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Capítulo I O mau trato, a negligência e o abuso sexual na infância

5. A etiologia do mau trato e da negligência na vitimização das crianças e dos adolescentes

5.2. As características das vítimas

No grupo de factores associados às características das vítimas de mau trato, abuso sexual ou negligência podemos discriminar a idade, o sexo, o comportamento, os problemas de saúde ou de desenvolvimento e o temperamento. Um dos argumentos daqueles que defendem as teorias que atribuem às vítimas um papel essencial nesta sua condição decorre do facto de, numa mesma família, nem todas as crianças serem vítimas de mau trato. De acordo com o modelo transaccional-contextual, estes factores interferem no sentido do aumento ou diminuição da vulnerabilidade do indivíduo à vitimização. Em alguns casos, as características da criança contribuem para promover a ocorrência dos comportamentos maltratantes e noutros para a sua manutenção (Belsky, 1993).

Relativamente à idade, os estudos acerca dos fenómenos de abuso e negligência têm mostrado que a criança é, no contexto familiar, o elemento mais frequentemente sujeito a

mau trato. As crianças mais novas serão mais vulneráveis ao abuso (Belsky, 1993) predominantemente físico e o período de maior risco situa-se entre os 3 meses e os 3 anos (Gelles, 1973). Num estudo sobre os factores de risco psicossocial em famílias de mães toxicodependentes, Nair, Schuler, Black, Kettinger e Harrington (2003) concluíram que o momento de maior vulnerabilidade destas mulheres em relação ao exercício das funções parentais (e em que há maior perigo de mau trato) corresponde aos 18 meses de idade da criança. Nesta idade de intensa exploração do ambiente e de ganhos de autonomia importantes para a criança, a imposição de limites coloca desafios constantes ao prestador de cuidados o que pode contribuir para aumentar a influência de outros factores de risco já existentes.

Algumas circunstâncias específicas podem tornar as crianças mais vulneráveis ao abuso e à negligência, nomeadamente o seu estado de dependência face ao adulto, a sua imaturidade, o seu menor estatuto físico e uma maior tolerância social para com este tipo de comportamentos (Finkelhor & Dziuba-Leatherman, 1994). Esta tolerância é usualmente justificada pela legitimação de determinados comportamentos parentais confundindo-os com o exercício de práticas educativas. Ou seja, a criança é frequentemente vítima de mau trato muitas vezes classificado como “castigo” ao qual é atribuída uma finalidade educativa e organizadora e que tende a variar com as culturas, etnias e civilizações. Por outro lado, as limitações cognitivas das crianças pequenas levam ao uso mais frequente da força física por parte dos educadores. Para além disso, estas crianças tendem a passar mais tempo com o prestador de cuidados, o que as torna mais dependentes desse adulto, não só no aspecto físico mas, também, psicológico. O cuidador, por sua vez, devido a esta dependência acentuada, poderá mais facilmente entrar em estado de exaustão. A vulnerabilidade destas crianças aumenta pelo facto de estarem mais indefesas e incapazes de estabelecer uma rede alargada de interacções sociais significativas (Gelles, 1973). Nestas idades, as crianças apresentam maiores dificuldades (por comparação com crianças mais velhas) no controlo das emoções, encontrando-se especialmente sensíveis no período em que iniciam a marcha, porque efectuam movimentos de autonomia e de exploração do ambiente que podem gerar uma forte resistência nos cuidadores (Belsky, 1993).

Relativamente ao tipo de abusos, as crianças parecem ser mais frequentemente vítimas de mau trato físico, enquanto que nos adolescentes predominam o mau trato

97 psicológico e o abuso sexual (Doueck et al., 1987). Os adolescentes constituem um grupo específico de vítimas de abuso em contexto familiar. Os jovens, por exigirem dos cuidadores a capacidade de exercer a parentalidade de uma forma distinta àquela que se adequa às crianças, estão sujeitos a tipos diferentes de mau trato (Doueck et al., 1987). As competências cognitivas e físicas dos jovens requerem mudanças do ponto de vista da flexibilidade e da adaptação no contexto da relação parental. A própria estrutura familiar é, muitas vezes, abalada por estas alterações que implicam readaptações perante novos papéis e responsabilidades, tanto dos filhos como dos pais. As tarefas desenvolvimentais próprias da adolescência que implicam testar os limites e a procura de independência podem gerar sentimentos de perda de controlo, levando a comportamentos cada vez mais rígidos e controladores dos pais, os quais muitas vezes estão na génese do mau trato (Doueck et al., 1987). Os maus tratos perpetrados sobre adolescentes estão, sob a perspectiva da sua dinâmica, mais aproximados do abuso conjugal que do abuso de crianças (Garbarino, Sebes & Schellenbach, 1984). Nestes casos as questões relacionadas com o poder e a autonomia do abusador e do abusado assumem contornos diferentes do que se observa nas relações entre adulto e criança. Ao contrário do que se observa durante a infância, na maior parte dos casos de mau trato perpetrado sobre jovens, o abusador é do sexo masculino e a vítima do sexo feminino.

Os problemas comportamentais e socioemocionais das crianças maltratadas estão suficientemente documentados na literatura, sendo, apesar disso, difícil determinar se aqueles são a causa ou a consequência dos abusos (Machado, 1996). Os estudos mostram que, estas crianças exibem, desde a idade escolar, maior agressividade face aos pares (bem como no seio da família), maiores dificuldades ao nível do auto-controlo e do equilíbrio afectivo-cognitivo, falhas ao nível das competências sociais e dificuldades de realização escolar (Rieder & Cicchetti, 1989). Problemas comportamentais deste tipo foram também encontrados em investigações desenvolvidas em Portugal, com descrições das crianças maltratadas como rebeldes, agressivas, indisciplinadas e sem sucesso escolar (Amaro, 1986; Amaro, Gersão & Leandro, 1988). Apesar de tanto as crianças maltratadas como negligenciadas apresentarem dificuldades semelhantes em termos de competências sociais, as primeiras evidenciam níveis maus acentuados de agressividade e de rejeição pelos pares,

o que poderá dever-se à adopção de padrões aversivos e pouco afectivos que as caracterizam (Machado, 1996).

