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A transmissão intergeracional do mau trato, da negligência e do abuso sexual

Capítulo I O mau trato, a negligência e o abuso sexual na infância

5. A etiologia do mau trato e da negligência na vitimização das crianças e dos adolescentes

5.5. A transmissão intergeracional do mau trato, da negligência e do abuso sexual

A existência de mecanismos que favorecem a perpetuação do abuso e da negligência em várias gerações da mesma família tem sido aprofundada em diversos estudos. Estes trabalhos visam indagar que relações se verificam entre os maus tratos vividos no passado do indivíduo, por exemplo na infância, e os comportamentos de agressão relativamente aos seus filhos protagonizados na idade adulta e os seus resultados têm permitido a adequação dos programas de prevenção e intervenção neste domínio (Egeland, 1988).

Em grande parte destas investigações, parte-se de um pressuposto teórico que defende a ocorrência de uma identificação com o agressor por parte da vítima (Ferenczi, 1990). Ou seja, nas crianças que foram vítimas de mau trato ou negligência, as relações de objecto são afectadas pela constelação abusador-vítima (Green, 1998), o que as poderá

113 tornar pais maltratantes. Outro dos princípios, inspirado na teoria da vinculação, propõe, à semelhança do que se verifica com os modelos internos de funcionamento, que os padrões de comportamento parental são transmitidos de geração em geração (Morton & Browne, 1998).

A convicção de que a criança abusada se torna um adulto maltratante foi largamente defendida por muitos autores, apesar da inexistência de fundamentação empírica consistente até à década de 90 (Machado, 1998). Recentemente, porém, são vários os estudos a concluírem que o facto de o pai ou a mãe terem sido vítimas de abuso durante a sua infância aumenta a probabilidade de se tornarem maltratantes ou negligentes na educação dos seus filhos (Narang & Contreras, 2000; DiLillo, Tremblay & Peterson, 2000; Éthier, Lacharité & Couture, 1995, citados por Machado, 1998; Paúl & Domenech, 2000; Spieker, Bensley, McMahon, Fung & Ossiander, 1996). Um dos primeiros estudos que confirmou a relação entre a experiência de abuso na infância do cuidador e os comportamentos maltratantes em relação à criança foi conduzido por Kaufman e Zigler (1987). Os autores verificaram que cerca de 30% dos pais maltratantes haviam também sido vítimas de abuso na sua infância. Apesar disso, existe um grande número de pais que passaram por experiências de mau trato que não reproduzem esses comportamentos na relação com os seus filhos. E, embora não se saiba exactamente que mecanismos levam à interrupção deste ciclo, a possibilidade de estabelecer uma relação com um adulto significativo não-abusivo na infância ou uma relação de apoio na idade adulta (com um parceiro, amigo ou terapeuta) parece estar associada à redução de comportamentos maltratantes (Egeland, Jacobvitz & Sroufe, 1988; Paúl, Milner & Múgica, 1995). Outro dado interessante é o facto de, quanto maior é a frequência de comportamentos maltratantes que as mães evidenciam para com os seus filhos, mais tendem a negar a sua própria experiência de abuso durante a infância e a idealizar o seu passado (Machado, 1996). Ou seja, a incapacidade de reflexão sobre as experiências pessoais e de distanciamento do passado traumático permite cristalizar mecanismos de defesa como o da negação e contribuem para a perpetuação do mau trato relativamente à geração seguinte. Estas mulheres não apresentam, portanto, sintomatologia relacionada com o abuso e parecem não ter tido a possibilidade, ou não ter conseguido, estabelecer relações isentas da problemática da vitimização. Isto significa que não lhes foram proporcionadas experiências de vinculação correctoras das situações de maus tratos (Gara et al., 1996, citados por

Figueiredo, 1998b; Paúl et al., 1995). O estudo conduzido por Egeland e Susman-Stillman em 1996 (citados por Green, 1998) parece corroborar estas conclusões. Os investigadores comparam mães que além de maltratadas na infância também maltratavam os seus filhos com mães que apesar das experiências de abuso conseguiram interromper o ciclo do mau trato. Verificaram que as mães do primeiro grupo não foram capazes de falar acerca das suas experiências traumáticas, enquanto que as segundas conseguiram revelá-las a um indivíduo que as apoiou. Este fenómeno pode estar associado a processos dissociativos, que Narang e Contreras (2000) identificaram como variável moderadora entre o abuso sofrido na infância e o abuso perpetrado sobre os filhos.

