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A VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS DA T

1 QUE GÊNERO SOU EU? DIALETIZANDO A

1.2 A VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS DA T

Da chegada da televisão ao Brasil em 1950, no auge da Era do Rádio9, à primeira telenovela diária, passaram-se 13 anos, até que 2-5499 Ocupado fosse veiculada pela TV Excelsior, em 1963. Ao longo da década de 50, a dramaturgia inseria-se na programação das emissoras por meio de teleteatro ou de histórias curtas, de poucos capítulos, veiculados em alguns dias na semana. Assim como O Direito de Nascer, 2-5499 Ocupado era adaptação de original estrangeiro: 0597 da Ocupado, do argentino Alberto Migré. (ALENCAR, 2004)

Quando a TV Globo foi inaugurada, em 26 de abril de 1965, Tupi e Excelsior10 lideravam a produção

9 Denomina-se Era do Rádio o período que abrange as décadas de 40 e 50, quando o rádio torna-se o principal meio de comunicação de massa do país. Embora as primeiras emissoras do Brasil datem de 1923, foi só a partir do início da década de 30, quando um decreto de Getúlio Vargas permitiu às emissoras veicular anúncios comerciais, que o rádio passou a penetrar amplamente nas camadas populares, mudando-lhe radicalmente o perfil educativo- elitista que o caracterizava até então – o qual era preconizado pelo pioneiro da radiodifusão no Brasil, Edgar Roquete Pinto. Com as verbas publicitárias e o aumento do número de aparelho nas residências, as emissoras puderam investir em conteúdo artístico, contratando uma plêiade de músicos, cantores, compositores, jornalistas, dramaturgos e comunicadores. Para o descontentamento de Roquete Pinto, as transmissões de óperas, conferências de cientistas, professores e execução de música clássica deram lugar aos programas de auditório, à música popular e às radionovelas. Cf. CALABRE (2002)

10 Primeira emissora de televisão brasileira, a Tupi saiu do ar em 1980, devido a problemas financeiros que se prolongavam havia alguns anos, depois de três décadas de funcionamento; a TV Excelsior, fundada em 1960, teve a concessão cassada em 1970 pelo regime militar instaurado em 1964, ao qual fazia oposição.

teledramatúrgica. Num período de pouco mais de um lustro, a emissora carioca deu um passo decisivo para suplantar a concorrência – não sem antes espelhar-se em dois grandes sucessos da Tupi para dar uma guinada estética em suas produções, rumo à liderança. Em outubro de 1976, segundo reportagem de capa da revista Veja intitulada “TV Globo – A Hollywood Brasileira”, os dez programas mais vistos na televisão brasileira foram transmitidos pela Globo. Sobre suas novelas, escreve a revista:

A Globo não inventou a telenovela. De seus estúdios, porém, partiu a contribuição decisiva para sua transformação em um gênero paracinematográfico, de dimensões hollywoodianas, mas tipicamente brasileiro na linguagem, na temática e no alucinado ritmo de produção. (VEJA, 06/10/76, p. 82)

Atente-se para a expressão “tipicamente brasileiro”, que reveste as telenovelas de um invólucro de autenticidade e as distancia, no conteúdo, da matriz cubana. Não era assim no início. Nas primeiras novelas da Rede Globo, a verossimilhança baseou-se na universalidade e na atemporalidade de conflitos e comportamentos para permitir a identificação do público (PAVIS, 2011, p. 428-429) com grande distância histórica, geográfica e de tipologia individual do Brasil da década de 60. Na incipiência do que viria a ser uma de suas marcas mais famosas, praticamente todas as telenovelas da Rede Globo tinham como característica, em sua abordagem ficcional, situar-se em países estrangeiros, em séculos pretéritos, com personagens representativos de tempo e lugar. Além disso, muitas das

histórias tinham por inspiração obras consagradas da literatura universal.

