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1 QUE GÊNERO SOU EU? DIALETIZANDO A

2.2 ELEMENTOS ÉPICOS

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Na explicação de Patrice Pavis, a assimilação do épico pelo drama cria uma amálgama em que as variáveis de ambos os gêneros misturam-se:

A tendência do teatro, a partir do final do século XIX, é integrar à sua estrutura dramática os elementos épicos: relatos, supressão da tensão, ruptura da ilusão e tomada da palavra pelo narrador, cenas de massa e intervenções de um coro, documentos entregues como num romance histórico, projeções de fotos e de inscrições, songs e intervenções de um narrador, mudanças à vista no cenário, evidenciação cênica do gestus de uma cena. (PAVIS, 2011, p. 131)

Elencados esses elementos que pertencem mais especificamente a um épico moderno e brechtiano, pode-se notar que, na teledramaturgia, alguns deles são facilmente perceptíveis, como trilhas sonoras, cenas de flashback, cenas do próximo capítulo, passagens abruptas de tempo e tomadas abertas externas que focalizam locais e cidades em que a trama se passa. Nesses itens, afigura-se a presença do narrador como terceiro elemento que interfere na relação dialógica das personagens, fazendo a história recuar ou avançar, relatar cenas e situações, numa fragmentação que desfaz a unidade de ação, tempo e lugar. Tudo isso, entretanto, não cria uma “teledramaturgia épica” rigorosamente falando, posto que prevalece a estrutura aristotélica das relações intersubjetivas das personagens.

Em Que rei sou eu? há muitas cenas de massa nos capítulos finais e as de confronto, que permeiam

toda a novela, entre rebeldes e soldados, ambos numerosos. E, antes de a primeira cena ir ao ar, a frase do filósofo Sêneca, escrita em letras estilizadas, aparece na tela com fundo preto, e um locutor em off a lê: “Tirai ao gênero humano a sua vaidade e a sua ambição, e acabareis de vez com os heróis e com os patriotas”. Contundo, não está aí sua grande originalidade.

A expressão “teatro épico” encerra a aposição de traços estilísticos do gênero épico na dramaturgia. Assim, a sinonímia política-épica como que embaralha e, às vezes, parece mesmo dissolver a diferença entre forma e conteúdo: toma as características de um gênero pelos efeitos que os assuntos tratados pretendem provocar. Por isso, é necessário pensar por que a forma épica foi a que melhor se encaixou na ruptura da forma dramática tradicional e permitiu sua transformação em vanguarda artística e propagandista. Como nota o teórico do teatro Anatol Rosenfeld,

A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo. (ROSENFELD, 2011, p. 17)

Pela monumentalidade dos fatos narrados (não à toa o substantivo épico adjetivou-se: qualifica hodiernamente algo de extraordinário), pelo posicionamento crítico em relação ao tempo passado e pela presença objetiva do narrador, o gênero épico cria distância entre sujeito e objeto, entre significante e

significado, com pouca identificação subjetiva do leitor com a história narrada.

Por isso, ao buscar alteração da relação sujeito- objeto, o teatro épico pretendeu rompê-los. A opção pelos elementos da épica para provocar o efeito do distanciamento e, a partir desse momento, estimular o pensamento assentava-se, portanto, no pressuposto de que a mimese tradicional, aristotélica, em estando em nível próximo da realidade, fazia o público identificar-se com ela, de modo que perdesse a distância crítica da realidade. Assim, o elemento narrativo justapõe-se à cena para trazer ao proscênio o contexto social e político que determina a ação das personagens.

A emergência do teatro épico ocorreu simultaneamente ao período de grande declínio, iniciado com o Romantismo, da poesia épica como padrão de excelência estética do texto em verso. E, como desafio ainda maior à pretensão vanguardista do teatro, a indústria cultural, em criando novos produtos, diminuía atratividade das apresentações teatrais. O declínio da épica parece corresponder, como padrão estético da literatura em verso do Ocidente, ao domínio da lírica. Como explica Merquior,

É sabido que a lírica era, a princípio, apenas um gênero de poesia; porém, com o declínio do grande poema narrativo e do verso dramático, lírica e poesia terminaram por confundir-se. No exame da literatura moderna, um termo pode ser praticamente empregado pelo outro. A principal consequência desta identificação foi que a lírica se tornou depositária por excelência de uma característica essencial da poesia, a de função

linguística específica. Considerada como tal, poesia é o tipo de mensagem linguística em que o significante é tão visível quanto o significado, isto é, em que a carne das palavras é tão importante quanto seu sentido. (MERQUIOR, 1997, p. 17)

Todo o arsenal da indústria cultural, pela necessidade de apelo cognitivo imediato e fácil às massas, parece construído formal e preponderantemente sob o influxo dos gêneros líricos e dramáticos.

