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A transdisciplinaridade

No documento EM BUSCA DE UM PROJETO (páginas 36-42)

1.2 S ABERES PARA UMA EDUCAÇÃO DO FUTURO

1.2.3 A transdisciplinaridade

Outra abordagem que emerge como novo paradigma na educação contemporânea é a transdisciplinaridade. O termo apareceu pela primeira vez em 1970, com Piaget, no I Seminário Internacional sobre pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade, em Nice. Depois disso, foi ganhando corpo, aderência e fez-se presente nas reflexões de alguns autores do final do século passado até os dias de hoje. Mesmo que não apareça com esse nome,

transdisciplinaridade, observamos pensamentos contemporâneos que tangenciam seus

princípios fundamentais. Para este estudo, recorremos, principalmente, a Nicolescu (1999), um dos redatores da Carta da Transdisciplinaridade16. Assim como Morin (2000, 2009, 2011) e Moraes (1997, 2004), Nicolescu (1999) contextualiza sua obra num momento de transformação, diante da decadência da ciência moderna e da emergência de novos conhecimentos e reflexões que sucederam as descobertas científicas que ocorreram ao longo do século XX. Os princípios de ordenação, simplificação, fragmentação, linearidade, descontextualização, dualismo e objetivismo não mais fazem sentido na nova concepção de mundo. Uma vez que esses conceitos já foram comentados, não nos ateremos a eles.

A abordagem transdisciplinar busca sentido na vida e seu funcionamento por meio da interação de vários campos do saber; trata-se de nova forma de ver e compreender o mundo, os homens e suas relações. Difere da pluridisciplinaridade17 e da interdisciplinaridade18,                                                                                                                

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(ARAUJO, 2014) Uma adaptação desta subseção foi apresentada no INSEA, em 2014, com o título "Approaches between transdisciplinarity, creative processes and art education".

16 A “Carta da Transdisciplinaridade” foi escrita no Convento da Arrábida, em 1994, por Lima de Freitas, Edgar

Morin e Basarab Nicolescu e foi responsável por sintetizar e organizar os princípios dessa abordagem científica.

17"A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias

disciplinas ao mesmo tempo." (NICOLESCU, 1999, p.52)

18 "A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à

  porém não é contra elas nem contra a disciplinaridade, ao contrário, acredita que seus conhecimentos se complementam. A transdisciplinaridade19parte do princípio de que todos os saberes são importantes e, somados, contribuem para um entendimento amplo da nossa realidade. Ademais, contempla a integração do mundo externo e interno dos sujeitos, em que a relação entre corpo, mente, razão, sensação, intuição, sentimento e imaginação faz parte do indivíduo integralmente. Na busca pelo entendimento ampliado do mundo, a transdisciplinaridade, além de ser uma abordagem científica e metodológica, pode ser considerada uma atitude diante da vida. Seus princípios contribuem para uma visão rigorosa e, ao mesmo tempo, generosa dos acontecimentos e das relações.

Seus fundamentos foram organizados em três pilares metodológicos: os níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído e a complexidade. Considerar a existência de diferentes níveis de realidade20 é o primeiro pilar desta abordagem, que acredita existirem

outros níveis além do macrofísico e do microfísico. A nossa realidade é multidimensional, pode ser percebida de formas diferentes, de acordo com as experiências de cada um. Há níveis não fisicamente comprovados, são subjetivos, mundos que se interpenetram e são regidos por lógicas e leis diferentes, o que nos leva ao fato de que um nível não explica o outro.

Os diferentes níveis de realidade, por exemplo, referem-se à existência de um mundo macrofísico e de um mundo microfísico regido por leis diferentes, por diferentes tipos de causalidade, uma linear e outra circular, mas sendo que os dois mundos coexistem, assim como os nossos corpos que, ao mesmo tempo, apresentam uma estrutura macrofísica e uma estrutura quântica. [...] Por outro lado, utilizando as nossas intuições, os nossos sentimentos e o imaginário podemos entrar no mundo dos símbolos, dos mitos e da poesia e transitarmos, assim, para outro nível de realidade. (MORAES, 2004, p. 211)

Nicolescu (2002, p. 49) lembra que a existência de vários níveis "tem sido afirmada por diferentes tradições e civilizações, porém essa afirmação estava fundamentada no dogma religioso ou na exploração do nosso universo interior" e reitera a necessidade de desconfiarmos da lógica que nos mantém preso a um nível só. Isso nos leva ao segundo postulado da transdisciplinaridade, a lógica do terceiro incluído21, que deixa de ser binária                                                                                                                

19 "A transdisciplinaridade, como o prefixo 'trans' indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as

disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do

mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento." (NICOLESCU, 1999, p. 53) 20

"Deve-se entender por nível de realidade um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do mundo macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de realidade são diferentes se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade)." (NICOLESCU, 1999, p. 31)

21 "A lógica do terceiro incluído pode descrever a coerência entre os níveis de realidade pelo processo interativo

  (pensamento clássico) para ser ternária. O terceiro incluído existe em outra dimensão de percepção e, se ficamos presos a único nível, as manifestações parecem contraditórias, antagônicas. A lógica ternária afasta-nos de polarizações, fragmentações e reduções; aproxima ciência e imaginação, tecnologia e intuição, entre outros exemplos de dualismos existentes no pensamento cartesiano; posiciona-nos num mundo multirreferencial. Segundo o autor (1999, p. 59), a ação dessa lógica induz a uma estrutura aberta, gödeliana22, do conjunto dos níveis de realidade. Esta mesma abertura justifica a impossibilidade de uma teoria completa e fechada, de uma verdade única.

