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As características das famílias e o enquadramento social

Capítulo I O mau trato, a negligência e o abuso sexual na infância

5. A etiologia do mau trato e da negligência na vitimização das crianças e dos adolescentes

5.4. As características das famílias e o enquadramento social

O estudo das famílias em que se registam episódios de mau trato, negligência ou abuso sexual sobre crianças ou adolescentes tem permitido identificar algumas características que tornam alguns agregados mais vulneráveis que outros à ocorrência deste tipo de fenómenos.

A variável estatuto socioeconómico tem sido associada às famílias maltratantes e negligentes (Brown, Cohen, Johnson & Salzinger, 1998; Olsen & Holmes, 1986; Sidebotham, Heron & ALSPAC study team; 2006), facto que não parece resultar de possíveis enviezamentos ao nível das denúncias (Drake & Zuvarin, 1998; Milner, 1998). Recentemente, Rutter (2003) classifica a pobreza como um factor de risco distal para o mau trato na infância pelo facto de tornar a parentalidade mais difícil. As famílias com problemas económicos vivem em ambientes de maior stresse e, geralmente, têm menos tempo para dedicar às crianças (McGuiness & Schneider, 2007).

Factores como o baixo nível socioeconómico e educativo dos pais maltratantes, associados ao desemprego e falta de qualificação profissional, contribuem para uma permanente carência económica, factor recorrentemente associado aos abusos (Ochotorena et al., 1989; Egeland, Jacobvitz & Sroufe, 1988). No entanto, parece haver uma efeito interactivo ente o estatuto socioeconómico e o mau trato físico perpetrado sobre crianças (Trickett, Aber, Carlson & Ciccheti, 1991). De acordo com Trickett e colaboradores (1991), este facto sugere a existência de diferentes relações entre o nível socioeconómico e as práticas educativas, quer em famílias maltratantes quer não maltratantes. A pobreza extrema é o factor sociocultural mais associado às lesões físicas por mau trato (Peterson et al., 1994). A utilização dos castigos físicos pode, nestes contextos, constituir o único recurso ao alcance dos pais para enfrentar as exigências das crianças (Belsky, 1993).

O baixo nível socioeconómico, associado a factores como problemas de comunicação, dificuldades no controlo da agressividade ou interacções perturbadas quer na relação pais-criança quer na relação conjugal (Milner, 1998; Renner & Slack, 2006) faz aumentar a probabilidade de ocorrência de mau trato na infância e adolescência. De facto, uma das variáveis que tem assumido cada vez maior importância do ponto de vista da avaliação e da investigação acerca da etiologia do mau trato a crianças, e que se tem

revelado um bom preditor de situações de abuso na infância, é a violência conjugal. A investigação no âmbito da violência doméstica tem mostrado que, para além da interacção agressor/criança, é também importante considerar a relação de casal, bem como as diferentes dinâmicas relacionais entre os vários elementos da família.

De acordo com Layzer, Goodson e DeLange (1986) a violência conjugal e o abuso de crianças ocorrem concomitantemente em 40% a 60% dos casos. Ou seja, para além de testemunharem episódios de violência, estas crianças encontram-se em maior risco de serem também elas maltratadas (Kerig & Fedorowicz, 1999; Reams, 1999). Os estudos acerca dos efeitos da violência interparental sobre o desenvolvimento da criança têm demonstrado as graves consequências deste tipo de violência doméstica (Antoni & Koller, 2005; Currie, 2006; Landsman & Hartley, 2007; Sani, 1999, 2002, 2004, 2005).

No que concerne à estrutura familiar, a investigação tem revelado uma vulnerabilidade ao abuso intrafamiliar acentuada em crianças que pertencem a agregados monoparentais (Hughes, Earls, Odom, Sayers, Whiteside & Sherman, 2005) ou a agregados reconstruídos (Browne & Saqi, 1988a; Gelles, 1989; Nolan, O’Flaherty, Turner, Keary, Fitzpatrick & Carr, 2002). Relativamente ao abuso sexual perpetrado em contexto familiar, a investigação mostra que a maioria das mulheres (69.6%) dos abusadores que não são pais da vítima viveram experiências incestuosas na sua infância e quando o agressor é o pai da criança, essa percentagem desce para 49.1% (Faller, 1989).