Tomando como exemplo o fenômeno da música popular, ao fundir letra e melodia esse gênero moderno encontrou, nos meios eletrônicos de difusão, amplos espaços para identificação dos indivíduos com o “eu- lírico” dos letristas/compositores, mesmo quando suas obras assumiram posturas críticas e contestadoras à ordem – embora estivessem nela e dela fossem fruto -, como é o caso do rock’n roll. Mesmo a escritura musical popular isolada, sem a junção da letra, foi a forma de expressão coletiva de um povo: basta lembrarmos do blues e do jazz. De acordo com Rosenfeld, a consequência disto é que:

Quanto mais os traços líricos se salientarem, tanto menos se constituirá um mundo objetivo, independente das intensas emoções da subjetividade que se exprime. Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância entre sujeito e objeto. Ao contrário, o mundo, a natureza, os deuses, são apenas evocados e nomeados para, com maior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegria da alma que canta.

A chuva não será um acontecimento objetivo que umedeça personagens envolvidos em situações e ações, mas uma metáfora para exprimir o estado melancólico da alma que se manifesta; a bem-amada, recordada pelo Eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem ações e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central. (ROSENFELD, 2011, p. 23)

A originalidade de Que rei sou eu? na teledramaturgia está na articulação entre os influxos épicos e dramáticos no seio de um dos principais produtos da indústria cultural brasileira. O conflito subjetivo das personagens subordina-se à ambiência social, política e econômica. Na proeminência da saga do Reino de Avilan a partir da luta desencadeada pela morte do Rei Petrus II, o coletivo – representado pelo destino de uma nação – sobrepõe-se ao individual, diferentemente de toda a tradição aristotélica do gênero telenovela.

Tendo por parâmetro o cotejo feito por Brecht entre teatro épico e teatro tradicional, tem-se em Que rei sou eu? a predominância de seis características épicas: o ser social determina o pensamento; o mundo tal como se transforma; o que é imperativo que o homem faça; as sensações levam à tomada de consciência; o homem se transforma e transforma; a obra proporciona conhecimento.21

21 No prefácio de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, Brecht estabeleceu um conhecido cotejo em que contrapõe tópicos do teatro dramático aos do teatro épico. Cf. FARBERMAN in WILLET, 1963.

Para Anatol Rosenfeld, a principal crítica de Brecht ao teatro tradicional estava na ausência da determinação social das personagens:

Duas são as razões principais de sua oposição ao teatro aristotélico ou tradicional: primeiro, o desejo de não apresentar apenas relações inter- humanas – objetivo essencial do drama clássico ou da peça “bem-feita” -, mas também as determinantes sociais dessas relações. (ROSENFELD, 2008, p.149)

Massuad Moisés, ao definir a poesia épica ressalta como, nesta, os sentimentos individuais estão subordinados formalmente ao contexto da grande narrativa: “o amor pode inserir-se na trama heróica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas da guerra.” (MOISÉS, 2004, p.153). Logo, amores proibidos, casamentos felizes e infelizes, paixões avassaladoras, traições, triângulos amorosos, desejos íntimos ocultos – tudo o que, na estrutura das obras teledramatúrgicas, normalmente é o principal -, nesta criação de Cassiano Gabus Mendes configura-se acessório e complementar às façanhas heroicas. Esse detalhe não escapou à observação da imprensa, como se pode compreender pela leitura de matéria de Veja sobre o fim da novela:

Embora toda a trama de Que Rei Sou

Eu? tenha se amparado em conflitos e

peripécias entre nobres e camponeses,

o final em clima de revolução é, sem dúvida, o ponto culminante da história. Ao longo de toda a novela

estabeleceram-se associações e até romances entre as duas partes. Aline (Guilia Gam) era copeira do palácio e alvo das paixões dos nobres. Suzanne (Natália do Valle) viveu um perigoso romance às escondidas com o rebelde Jean Pierre. Corcoran, o bobo da corte e amigo colorido da rainha Valentine (Tereza Raquel) era um dos cabeças da conspiração. Não seria de se

estranhar, portanto, um final cor-de- rosa com ricos e pobres se casando, inimigos se reconciliando e todos sendo felizes para sempre. O objetivo de Gabus Mendes, porém, era fazer mais do que isso.

“A novela quis mostrar, em tom de sátira, a exploração da miséria, a ganância dos que controlam o poder – a revolução do final mostra que do jeito que as coisas estão neste país, tudo pode acabar mal”, diz o autor. (VEJA, 15/09/1989, p.114. Grifo nosso)

Há um diálogo entre Jean-Pierre e sua namorada Aline, logo nos primeiros capítulos, em que ela lhe insinua a contrafação de suas virtudes heroicas:

Aline

É só o que você quer da vida, violência e poder?

Jean-Pierre (Pegando-a no colo e deitando-se sobre ela na grama)

Não! Esses são apenas o caminho para se chegar à justiça.

Eu pelo menos não conheço outro. Eu odeio a violência, Aline, mas eu vou usá-la,

sempre que for preciso, para chegar aonde eu quero.

Aline

Você vai acabar morto, meu amor.

Jean-Pierre

Não! Para morrer, basta estar vivo.

Aline

Você poderia abandonar tudo, e agente viveria no campo, em paz.

Jean-Pierre

Em paz e fome!

Aline, será que você ainda não entendeu a barbaridade que acontece aqui em Avilan?

Tudo o que se produz no campo vai para o reino; em troca,

os senhores conselheiros aumentam os impostos semanalmente.

O povo passa fome, necessidade. Há miséria por toda parte.

Você quer que eu me esqueça disso tudo e vá viver feliz com minha mulherzinha?

Aline

Desculpe, amor. É que eu te amo tanto que o egoísmo toma conta de mim.

Jean-Pierre

Aline, um dia nós teremos um arsenal bem grande, e então tomaremos esta terra,

que é nossa. (Beija a terra)

Aline

Jean-Pierre

Nada se faz sem sacrifícios, Aline.

Aline

Tenho muito medo, Jean. Você se arrisca demais. Se acontecer alguma coisa a você,

quero que aconteça a mim também. Não conseguirei viver sem você.

Jean-Pierre

Nós estaremos sempre juntos. Você vai ver.22

Ao reafirmar os ideais que o movem e o fazem altivo e destemido, Jean-Pierre despreza o estilo de vida alheado da realidade social. “O povo passa fome, necessidade. Há miséria por toda parte. Você quer que eu me esqueça disso tudo e vá viver feliz com minha mulherzinha?”, pergunta Jean-Pierre a Aline. “Desculpe, amor. É que eu te amo tanto que o egoísmo toma conta de mim”, responde ela, que também é revolucionária e se infiltra no palácio como espiã disfarçada de criada.23

A cognição exigida para a compreensão da novela passava pela etapa de estranhamento, uma

22

Ibid. Transcrição nossa.

23 A trilha sonora de Que rei sou eu? reserva às cenas em que o herói e os rebeldes estão sob o seu comando uma canção chamada “Raça de Heróis”, de autoria do cantor e compositor Guilherme Arantes, que contrasta com as letras românticas características dos

songs que ilustram cenas de telenovela: “Sente o rufar dos tambores/Ouve os metais que anunciam/Um cavalgar de coragem/Todo temor silencia/Nosso reino é assim/Território sagrado/Pra sempre/Resiste em nós/Uma certeza de aço/Sela os portões desse reino/E não há dor nem cansaço/Todo sofrer é pequeno/Nosso reino é assim/Território sagrado/Pra sempre/Resiste em nós/Raça de Heróis/Virá salvar a terra/Raça de heróis, heróis, heróis”. Canção incluída no LP “Romances Modernos”, lançado em 1989 pela gravadora CBS, atual Sony Music.