O último pilar da transdisciplinaridade é a complexidade, que, inerente à nossa realidade, interfere no funcionamento de todos os sistemas, inclusive o cognitivo, influenciando qualquer pesquisa. Morin discutiu esse tema em algumas de suas obras. O autor foi à etimologia da palavra, para esclarecer as características do que chamamos complexo23 e apresentou um conjunto de princípios metodológicos24, apresentados no item 1.2.1.

Moraes e Valente (2008), ao refletirem sobre a pesquisa transdisciplinar e o pensamento complexo, apresentaram os operadores da complexidade que regem nossa realidade e deveriam ser considerados na atitude transdisciplinar. São princípios que podem nortear a metodologia de pesquisa, o planejamento de uma aula e, principalmente, as atitudes do pesquisador e/ou educador que busca uma atitude transdisciplinar. Esta é uma abordagem que atravessa as fronteiras das áreas do saber, para promover o diálogo, considera a relação da parte com o todo e a interdependência entre os sistemas vivos. Na educação, dois de seus principais objetivos são a contextualização e a formação de seres humanos plenos, não fragmentados e que consideram a complexidade da realidade.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          unificado por um estado T situado num nível de Realidade imediatamente vizinho; 2. por sua vez, este estado T está ligado a um par de contraditórios (A', não-A'), situado em seu próprio nível; 3. o par de contraditórios (A', não-A') está, por sua vez, unido por um estado T' situado num nível diferente de Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternário (A', não-A', T'). O processo interativo continua infinitamente, até o esgotamento de todos os níveis de Realidade conhecidos ou concebíveis." (NICOLESCU, 1999, p. 58-59)

22 “

O teorema de Gödel nos diz que um sistema de axiomas suficientemente rico, leva, inevitavelmente, a resultados quer indecidíveis, quer contraditórios. [...] A estrutura gödeliana do conjunto dos níveis de Realidade, associada à lógica do terceiro incluído, implica a impossibilidade de elaborar uma teoria completa para descrever a passagem de um nível ao outro e, a fortiori, para descrever o conjunto dos níveis de Realidade." (NICOLESCU, 1999, p. 60-61)

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"Complexus significa que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade" (MORIN, 2000, p. 38).

24 Apresentamos o pensamento complexo e seus princípios nesta dissertação, na subseção "1.1.3 O pensamento

  Empregar os fundamentos da transdisciplinaridade a uma proposta educativa é ampliar as possibilidades de conexão com o mundo e valorizar o papel de cada ser nessa empreitada de aprendizado. Na pesquisa, a transdisciplinaridade muda a atitude diante da investigação; o sujeito pesquisador passa a observar, refletir e agir de outra forma, não mais como um cientista neutro e afastado de seu "objeto de pesquisa". Há a leitura de um sujeito que interpreta e constrói sua realidade, que influencia o "sujeito". Isso, assumidamente, determinará os rumos de uma pesquisa transdisciplinar. A objetividade imparcial não existe, afinal, tudo passa pela subjetividade humana.

Apesar das leis que operam o funcionamento das coisas no mundo e na realidade, o homem tem autonomia na construção histórica. É ele quem lê, interpreta, dá sentido às coisas, constrói a cultura e por ela é construído. É preciso termos consciência desses processos, para agir com responsabilidade e ética, tanto na pesquisa como na educação.

A realidade manifesta-se a partir do que somos capazes de ver, de perceber, de interpretar, de construir, de desconstruir e reconstruir tanto o conhecimento como a realidade. Consequentemente, a realidade revelada pelo pesquisador não é uma representação fiel do real, mas uma de suas possíveis interpretações, a partir de processos codeterminados, ocorrentes nas relações sujeito/objeto. Portanto, é uma realidade revelada pela pesquisa e dependente do sujeito observador que a está "pilotando". (MORAES; VALENTE, 2008, p. 24)

A transdisciplinaridade considera a realidade com toda a complexidade que nela está inscrita, e seus métodos não poderiam ser diferentes. Seus traços fundamentais são o rigor, a tolerância e a abertura. Para isso, precisamos ser curiosos, flexíveis, dinâmicos, abertos às incertezas e às emergências no percurso e atentos às tendências reducionistas e fragmentadoras; aceitar que não existe verdade única, que, ao contrário, muitas são as leituras possíveis. O emprego de estratégias variadas aliado à prudência pode ser positivo no caminho de pesquisa e reflexões que tratam de questões humanas, como a educação. Trabalha-se a razão junto à sensibilidade, coloca-se o conhecimento científico e o imaginário lado a lado, pois ambos têm sua importância. Se a transdisciplinaridade é eixo de uma pesquisa ou de um processo educativo, deveria orientar todas as ações: o planejamento, a pesquisa teórica, as reflexões e a interpretação dos dados. Assim, quanto mais o educador for capaz de entender a complexidade da sua realidade, mais rico será o seu trabalho.

Esse panorama inicial e as primeiras reflexões constituem os fundamentos da pesquisa, o entendimento da emergência do novo paradigma e seus princípios. A transdisciplinaridade incorpora o pensamento complexo exposto por Morin (2000, 2009, 2011) e abrange o pensamento ecossistêmico apresentado por Moraes (1997, 2004, 2008). Como atitude

  metodológica de pesquisa, torna-se possibilidade de caminho para uma proposta de educação em sintonia com as características de nossa realidade contemporânea.

 

2. EDUCAÇÃO, ARTE E DESIGN

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