Do ponto de vista do risco psicossocial, foram identificados factores de risco importantes para os comportamentos maltratantes ou negligentes em relação aos filhos: monoparentalidde (Gelles, 1989), separação precoce da mãe (Brown et al., 1998), maternidade na adolescência (Gelles, 1989), dimensão da família (Brown et al., 1998), acontecimentos de vida, estado psicológico da mãe, risco perinatal (Brown et al., 1998), violência doméstica, violência extra-familiar e detenções (Nair et al., 2003). Outro dado importante é que, a acumulação de riscos deste tipo faz aumentar dramaticamente o perigo de vitimização para a criança (Brown et al., 1998).

As características do enquadramento social das famílias, designadamente os níveis de apoio social e comunitário, são variáveis que têm ganho importância no estudo da etiologia do abuso e negligência na infância e adolescência. De acordo com o modelo proposto por Brofenbrenner (1986), é da conjugação dos factores que operam nos níveis individual,

107 familiar e ecológico que emergem as circunstâncias propícias ao aparecimento destes fenómenos. Determinadas circunstâncias que levam ao aumento do stresse vivido na família, como por exemplo uma doença física ou a perda de emprego, podem aumentar as vulnerabilidades face ao mau trato a crianças (Cicchetti et al., 1995). Os pais maltratantes, quando comparados com pais não maltratantes, tendem de resto a relatar maior stresse pessoal e global (Conger et al., 1979). No que concerne ao stresse socioeconómico, quando não é acompanhado de apoio institucional adequado, contribui para a ocorrência de um número considerável de situações de mau trato e de negligência sobre crianças (Garbarino, 1976). No entanto, existem algumas limitações metodológicas nestes estudos que justificam um maior investimento neste domínio (Milner, 1998).

A investigação sobre a procura de apoio pelas famílias maltratantes, nomeadamente o seu envolvimento em actividades da comunidade (como as que estão associadas às paróquias), é inferior à que se encontra em grupos de controlo (Polansky, Gaudin, Ammons & Davis, 1985). Isto parece significar que estão menos dispostas ou capazes de construir redes de apoio importantes. De facto, a investigação tem demonstrado que o isolamento e a ausência de apoio social estão relacionados com os comportamentos dos pais maltratantes (Polansky et al., 1985). Existem, de resto, dados suficientes para permitir uma associação entre o isolamento social e a existência de laços sociais limitados e o risco de abuso ou de negligência na infância (Belsky, 1993; Whipple & Webster-Stratton, 1991; Williamson, Bourdin & Howe, 1991). Por isso, é inevitável ter em conta os contextos comunitários reais na etiologia do mau trato e da negligência (Belsky, 1993). Estudos efectuados em diversas culturas têm mostrado que as mães com pouca ou nenhuma assistência periódica tendem a ser mais insensíveis e rejeitantes para com os seus filhos comparando com mulheres que beneficiam de apoio regular (Korbin, 1991) e que programas de visitas domiciliárias por enfermeiras ou paraprofissionais contribuem para a redução de comportamentos maltratantes ou negligentes dos cuidadores (Olds et al., 1995; Olds et al., 1998a; Olds et al., 1998a) bem como para diminuir os efeitos dos factores de risco no desenvolvimento das crianças (Lyons-Ruth, Connell, Gruebaum & Botein, 1990). Por outro lado, as famílias maltratantes comparadas com famílias não maltratantes, referem maior conflitualidade e menor apoio prestado pela sua própria família de origem (Milner, 1998).

O isolamento social e a falta de apoio têm sido justificados pelo facto de muitas destas famílias mudarem frequentemente de residência (Spearly & Lauderdale, 1983), ou seja, esta ausência de apoio é consequência de um comportamento activo (ainda que não intencional) dos adultos (Seagull, 1987).

A associação entre o bem-estar psicológico e físico, o apoio social percebido, o stresse e o funcionamento psicológico é recorrente na literatura. Para além disso, sabemos que o stresse tem um impacto negativo directo tanto no apoio social percebido como no funcionamento psicológico (Kinard, 1995). Isto significa que o exercício inadequado das funções parentais pode ser influenciado pela conjugação de elementos geradores de stresse com percepções de reduzido apoio social pelos cuidadores.