A ideia de que a criança pode, de forma consciente ou inconsciente, desencadear comportamentos maltratantes por parte dos seus pais tem sido defendida por alguns autores (Garbarino et al., 1986). Em circunstâncias específicas, agravadas pelo stresse, os comportamentos da criança, que têm como objectivo receber atenção, podem promover reacções violentas. As dimensões perturbação psicopatológica, problemas comportamentais, e dificuldades de aprendizagem também parecem estar associadas a comportamentos maltratantes por parte dos prestadores de cuidados (Hamilton et al., 1999).

O baixo peso à nascença (Ochotorena et al., 1989), as deficiências físicas ou mentais, a prematuridade (Belsky, 1999a; Coimbra, Faria & Montano, 1990; Mangelsdorf et al., 1996), os problemas médicos dos primeiros tempos de vida, a deficiência, designadamente mental (Knutson, 1995), a irritabilidade e o temperamento difícil do bebé (Figueiredo, 1998a), ao interferirem com as suas competências para comunicar com os pais, podem favorecer a ocorrência de comportamentos maltratantes (Figueiredo, 1998a). O temperamento, enquanto estilo comportamental de resposta exibido pelo bebé a uma variedade de estímulos e contextos, começou a ser estudado no âmbito da psicologia do desenvolvimento por Thomas e Chess em finais da década de 70 (Goldsmith, Buss, Plomin, Rothbart, Thomas, Chess, Hinde & McCall, 1987b). Esta dimensão do comportamento das crianças, por afectar a capacidade de interacção com o prestador de cuidados, tende a influenciar as respostas deste e pode justificar as dificuldades de regulação da interacção criança/adulto.

Parecem, portanto, existir características, desde o nascimento da criança, que a colocam em risco de vir a ser vítima de mau trato porque, ao afectarem a sua competência interactiva, interferem com o envolvimento emocional dos pais (Figueiredo, 1997) e com a adequação das respostas às suas necessidades. Quanto às anomalias físicas e ao reduzido poder atractivo da criança, não parecem produzir efeitos directos no sentido da ocorrência de mau trato exercido pelos pais (Knutson, 1995). No entanto, algumas características neonatais parecem interferir no processo de vinculação resultando na consolidação de uma relação pouco segura, frequente em muitas crianças maltratadas (Lyons-Ruth, Connel, Zoll & Stahl,

99 1987). Estas conclusões são de especial importância para o delineamento de programas preventivos com famílias em situação de maior vulnerabilidade.

Em casos de mau trato observam-se, frequentemente, ciclos de interacção perturbada entre pais e filhos. Tal pode dever-se ao facto de, após o abuso, os padrões de comportamento assumidos pela criança serem desadequados pelo que esta tende a colocar-se novamente em risco de ser vítima (McCrone, Egeland, Kalkoske & Carlson, 1994). Esta perspectiva bidireccional é, também, defendida por Wolfe (1985), na medida em que constata que as crianças maltratadas apresentam mais comportamentos difíceis comparando com crianças integradas em famílias sem este tipo de problemas. Existem, no entanto, investigações em que não foram encontradas diferenças nos comportamentos de interacção com os pais, em famílias com crianças maltratadas e em famílias onde não se registou este tipo de problemas (Mash, Johnston & Kovitz, 1983). O que parece ser diferente é a forma como os pais percepcionam e interpretam os comportamentos dos seus filhos. Ou seja, como vimos anteriormente, os pais de crianças maltratadas tendem a relatar os comportamentos dos seus filhos como difíceis, não sendo esta avaliação corroborada por observadores independentes (Mash et al., 1983). Assim, o papel do comportamento das crianças na etiologia do mau trato permanece por esclarecer. Entre outros aspectos, isso deve-se ao facto de os delineamentos experimentais usados não permitirem a comparação entre os resultados dos vários estudos (Belsky, 1993).

Uma das metodologias adoptadas para testar a influência do comportamento das crianças na sua própria vitimização tem partido da comparação entre os comportamentos de interacção exibidos pelos seus pais tanto na relação com os seus filhos, como com outras crianças. Um desses estudos, da autoria de Anderson, Lytton e Romney (1986), mostrou que, nas famílias de crianças com perturbações de comportamento, são os comportamentos desadequados dos filhos que desencadeiam reacções menos normativas nos pais. Uma das limitações à generalização deste tipo de conclusões prende-se com o facto de muitos destes comportamentos só se registarem após a ocorrência ds mau trato, o que dificulta a distinção entre a causa e a consequência (Belsky, 1993).

Outra das formas a que a investigação tem recorrido para apurar a influência das características da criança no mau trato de que é vítima é a avaliação de intervenções em que se promove a mudança de comportamentos dos pais e das crianças (Belsky, 1993). Num

desses estudos, foi possível mostrar que, através de uma alteração nos comportamentos maternos, nomeadamente nas dimensões sensibilidade e disponibilidade para a interacção, é possível diminuir os comportamentos problemáticos das crianças (Crittenden, 1988a).

No que se refere às situações de negligência, com base nos estudos efectuados até agora, não é possível concluir que existam diferenças significativas nos comportamentos das vítimas, por comparação com as crianças dos grupos de controlo (Wolfe, 1985).