desidentificação entre o espaço cênico e a realidade retratada. O efeito de estranhamento24, nas formulações de Brecht, visa tornar estranho o que para o público é próximo25. Por ser familiar, o mundo com que as pessoas se identificam se lhes apresenta natural e imutável e os desobriga de compreendê-lo. O estranhamento é necessário para que as condições sociais de uma época sejam vistas como transitórias, fugazes e passíveis de transformação, como quando as situações do presente – o mundo em que vivemos – são transpostas para o tempo pretérito ou para outro espaço geográfico. Sem a familiaridade do ambiente e da temporalidade, a compreensão do mundo real torna-se mais nítida, porque objetiva e rarefeita do efeito ilusório da identificação. Segundo Anatol Rosenfeld,

A peça deve, portanto, caracterizar determinada sociedade na sua relatividade histórica para demonstrar a sua condição passageira. A nossa própria época deve ser apresentada como se estivesse distanciada de nós pelo tempo histórico e pelo espaço geográfico. Desta forma, o espectador reconhecerá as suas condições sociais como sendo relativas e fugazes e “isso é o início da crítica.” Para empreender é preciso compreender. Vendo as coisas sempre como elas estão ocorrendo, elas se tornam corriqueiras e por isso incompreensíveis porque,

24 Também chamado de efeito de distanciamento, ou V-effekt. 25 Aqui, não se pode deixar de observar a aproximação do estranhamento brechtiano com o conceito de “aura”, de Walter Benjamin, assim enunciado pelo crítico alemão: “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” (BENJAMIN, 1985, p. 170)

estando identificados com elas pela rotina, não as vemos com o olhar épico da distância. (ROSENFELD, 1997, p. 151)

Em várias peças de Brecht acontece esse tipo de deslocamento: A Boa Alma de Setsuan passa-se na China; O Senhor Puntila e Seu Criado Matti, na Finlândia; Mãe Coragem, na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648); O Círculo de Giz Caucasiano remete a uma antiga lenda caucasiana; e em A Resistível Ascensão de Arturo Ui dramatiza-se a ascensão do nazismo na Alemanha por meio de um gângster na Chicago da década de 30.

A partir da efeméride do bicentenário da Revolução Francesa, bastante explorada pelos meios de comunicação e pela indústria cultural, Cassiano Gabus Mendes foi buscar na França revolucionária referências históricas e geográficas para, criando uma sátira alegórica, aproximá-las do Brasil da década de 80. Os acontecimentos passam-se entre 1786 e 1789, na passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, segundo a periodização clássica da história cujo marco é a Revolução Francesa. Portanto, Que rei sou eu? aborda o período de crise do Antigo Regime, e culmina com sua ruptura, quando nos últimos capítulos os rebeldes invadem o palácio de Avilan e assaltam o poder, numa referência à invasão da Bastilha, que dá início ao processo revolucionário francês.26 Por isso, em outra situação incomum em

26 Regime político característico da Idade Moderna, o Absolutismo

encontrou na França o modelo mais bem acabado, conforme as palavras do historiador britânico Perry Anderson, em obra clássica sobre o tema: “O absolutismo francês consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII. A estrutura do Estado e a correspondente cultura dominante aperfeiçoadas no

teledramaturgia, os nomes das personagens de Que rei sou eu? são franceses, o que, em princípio, dificultaria a assimilação pelo público, também devido à dificuldade de pronúncia.27

Assim, à forma do Antigo Regime, cuja simbologia estava sendo assimilada massivamente pela sociedade brasileira, Que rei sou eu? associa o conteúdo que o Brasil via e sentia de perto: as sístoles e diástoles do processo de redemocratização do país.

reinado de Luís XIV viriam a torna-se o modelo para o restante da nobreza europeia.” (ANDERSON, 2004, p. 33)

27 Veja-se o nome de algumas personagens, seguido do nome do

ator entre parênteses : Rainha Valentine (Tereza Rachel), Madeleine Bouchet (Marieta Severo), Bergeron Bouchet (Daniel Filho), Maria Fromet/Lenore Gaillard (Aracy Barlabanian), Loulou Lion (Ítala Nandi), Pichot/Lucien (Tatu Gabus Mendes), Princesa Juliette (Cláudia Abreu), Jean Pierre (Edson Celulari), Bidet Lambert (John Herbert), Françoise Gaillard (Edney Giovenazzi). Ver Que rei Ibid. Transcrição nossa