Em Portugal, Amaro e colaboradores (1988) apuraram que, segundo a percepção dos técnicos, um terço das famílias maltratantes residentes em Lisboa encontravam-se em situação de marginalização social e na região do Porto este número reduz-se para cerca de um quarto. As dificuldades de relacionamento interpessoal e as reduzidas capacidades de tolerância ao stresse levam a um sentimento de aversão perante as situações de relação com os outros, culminando no evitamento e isolamento social (Machado, 1996). Este afastamento da vida da comunidade, por outro lado, não contribui para reforçar e monitorizar o desempenho das funções parentais que, normalmente, é fonte de estatuto social e de interesse interpessoal. Deste modo, assiste-se a uma diminuição acrescida das capacidades de resolução de problemas e o confronto com modelos comportamentais mais adequados é impossibilitado bem como a hipótese de receberem informações e orientações acerca das suas práticas (Ochotorena et al., 1989).

Apesar de os pais maltratantes descreverem o ambiente das suas zonas de residência como pouco amigável e retratarem os seus vizinhos como indisponíveis para os ajudar, os outros habitantes da mesma zona (não maltratantes) fazem, relativamente aos mesmos indicadores, uma descrição muito diferente (Belsky, 1993). No entanto, Polansky e colaboradores (1985) concluíram que os vizinhos estão, de facto, menos disponíveis para prestar assistência a famílias negligentes que a outras famílias da mesma comunidade. Estes dados, que confirmam a ausência de reciprocidade nas relações sociais, são compatíveis com as conclusões de Crittenden (1985), no sentido em que as famílias negligentes e maltratantes

109 solicitam mais assistência do que aquela que proporcionam (relativamente às famílias em que não se verificam este tipo de problemas). Os adultos maltratantes comportam-se de forma a desencorajar a formação de relações duradouras com os outros adultos da vizinhança (Crittenden, 1985). Numa tentativa de explicação deste comportamento, Polansky e colaboradores (1981) equacionam o facto de a história de desenvolvimento dos pais negligentes poder estar na origem deste distanciamento relacional, porque evitam sair emocionalmente magoados da relação e porque não desenvolveram as competências sociais necessárias para uma vivência adequada das relações de vizinhança. No que concerne à negligência observada em relação a alguns filhos mas não a outros, Belsky (1993) justifica que esta pode ser a forma de, em circunstâncias de grande escassez de recursos, estes pais conseguirem investir em alguns filhos.

No estudo do envolvimento comunitário em dois bairros semelhantes, do ponto de vista socioeconómico, mas que apresentavam grandes variações entre si no que diz respeito a mau trato exercidos sobre crianças, Garbarino e Kostelny (1992) concluíram que, na comunidade em que o índice de maus tratos era superior, os habitantes exibiam grandes dificuldades em relatar aspectos positivos acerca da zona onde viviam. Os programas de intervenção comunitária funcionavam em espaços exíguos e escuros e o visitante era frequentemente confrontado com actividades criminosas em curso. Ao contrário, no bairro em que o número de crianças maltratadas era inferior, as pessoas mostravam-se ansiosas por falar da sua comunidade, referindo tratar-se de uma zona pobre mas decente para se viver. Nestes núcleos habitacionais, havia mais serviços ao dispor dos habitantes e lideranças políticas fortes e reconhecidas. Ou seja, as áreas de alto-risco caracterizavam-se pela desorganização e pela ausência de coerência social (Belsky, 1993).

No âmbito de diversos estudos realizados em zonas habitacionais de “risco”, cujo conceito havia surgido recentemente, Garbarino e Sherman (1980) aprofundaram a ocorrência de abuso ou negligência a crianças, bem como variáveis socioeconómicas e demográficas. A investigação teve lugar em diversos bairros dos Estados Unidos da América. Os investigadores verificaram que, apesar das semelhanças em termos socioeconómicos, os bairros podiam ser distinguidos relativamente ao risco de mau trato ou de negligência a crianças, tendo encontrado, um empobrecimento social significativo nas zonas de alto-risco.

Em Portugal, os estudos de Amaro (1986) e de Amaro e colaboradores (1988) mostraram que o baixo nível socioeconómico e as reduzidas habilitações literárias são frequentes nestas famílias. Estes factores parecem determinar um elevado nível de stresse vivenciado por estes agregados familiares, combinado com o menor acesso a estruturas de apoio social e a práticas educativas alicerçadas no recurso à autoridade e à crença de que o comportamento disfuncional da criança coloca em causa o estatuto parental (Machado, 1996).