A possibilidade de exposição das experiências enquanto vítimas, com o devido apoio por parte de um dos prestadores de cuidados, especialmente no momento da revelação, é um factor importante no sentido da não contaminação da geração seguinte (Green, 1998). De facto, este é um dos momentos sensíveis para as vítimas, do ponto de vista do apoio social e em muitos casos de perturbação relacionada com a ocorrência traumática verifica-se que não houve apoio por parte dos prestadores de cuidados no momento da revelação (Green, 1998). A transmissão intergeracional das práticas educativas dominadas pela agressividade foi estudada por Simons, Whitbeck, Conger e Wu (1991) sob o paradigma da aprendizagem social. Os investigadores constataram que nas 452 famílias observadas em três gerações, a tendência para comportamentos agressivos por parte dos avós em relação aos pais está associada a um maior número de comportamentos agressivos na relação destes com os seus filhos. Por outro lado, esta tendência parece ser mais significativa no caso das mães que nos pais. Esta investigação revelou, no entanto, que as práticas educativas agressivas dos pais não tendem a influenciar a personalidade ou as crenças acerca da parentalidade dos seus filhos.

Recorrendo aos pressupostos teóricos da teoria da vinculação, podemos considerar que a criança maltratada cria um modelo interno de funcionamento baseado numa relação abusiva mãe-criança (quando a mãe é a origem dos abusos), onde o adulto é percepcionado como inacessível ou ameaçador e a criança como inadequada ou pouco merecedora de amor. A exposição prolongada a comportamentos maltratantes ou negligentes facilita a identificação com o agressor, por parte da criança, o que pode ser visto como um mecanismo de defesa (Green, 1998). Outra defesa adicional, pode ser a identificação com o elemento

115 não-protector, geralmente a mãe. Este mecanismo ocorre frequentemente nas situações de abuso sexual em que, de forma consciente ou inconsciente, a mãe permite que a sua própria filha também seja vítima de abuso, geralmente quando o abusador é um familiar próximo, nomeadamente o pai ou o padrasto da criança (Blanco, 1990). Outros mecanismos defensivos são observáveis nestas vítimas, tais como a negação, a clivagem e a dissociação (Green, 1998). O recurso a esta variedade de opções defensivas pode estar, segundo o mesmo autor, na origem da adopção de modelos patológicos de abuso sobre a geração seguinte. Assim, constata-se que as mães negligentes foram, na maior parte das vezes, negligenciadas na sua infância. A vivência desses estados de negligência impede-as de proteger e cuidar dos seus filhos e, geralmente, devido a uma baixa autoestima, impede-as de se cuidarem adequadamente (Gamboa, 2000).

As mães que maltratam os filhos, quando comparadas com mães não maltratantes, identificam-se menos com as suas próprias mães, descrevendo a figura materna como muito pouco consistente, para além de negativa (Gara, Allen, Rosenberg & Herzog, 1996, citados por Figueiredo, 1998b). A maioria destas mulheres descreve relações pobres com os seus próprios prestadores de cuidados, o que terá interferido com o estabelecimento da vinculação (Green, 1998).

As mães negligentes, quando comparadas com mães que não negligenciam os seus filhos, também exibem diferenças significativas no que respeita à relação com a sua mãe. No estudo de Coohey (1995, citado por Figueiredo, 1998b), as mães negligentes classificavam com menos atributos positivos as suas próprias mães, apresentavam uma relação menos positiva com elas e estavam menos interessadas em receber a sua ajuda, quando comparadas com mães não negligentes.

No que se refere a um grupo específico que são as mães adolescentes, considerado de alto-risco para o mau trato infantil (Machado, 1998), verifica-se que o risco da jovem perpetrar maus tratos à criança aumenta significativamente no caso de ter sido vítima de abuso. Spieker e colaboradores (1996) observaram que 83.3% das mães adolescentes com história de abuso sexual crónico foram alvo da intervenção dos serviços de protecção da criança (destinada à protecção dos seus filhos), enquanto que essa percentagem foi de apenas 15.4% no grupo das mães adolescentes sem história prévia de abuso sexual.