Em tempos de transmissões limitadas, ainda sem alcance de âmbito nacional, Ivani Ribeiro dominava a audiência em São Paulo, enquanto no Rio a TV Globo usava personagens excêntricos ambientados em paisagens distantes, em tramas baseadas em obras do século anterior, como O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, transformada na já citada Eu compro Essa Mulher, com Carlos Alberto, Yoná Magalhães, Cláudio Marzo, Ziembinski e Leila Diniz.

O Sheik de Agadir, por exemplo, é inspirada em Taras Bulba, romance de Nikolai Gogol. Nesse histórico texto de 1966, Glória Magadan inseriu um mistério, o do personagem Rato, que com luvas pretas enforcava agentes nazistas, deixando sobre o corpo uma tarântula também negra, e que só no final tem sua identidade revelada. (ALENCAR, 2004, p. 22)

Esse recorte temporal, entre 1966 e 1970, começa com Eu Compro está Mulher, primeiro folhetim exótico e primeiro grande sucesso da emissora, a ponto de fazê-la alcançar o primeiro lugar em audiência no Rio de Janeiro no horário das 21h30m.11 E termina com A

11 No entanto, não foi sua primeira novela: antes, a Globo produzira, em seus primeiros meses, para diversos horários, Ilusões Perdidas,

Rosinha do Sobrado, Marina, Pecado de Mulher, Paixão de Outono, A Moreninha, O Ébrio, Padre Tião e Um rosto de Mulher. Nenhuma

Cabana do Pai Tomás, exibida até março de 1970 – e cujo fracasso de audiência contribuiu decisivamente para a mudança estética de suas telenovelas.

Entre as autoras desse período, sobressai o nome de Glória Magadan. Cubana que migrou para o Brasil depois da Revolução de 1959 após passar por Porto Rico e Venezuela, Magadan chegou à TV Globo em dezembro de 1965, na qual chegou a ocupar o cargo de diretora de dramaturgia. Seu prestígio ficou abalado depois da baixa audiência de A Cabana do Pai Tomás, o que levou ao seu desligamento da emissora. Era dela a decisão de que as produções teriam de ser distantes da realidade brasileira. Em primeiro momento, a estratégia conquistou audiência, o que se atesta pelo sucesso de Eu Compro esta Mulher; mas já ao fim da década de 60 não satisfazia o público, que se vinha acostumando a novas maneiras de retratar a sociedade brasileira em produções audiovisuais:

Em 1968, Antônio Maria e Beto Rockfeller, da TV Tupi, abriram caminho para a renovação da telenovela brasileira. Traziam o cotidiano dos brasileiros para a tela da TV com diálogos mais verossímeis e uma direção de câmera mais ágil e despojada.

As duas novelas fizeram grande sucesso e alertaram os produtores brasileiros para o fato de que o público talvez já estivesse cansado de sheikes, duques e duquesas, de toda a distância espaço-temporal do dia-a-dia do telespectador que caracterizava a

delas, evidentemente, enquadra-se no folhetim melodramático. Cf. Dicionário da TV Globo, Ibidem.

telenovela até então. Ambas irão buscar inspiração nas realidades multifacetadas das diversas regiões do país e darão início ao processo de desenvolvimento do gênero.

Beto Rockfeller trazia uma série de novos elementos que se apresentavam na realidade cultural do momento, o final dos anos 60. O Cinema Novo buscava maior aproximação com o público. O filme “Macunaíma” recorre ao herói sem nenhum caráter em uma produção que abandona posturas mais “intelectualizadas”, colocando no lugar uma colorida diversão. Outros filmes se aproximam da Jovem Guarda, como “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Surge o anti-herói como protagonista, como no caso de “O Bandido da Luz Vermelha”, que circula por uma São Paulo degradada e atravessada pelos meios de comunicação. (ALENCAR, 2004, p. 51)

