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Capítulo I O mau trato, a negligência e o abuso sexual na infância

6. As sequelas do mau trato, da negligência e do abuso sexual na infância

6.4. As consequências sobre a vinculação

Os estudos acerca da vinculação em crianças vítimas de mau trato tiveram início com os trabalhos pioneiros de Schmidt e Eldridge (1986), Egeland e Sroufe (1981), Crittenden (1985, 1988a) e de Carlson, Cicchetti, Barnett e Braunwald (1989). Nestas investigações foi utilizado, como método para determinar o padrão de vinculação, a Situação Estranha. Este procedimento foi elaborado no âmbito do projecto de investigação longitudinal do desenvolvimento da vinculação no primeiro ano de vida, conduzido em Baltimore, nos Estados Unidos da América, com uma amostra constituída por 26 díades mãe-bebé (Ainsworth, Blehar, Waters & Wall, 1978). As razões para a elaboração deste procedimento relacionam-se com as observações que Ainsworth havia efectuado, anteriormente, numa aldeia do Uganda, junto de 28 díades durante um período de sete meses (Ainsworth, 1963). A Situação Estranha consiste numa série de oito episódios com a duração aproximada de três minutos cada, nos quais ocorrem situações de separação e de reencontro entre a mãe e a criança numa sequência previamente organizada. A avaliação da vinculação (em termos de qualidade) depende da análise do comportamento da criança, particularmente nas situações de reencontro que a Situação Estranha promove (Cicchetti, 1987; Pierrehumbert, 1992). A classificação original permitia distinguir três padrões de vinculação: o padrão de vinculação inseguro-evitante (A), o padrão seguro (B), e o padrão inseguro-resistente ou ambivalente (C). A cada um destes padrões correspondem determinados comportamentos exibidos pelas crianças no decurso da situação experimental. Em amostras não clínicas de crianças, e independentemente do seu nível socioeconómico, Ainsworth e colaboradores (1978) encontraram a seguinte distribuição dos padrões de vinculação: 70% das crianças apresentam uma vinculação segura, e as restantes 30% uma vinculação insegura (20% no grupo A e 10% no grupo C).

Foi graças aos comportamentos de vinculação durante a Situação Estranha (Ainsworth et al., 1978) observados em amostras de crianças maltratadas que surgiu a necessidade de acrescentar um quarto padrão aos três inicialmente propostos pelos autores. A concepção do padrão desorganizado/caótico (D) está, portanto, intimamente relacionada com a investigação desenvolvida com amostras de alto-risco (crianças abusadas). No estudo

139 de Crittenden (1988a) observou-se um elevado número de crianças maltratadas cuja classificação mais adequada seria o padrão A/C (posteriormente definido como padrão D), sendo que 70% das crianças abusadas e 100% das crianças simultaneamente abusadas e negligenciadas apresentavam este padrão. Também no estudo realizado por Beeghly e Cicchetti (1994) 40% das crianças da amostra de alto-risco apresentaram este padrão de vinculação. Antes da sua concepção, um terço das crianças que mereceriam a classificação D eram consideradas como apresentado uma vinculação segura (Field, 1987). Este facto, por si só, era contraditório à previsão teórica de Bowlby, que considerava muito pouco provável o aparecimento de vinculações seguras em condições de prestação de cuidados desadequados (Cicchetti et al., 1991). Assim, tornou-se urgente a consolidação teórica e empírica daquela quarta categoria, mais frequente em populações mais vulneráveis. Tal como Cicchetti (1996) observou, os padrões bizarros de vinculação têm tendência para ocorrer em ambientes de prestação de cuidados disfuncionais. De entre os mecanismos que poderão estar na base da desorganização que se encontra em crianças maltratadas, pode estar a emergência muito precoce do medo e a influência que este tipo de sentimento tem na capacidade de auto-regulação (Cicchetti, 1996). De facto, o comportamento parental sentido pela criança como assustador parece ser um importante preditor da vinculação de tipo D (Schuengel, Brakermans-Kranenburg & van IJzendoorn, 1999). Este padrão de vinculação decorre da vivência de um conflito de motivações incompatíveis, por um lado, a necessidade de se aproximarem do prestador de cuidados e, por outro, a necessidade oposta, com o objectivo de se protegerem da ameaça que aquele constitui (Carlson et al., 1989). Também Carlson (1998) observou um número elevado de vinculações desorganizadas em crianças que experienciaram uma prestação de cuidados intensiva ou intrusiva e em crianças maltratadas durante o primeiro ano de vida.

