 ELEMENTOS ÉPICOS

20

(60)

Na explicação de Patrice Pavis, a assimilação do épico pelo drama cria uma amálgama em que as variáveis de ambos os gêneros misturam-se:

A tendência do teatro, a partir do final do século XIX, é integrar à sua estrutura dramática os elementos épicos: relatos, supressão da tensão, ruptura da ilusão e tomada da palavra pelo narrador, cenas de massa e intervenções de um coro, documentos entregues como num romance histórico, projeções de fotos e de inscrições, songs e intervenções de um narrador, mudanças à vista no cenário, evidenciação cênica do gestus de uma cena. (PAVIS, 2011, p. 131)

Elencados esses elementos que pertencem mais especificamente a um épico moderno e brechtiano, pode-se notar que, na teledramaturgia, alguns deles são facilmente perceptíveis, como trilhas sonoras, cenas de flashback, cenas do próximo capítulo, passagens abruptas de tempo e tomadas abertas externas que focalizam locais e cidades em que a trama se passa. Nesses itens, afigura-se a presença do narrador como terceiro elemento que interfere na relação dialógica das personagens, fazendo a história recuar ou avançar, relatar cenas e situações, numa fragmentação que desfaz a unidade de ação, tempo e lugar. Tudo isso, entretanto, não cria uma “teledramaturgia épica” rigorosamente falando, posto que prevalece a estrutura aristotélica das relações intersubjetivas das personagens.

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toda a novela, entre rebeldes e soldados, ambos numerosos. E, antes de a primeira cena ir ao ar, a frase do filósofo Sêneca, escrita em letras estilizadas, aparece na tela com fundo preto, e um locutor em off a lê: “Tirai ao gênero humano a sua vaidade e a sua ambição, e acabareis de vez com os heróis e com os patriotas”. Contundo, não está aí sua grande originalidade.

A expressão “teatro épico” encerra a aposição de traços estilísticos do gênero épico na dramaturgia. Assim, a sinonímia política-épica como que embaralha e, às vezes, parece mesmo dissolver a diferença entre forma e conteúdo: toma as características de um gênero pelos efeitos que os assuntos tratados pretendem provocar. Por isso, é necessário pensar por que a forma épica foi a que melhor se encaixou na ruptura da forma dramática tradicional e permitiu sua transformação em vanguarda artística e propagandista. Como nota o teórico do teatro Anatol Rosenfeld,

A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo. (ROSENFELD, 2011, p. 17)

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significado, com pouca identificação subjetiva do leitor com a história narrada.

Por isso, ao buscar alteração da relação sujeito-objeto, o teatro épico pretendeu rompê-los. A opção pelos elementos da épica para provocar o efeito do distanciamento e, a partir desse momento, estimular o pensamento assentava-se, portanto, no pressuposto de que a mimese tradicional, aristotélica, em estando em nível próximo da realidade, fazia o público identificar-se com ela, de modo que perdesse a distância crítica da realidade. Assim, o elemento narrativo justapõe-se à cena para trazer ao proscênio o contexto social e político que determina a ação das personagens.

A emergência do teatro épico ocorreu simultaneamente ao período de grande declínio, iniciado com o Romantismo, da poesia épica como padrão de excelência estética do texto em verso. E, como desafio ainda maior à pretensão vanguardista do teatro, a indústria cultural, em criando novos produtos, diminuía atratividade das apresentações teatrais. O declínio da épica parece corresponder, como padrão estético da literatura em verso do Ocidente, ao domínio da lírica. Como explica Merquior,

(63)

linguística específica. Considerada como tal, poesia é o tipo de mensagem linguística em que o significante é tão visível quanto o significado, isto é, em que a carne das palavras é tão importante quanto seu sentido. (MERQUIOR, 1997, p. 17)

Todo o arsenal da indústria cultural, pela necessidade de apelo cognitivo imediato e fácil às massas, parece construído formal e preponderantemente sob o influxo dos gêneros líricos e dramáticos.

Tomando como exemplo o fenômeno da música popular, ao fundir letra e melodia esse gênero moderno encontrou, nos meios eletrônicos de difusão, amplos espaços para identificação dos indivíduos com o “eu -lírico” dos letristas/compositores, mesmo quando suas obras assumiram posturas críticas e contestadoras à ordem – embora estivessem nela e dela fossem fruto -, como é o caso do rock’n roll. Mesmo a escritura musical popular isolada, sem a junção da letra, foi a forma de expressão coletiva de um povo: basta lembrarmos do blues e do jazz. De acordo com Rosenfeld, a consequência disto é que:

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A chuva não será um acontecimento objetivo que umedeça personagens envolvidos em situações e ações, mas uma metáfora para exprimir o estado melancólico da alma que se manifesta; a bem-amada, recordada pelo Eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem ações e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central. (ROSENFELD, 2011, p. 23)

A originalidade de Que rei sou eu? na teledramaturgia está na articulação entre os influxos épicos e dramáticos no seio de um dos principais produtos da indústria cultural brasileira. O conflito subjetivo das personagens subordina-se à ambiência social, política e econômica. Na proeminência da saga do Reino de Avilan a partir da luta desencadeada pela morte do Rei Petrus II, o coletivo – representado pelo destino de uma nação – sobrepõe-se ao individual, diferentemente de toda a tradição aristotélica do gênero telenovela.

Tendo por parâmetro o cotejo feito por Brecht entre teatro épico e teatro tradicional, tem-se em Que rei sou eu? a predominância de seis características épicas: o ser social determina o pensamento; o mundo tal como se transforma; o que é imperativo que o homem faça; as sensações levam à tomada de consciência; o homem se transforma e transforma; a obra proporciona conhecimento.21

(65)

Para Anatol Rosenfeld, a principal crítica de Brecht ao teatro tradicional estava na ausência da determinação social das personagens:

Duas são as razões principais de sua oposição ao teatro aristotélico ou tradicional: primeiro, o desejo de não apresentar apenas relações inter-humanas – objetivo essencial do

drama clássico ou da peça “bem-feita”

-, mas também as determinantes sociais dessas relações. (ROSENFELD, 2008, p.149)

Massuad Moisés, ao definir a poesia épica ressalta como, nesta, os sentimentos individuais estão subordinados formalmente ao contexto da grande narrativa: “o amor pode inserir-se na trama heróica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas da guerra.” (MOISÉS, 2004, p.153). Logo, amores proibidos, casamentos felizes e infelizes, paixões avassaladoras, traições, triângulos amorosos, desejos íntimos ocultos – tudo o que, na estrutura das obras teledramatúrgicas, normalmente é o principal -, nesta criação de Cassiano Gabus Mendes configura-se acessório e complementar às façanhas heroicas. Esse detalhe não escapou à observação da imprensa, como se pode compreender pela leitura de matéria de Veja sobre o fim da novela:

Embora toda a trama de Que Rei Sou Eu? tenha se amparado em conflitos e peripécias entre nobres e camponeses,

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