Antônio Maria e Beto Rockfeller romperam não somente com o folhetim exótico, que a Tupi também fazia por vezes12 – mas também com o tom pegajoso, piegas das histórias românticas que o melodrama exacerbava ao nível mesmo do dramalhão, o que

12 Vejam-se alguns exemplos: em 1964, a TV Tupi levou ao ar A

Gata, cuja história abordava o problema dos escravos nas Antilhas

do Século XIX. A protagonista, uma senhora branca respeitável, era conhecida como A Gata. Quatro anos depois, produziu O Rouxinol

da Galiléia, primeira telenovela bíblica brasileira, lançada às

vésperas da Semana Santa de 1968. Passava-se à época da crucificação de Cristo.

impunha aos atores um jeito artificial de interpretar.13 Ao demitir Glória Magadan, a Rede Globo bateu a claquete para que suas produções retratassem personagens e histórias próximas do público. Já na virada para os anos 70, Véu de Noiva, Pigmalião 70 e Verão Vermelho demonstravam que a verossimilhança, nesse momento, estreitava a relação espaço-tempo.

Em meados dos anos 70, a Globo - que já conquistara a hegemonia da audiência - inaugurou, no horário das 18 horas, o que se convencionou chamar de “novela de época”. Embora se passassem em período histórico distante – em geral século XIX e início do XX –, essas novelas não se enquadram no folhetim exótico: ao retratar a realidade brasileira e adaptar clássicos da literatura nacional, elas levavam para a tela histórias e personagem com o qual o público, de alguma forma, identificava-se. Os protagonistas despiam-se da excentricidade e encarnavam tipos populares em sua práxis simples e facilmente reconhecível: Nando, de Pigmalião 70, rapaz jovem que trabalha com a mão como feirante; Beto Rockfeller, vendedor de loja de sapatos que, na malandragem, consegue frequentar as altas rodas; e Antônio Maria, que empresta nome à novela, motorista particular que se emprega na casa do dono de supermercado.

1.3 O PÚBLICO, ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A COISA OBSERVADA

O Brasil se reconhece nas telas. O sucesso das telenovelas com temática próxima da realidade brasileira

13 Sobre a importância e a permanência do melodrama, ver análise detalhada em HUPPES, 2000; e THOMASSEAU, 2012.

gera identificação entre o público e a obra. Como signo da indústria cultural, a novela revela um conjunto de valores expressos por recursos literários, sonoros e visuais que são assimilados pela sociedade brasileira como universo que lhe é próximo. Essa identificação não é só consequência da obra, mas também requisito primordial para a sua eficácia mimética, que exige do telespectador uma capacidade cognitiva de processar o que vê e identificar-se como pertencente à realidade mimetizada. Assim, a figura do telespectador passivo, sentado à frente da tela e absorvendo acrítica e pavlovianamente o que se lhe impõe, embora se tenha tornado lugar-comum para pensar a influência da televisão, é reducionista e insuficiente para explicar esse processo. Segundo Bucci, o telespectador torna-se um agente ativo na relação entre público e televisão:

Muitos ainda julgam que a TV faz o que quer com a audiência. Não é bem assim: ela não inventa, não impõe, não condiciona diretamente; ela tem os instrumentos para regular, quer dizer, ela consegue ordenar hábitos dispersos em códigos reconhecíveis e unificadores. Ela não determina o que cada um vai fazer ou pensar, não há um cérebro maquiavélico por trás de cada emissora procurando doutrinar a massa acrítica (embora existam tentativas nesta direção, não são elas quem produzem o sucesso na condução de uma emissora ou de uma rede); a massa de telespectadores não obedece irrefletidamente o que vê na tela; o que acontece é que a televisão se apresenta com os mecanismos

necessários para integrar expectativas diversas e dispersas, os desejos e as insatisfações difusas, consegue incorporar novidades que se apresentem originalmente fora do espaço que ela ocupa e, em sua dinâmica, vai dando os contornos do grande conjunto, com um tratamento universalizante das tensões. (BUCCI, 1997, p.12)