A investigação tem mostrado que as crianças maltratadas, apresentam padrões de vinculação predominantemente inseguros quando comparadas com crianças não maltratadas (Benavente, 2005; Carlson 1998; Carlson et al., 1989; Crittenden, 1985; Crittenden, 1988a; Egeland et al., 1981; Finzi, Cohen, Sapir & Weizman, 2000; Schneider-Rosen et al., 1984; Zeanah et al., 2005) e que as características da interacção entre a criança maltratada e o agressor, conjugadas com o desenvolvimento de dificuldades comportamentais nas vítimas promovem a manutenção do abuso (Crittenden, 1985). Na investigação com amostras de

crianças vítimas de mau trato encontram-se percentagens de padrões de vinculação insegura que variam entre os 70% e os 100%, (Cicchetti, 1987). A ocorrência de mau trato parece perturbar o equilíbrio entre a motivação para a criança se manter segura, para estabelecer relações seguras com os adultos e a motivação para explorar o mundo de uma forma promotora de competências (Aber & Allen, 1987). Apesar disso, as crianças maltratadas podem alterar os seus comportamentos de interacção, desde que o interlocutor estabeleça com elas uma relação diferente da que experimenta com o adulto maltratante, o que demonstra a sua resiliência (Crittenden, 1985; Higgins et al., 2000). No estudo de Egeland e Sroufe (1981), por exemplo, observou-se um grande número de casos de vinculação insegura em crianças maltratadas com 1 ano de idade mas quando reavaliadas aos 18 meses, 6 das 8 crianças abusadas apresentavam já um padrão de vinculação segura. Num estudo semelhante, Crittenden (1985) não encontrou a mesma redução de padrões de vinculação insegura nas crianças da sua amostra, o que poderá dever-se à: 1) diferente gravidade dos maus tratos sofridos, 2) classificação incorrecta das crianças ou, 3) alteração dos comportamentos da mãe durante os seis meses que decorreram entre as duas avaliações deste estudo (Egeland et al., 1981).

As relações de qualidade mantidas durante a infância parecem, de facto, contribuir para o bem estar psicológico durante a infância (Ezzell, Swenson & Brondino, 2000) e na idade adulta (Collishaw, Pickles, Messer, Rutter, Shearer & Maughan, 2007). O bom ajustamento psicológico também se observa em vítimas de mau trato ou de negligência na infância quando há relações conjugais de apoio no início da idade adulta (DuMOnt, Widom & Czaja, 2007). Em famílias classificadas como multiproblemáticas, contudo, os recursos pessoais podem não ser suficientes para que as crianças maltratadas venham a apresentar um comportamento adaptado ainda durante a infância (Jaffee, Caspi, Moffitt, Polo-Tomás & Taylor, 2007).

Para além do impacto do abuso ou negligência na vinculação, os padrões de interacção com o prestador de cuidados têm merecido a atenção dos investigadores. Um desses trabalhos foi efectuado em 1987 por Lyons-Ruth e colaboradores e, através da análise dos seus resultados, foi possível caracterizar os padrões de interacção das mães maltratantes através de observações domiciliárias. Estas mães apresentavam dificuldades de relacionamento com os seus filhos em aspectos muito evidentes (ex.: lançando a criança para

141 a cama, agredindo-a fisicamente, não proporcionando a adequada supervisão e prestação de cuidados, etc.) e, também, em aspectos mais subtis da interacção, que incluem indicadores não verbais. A hostilidade materna foi associada ao evitamento da criança enquatnto a ausência de uma comunicação responsiva por parte da mãe foi associada à resistência ou a uma mistura de evitamento e resistência (Lyons-Ruth et al., 1987). Os autores defendem, quanto à classificação do padrão de vinculação, que os comportamentos de vinculação em crianças maltratadas estão organizados de forma diferente da observada em amostras de classe média de baixo-risco.

Sobretudo na última década, para além da investigação acerca dos efeitos do abuso ou negligência, temos assistido à proliferação de estudos que procuram determinar a qualidade das vinculações das vítimas e dos seus modelos de representação interna das figuras de vinculação, do self e do self em relação com os outros (Cicchetti et al., 1995). Um desses estudos foi desenvolvido por Toth, Cicchetti, Macfie & Emde (1997). Nesta investigação em se compararam as auto-representações de crianças vítimas de negligência abuso físico e abuso sexual com as de crianças não abusadas ou negligenciadas foram observadas diferenças qualitativas significativas. As diferenças surgiram também nas representações maternas e no comportamento (controlador e menos responsivo das crianças vitimizadas) perante o observador durante a avaliação psicológica.

Segundo a teoria da vinculação, no decorrer da interacção com a mãe, ou sua substituta, a criança constrói modelos internos de funcionamento que constituem representações de si próprio e dos outros, determinando o modo como se irá organizar a sua acção para com as pessoas e objectos em seu redor (Bowlby, 1980; Collins, 1996). A interiorização das experiências de interacção com o principal prestador de cuidados parece ocorrer entre os 9 e os 12 meses de idade e, em função das características mais ou menos adequadas da interacção vivida com a mãe, a criança desenvolve um modelo interno (idealmente caracterizado por um autoconceito positivo e pela confiança na disponibilidade dos seus pais e do contexto social em geral) que garante, ou não, uma acção adaptada à realidade física e social (Figueiredo, 1998b). Com o estabelecimento de uma vinculação segura por parte da criança, surge um modelo representacional das figuras de vinculação como sendo responsivas, disponíveis e susceptíveis de proporcionar ajuda e bem estar, e um modelo complementar de si própria como sendo uma pessoa potencialmente capaz de ser

amada (Cicchetti et al., 1995). A confiança que estabelece em si e nos outros permite que a criança seguramente vinculada possa entrar mais facilmente numa relação interpessoal calorosa e de confiança com os outros, ao longo da sua trajectória de desenvolvimento (Figueiredo, 1998b).