3 QUE BRASIL SOU EU?: ENTRE O REAL E O FICCIONAL

A novela Que Rei sou Eu? é singular não só porque inverte a equação das telenovelas, tornando secundárias as características do melodrama tradicional –, mas porque, ao mesmo tempo que põe uma lupa sobre o contexto, é uma sátira alegórica: com o efeito crítico devastador de que só o humor é capaz, fala de um país (o Brasil de 1989) por meio de outro – um reino situado na Europa às vésperas da Revolução Francesa, cujos acontecimentos serviram-lhe de simulacro. Este capítulo aborda a situação conjuntural do Brasil à época em que a obra de Cassiano Gabus Mendes foi ao ar. 3.1 EUFORIA, ESPERANÇA e DESÂNIMO: A CONJUNTURA DOS ANOS 1980

Por um lustro, o Brasil da década de 1980 realizou cerimônias públicas de purificação de seus males em que o fracasso renovava a esperança. À frustração de projetos irrealizados, de decisões contraproducentes e do giro da Roda da Fortuna seguiam-se novos momentos que se apresentavam redentores, o que acabava por gerar grande mobilização

popular. De 84 a 89, o Brasil viveu essa ciclotimia. O outono do regime militar brasileiro, no governo do general João Batista Figueiredo, tornava-se sensível à medida que se aprofundava a crise econômica. Dois anos antes desse recorte histórico, a oposição conseguira importantes vitórias nas eleições para governador, a primeira desde o Golpe de 64, ao conquistar o poder em grandes estados: Franco Montoro em São Paulo, Tancredo Neves em Minas Gerais, José Richa no Paraná e Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. (FAUSTO, 2006)

No início de 1984, a um ano da eleição indireta que indicaria o sucessor de Figueiredo, a primeira panaceia nacional conquistou adeptos em praticamente todos os segmentos sociais, o que lhe conferiu status de unanimidade nacional. O remédio para os males do Brasil estava na possibilidade de o povo ir às urnas escolher o presidente da República, direito que lhe fora tungado pelos militares. A luta pela aprovação da Emenda das Diretas no Congresso Nacional – cognominada de Emenda Dante de Oliveira pelo fato de ter sido apresentada pelo homônimo e novato deputado – levou multidões às ruas.

Em 1984, o Brasil vivia um momento peculiar de sua história. Após 20 anos de Regime Militar, aos poucos ganhava força o movimento por eleições “Diretas Já”. No imaginário de milhões de brasileiros que iam às manifestações pelo direito de eleger o presidente da República, a democracia não apenas traria de volta as liberdades civis e políticas, como também o fim da inflação, o retorno do crescimento e a sonhada redistribuição de renda. O ambiente nacional, em suma,

era de esperança e confiança na introdução de profundas mudanças. (CASTRO, 2005, p. 117)

Mas a confiança e a esperança morreram com a votação na Câmara dos Deputados: foram 298 votos a favor da emenda, maioria absoluta dos 479 deputados. Mas como o quórum exigido era de 320 votos, o tamanho da frustração multiplicava-se por 22.

Para renascer, esses sentimentos tiveram de prescindir de um presidente cujo poder - conforme as palavras do eminente advogado Sobral Pinto no comício das Diretas na Candelária, no Rio de Janeiro - emanasse do povo e em seu nome fosse exercido. Como não houve presidente eleito, qualquer tentativa de predizer seu governo é mera especulação. Porém, com base nos inúmeros problemas que o Brasil enfrentava e na expectativa gigantesca depositada numa figura que teria ascendido ao poder por via democrática - além, é claro, de todos os problemas enfrentados pelos governos posteriores, indiretos e diretos -, as palavras de Boris Fausto (2008) são o anticlimax da narrativa épica sobre o movimento:

A campanha das “Diretas Já” expressava ao mesmo tempo a vitalidade da manifestação popular e a dificuldade dos partidos para exprimir reivindicações. A população punha

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