Bucci refere-se à produção televisiva de modo geral. No caso das telenovelas, a eficácia do ativamento das “expectativas diversas e dispersas” e dos “desejos e as insatisfações difusas” depende da forma como os autores trabalham a realidade brasileira. Na perspectiva aristotélica, tanto mais eficaz será a identificação do público quanto se realçarem os conflitos individuais. Não significa que o foco na subjetividade das personagens elimine abordagem da estrutura social dentro da qual a fábula se desenrola. Há uma conformação das duas esferas, com preeminência da subjetividade na estrutura dramática, de modo que a materialidade das

personagens – todo o sistema de signos que a

caracteriza: o gestual, o figurino, a maneira de falar etc. - constrói-se também pela influência do meio.

Assim, a tão decantada alienação que as novelas provocam, em razão da sublimação ou negação dos conflitos sociais, políticos e econômicos, carece de análise mais sofisticada. Não só eles estão presentes como exercem papel importante na ativação dos mecanismos que permitem a proximidade entre obra e público.

Em análise sobre o papel do melodrama na formação da identidade nacional nos países latino-

americanos, Jesús Martin-Barbeiro chega à conclusão de que as novelas e outros gêneros perscrutam-lhe a subjetividade:

Em forma de tango ou telenovela, de cinema mexicano ou reportagem policial, o melodrama explora nestas terras um profundo filão de nosso imaginário coletivo, e não existe acesso à memória histórica nem projeção possível sobre o futuro que não passe pelo imaginário. De que filão se trata? Daquele em que se faz visível a matriz cultural que alimenta o reconhecimento popular na cultura de massa. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 316)

Esse imaginário melodramático nos países da América Latina constrói-se, num processo que começa na primeira metade do século XX. Nesse período, se pode observar uma espécie de descompasso entre Estado e Nação, devido a que o papel do Estado na

construção da Nação – ou seja, na edificação de uma

identidade comum em meio a tantas diferenças regionais

e sociais – teve caráter modernizante. Dessa particular

modernização resultou a formação de massa urbano- industrial cujo desenvolvimento caminhou pari passu ao dos meios de comunicação de massa. Desse modo, rádio, cinema e televisão atuaram como instâncias

mediadoras entre a população e o Estado. Desse modo,

eles absorveram, na dramaturgia, os conflitos que se sublimavam na vida política nacional:

Do filho pelo pai ou da mãe pelo filho, o que move o enredo é sempre o

desconhecimento de uma identidade e a luta contra as injustiças, as aparências, contra tudo o que se oculta e se disfarça: uma luta por se fazer

reconhecer. Não estará aí a secreta

conexão entre o melodrama e a história deste subcontinente? (...) Seria então sem sentido indagarmos até que ponto o sucesso do melodrama nesses países testemunha o fracasso de certas instituições políticas que se desenvolveram desconhecendo o peso dessa outra sociabilidade, incapazes de assumir sua densidade cultural? (MARTIN-BABERO, 2003, p. 317)

A busca pelo reconhecimento está presente de maneira forte nas histórias criadas pelos dramaturgos brasileiros: por meio de lugares, situações e personagens. Toda a ficção teledramatúrgica é, nesse sentido, uma alegoria do Brasil. Desde o fim dos anos 60, as telenovelas da Rede Globo encurtaram a distância entre a representação e a coisa representada.

2 QUE ÉPICO SOU EU?: UMA QUESTÃO DE GÊNEROS

Na primeira parte deste capítulo, resume-se a trama principal da novela Que Rei sou Eu?, com transcrição de diálogos representativos da estrutura da obra. Com isso, torna-se mais claro encadeamento com a segunda parte, em que os elementos épicos de Que Rei Sou eu? são destacados, também com recorrência

aos diálogos fulcrais, de modo que a própria trama se mostra, ela própria, um elemento singular.

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