As crianças cujas experiências precoces de vinculação não foram bem sucedidas tendem a desenvolver vinculações inseguras e expectativas negativas acerca de si próprias e dos outros. De acordo com os princípios relacionados com a estabilidade das representações da viculação, este tipo de expectativas irá acompanhá-las ao longo da vida e irá associar-se a uma tendência persistente para esperar que os outros se mostrem pouco disponíveis, inconstantes ou rejeitantes. Nos indivíduos que passaram por experiências de mau trato e de negligência durante a infância, predominam, por isso, os padrões inseguros de organização da vinculação, sendo frequentes os comportamentos violentos e abusivos, quer nas relações amorosas, quer nas relações que vêm a estabelecer com os seus próprios filhos (Cicchetti et al., 1995).

Os modelos internos de relacionamento interpessoal elaborados pelas crianças maltratadas reflectem a insegurança e o medo originados pela sua relação com os pais, levando-as ao estabelecimento de relações de aproximação-evitamento com os outros, o que origina padrões muito desajustados de relacionamento (Figueiredo, 1998b). Estes modelos internos de funcionamento também parecem afectar o equilíbrio cognitivo-afectivo, com uma assimilação muito mais rápida dos estímulos agressivos (Rieder et al., 1989). Este facto permite fundamentar a ocorrência, naquele primeiro grupo de crianças, de mais problemas de comportamento, mais comportamentos agressivos (Kaufman et al., 1989), mais fantasias agressivas (Kinard, 1980) e a dificuldade ao nível da regulação dos afectos, particularmente quando há que fazer uma gestão dos afectos negativos e dos impulsos (Rieder et al., 1989).

Numa amostra de mães adolescentes, Matos (2000) observou que o mau trato ocorrido na infância destas jovens contribuiram para a emergência de uma representação insegura da vinculação e para a ocorrência de interacções menos adequadas com os seus bebés.

Em amostras de crianças institucionalizadas vítimas de separações frequentes ou de traumas severos (ou crónicos) relacionados com a prestação de cuidados parece haver especificidades relativamente à organização da vinculação (Howe & Fearnley, 2003).

143 Recorrendo novamente a crianças romenas institucionalizadas, avaliadas com a Situação Estranha (conjugada com um instrumento específico para determinar a formação da vinculação), Zeanah et al., 2005) concluíram que, na generalidade dos casos não se observa uma organização da vinculação relativamente a um cuidador privilegiado. O número de crianças não classificáveis ou com uma vinculação desorganizada é semelhante ao do estudo de Carlson e colaboradores (1989) com crianças maltratadas. Este facto permite, do ponto de vista da vinculação, estabelecer um paralelo entre estes dois contextos de prestação de cuidados. O mais preocupante entre as crianças institucionalizadas é a aparente incapacidade para desenvolver um padrão de vinculação (qualquer que seja). Por isso, os autores deste estudo conceberam a hipótese de, nestes casos, estarmos perante um padrão designado por

unorganized (não organizado) que associam à situação de privação afectiva grave. Nestas

circunstâncias, as crianças não conseguiram estabelecer uma relação selectiva com um dos cuidadores e, por isso, não exibem nenhum dos quatro padrões de vinculação. São incapazes de responder recorrerendo a estratégias relacionais em contextos que apelam à regulação emocional. Por outro lado, entre estas crianças, há um grande número de perturbações graves da vinculação enquadráveis nas perturbações reactivas da vinculação descritas na DSM-IV (APA, 1994) avaliadas através da Entrevista dos Distúrbios da Vinculação (Smyke & Zeanah, 1999) ou de uma entrevista semi-estruturada aos pais concebida para avaliar a perturbação da vinculação de tipo desinibida (Rutter, Colvert, Kreppner, Beckett, Castle, Groothues, Hawkins, O’Connor, Stevens & Sonuga-Barke, 2007). No grupo de crianças romenas (que viveram em instituições) adoptadas na Grã-Bretanha, observaram-se alterações da vinculação no sentido da desinibição após sete anos de integração nas famílias. Este facto parece apontar no sentido da influência de algum tipo de mecanismo biológico para explicar a estabilidade da perturbação. Por outro lado, é essencial avaliar, do ponto de vista da família, factores que possam influenciar a manutenção deste tipo de distúrbios. De qualquer modo, o acompanhamento destas crianças nos estudos em curso no Reino Unido poderão, no futuro, contribuir para esclarecer estas questões (Rutter et al., 2007).

No que concerne aos efeitos do mau trato ocorrido na infância sobre a vinculação avaliada na idade adulta a investigação mostrado que este tipo de experiências estão associadas a representações não resolvidas e a níveis elevados de dissociação, confusão identitária e problemas relacionais (Bailey, Moran & Pederson (2007).