Os acontecimentos de vida dos indivíduos, das famílias e das comunidades, bem como a sua interpretação e enquadramento no percurso individual, familiar ou comunitário acontecem num determinado contexto cultural. Muitos observadores têm encontrado em algumas mudanças sociais recentes, nomeadamente nos países ocidentais, contextos sociais propícios ao aparecimento e consolidação dos fenómenos de abuso e de negligência (Belsky, 1993). Neste campo, destaca-se principalmente a tolerância perante a violência e os castigos físicos.

Em países como os Estados Unidos da América, os níveis de violência são considerados extremos e os números de homicídios, de situações de violência doméstica e de violações são assustadoramente elevados (Belsky, 1993). Numa abordagem ecológica do abuso e da negligência na infância, em que a influência de factores exteriores aos indivíduos directamente envolvidos é ponderada, a tolerância a níveis cada vez mais elevados de violência favorece a ocorrência de situações graves de agressão na família, nas quais se inclui o mau trato físico exercidos sobre crianças (Belsky, 1980). Dentro da família em que a violência é percepcionada e aceite como estratégia de resolução de conflitos, a ocorrência de interacções agressivas promove os comportamentos de agressão conjugal e de abuso sobre crianças (Amaro, 1986). O fenómeno social do mau trato é também um produto das convenções discursivas que tornaram possível a emergência duma significação social atribuída a uma prática doméstica – a punição física (Machado, 1996). Por outro lado, a aceitação do castigo físico como estratégia educativa legítima (com o objectivo de controlar os comportamentos da criança, alargada também ao contexto escolar) promoveu, em algumas sociedades, a generalização do mau trato físico (Belsky, 1993). Em oposição a esta postura legislativa permissiva relativamente aos castigos físicos, estão países como a Suécia que legislou sobre a proibição deste tipo de procedimentos na década de 80 (Belsky, 1993).

111 Modificações legais semelhantes noutros países estão, de resto, a ser incentivadas pelo Comité dos Direitos da Criança (Sousa, 1996).

A atitude da sociedade relativamente às crianças, às práticas educativas e aos direitos dos pais também são determinantes para a ocorrência de abuso ou de negligência. Uma das concepções que apoia aqueles comportamentos é a de que os filhos são propriedade dos pais e que pertence a estes últimos o direito de dispor das suas vidas (Gil, 1976), ou seja, as crianças são percepcionadas como um prolongamento dos pais e as identidades dos vários elementos da família são simplesmente aglutinadas (Machado, 1996). A concepção dominante das relações familiares como sendo naturalmente inequalitárias, e em que o exercício da violência física é frequentemente redefinido como exercício do poder parental, acto educativo ou até acto de amor, favorece esta forma de expressão do poder (Machado, 1996). Recentemente, porém, temos assistido a uma atitude consensual de reprovação e preocupação social com o mau trato físico perpetrado sobre crianças (designadamente quando as consequências são gravosas para a vítima) que tende a coexistir com uma postura de justificação e defesa do uso da punição física (Amaro, 1986).

Apesar dos avanços verificados no sentido da promoção dos direitos das crianças, é difícil equacionar alterações significativas no comportamento dos adultos enquanto a violência for banalizada, os castigos corporais aceites e a parentalidade construída com base numa perspectiva de posse (Belsky, 1993). O facto de os desenvolvimentos culturais contemporâneos indiciarem uma desvalorização do trabalho dos cuidadores de crianças (evidenciada pela diminuição do estatuto social dos professores e educadores) e o aumento de situações de pobreza entre a população feminina (associada à monoparentalidade) contribui para minimizar os efeitos das medidas de prevenção do mau trato a crianças. O aumento do número de situações de mau trato entre famílias monoparentais femininas pode estar associado à carência económica, ao menor apoio social recebido e à inexistência de um outro adulto que possa funcionar como regulador das interacções familiares (Machado, 1996). Daí que seja a mãe o elemento adulto maltratante/negligente em 69% das situações identificadas, geralmente com comportamentos negligentes (Machado, 1996).

A influência cultural sobre o fenómeno do mau trato e negligência tem sido associada, em diversos trabalhos, à raça/etnia das famílias em que ocorre e também às

tendências de denúncia (Ibanez, Borrego, Pemberton & Terao, 2006). Nos Estados Unidos da América, há um maior número de crianças maltratadas entre a população afro-americana que entre a população branca (Connelly & Straus, 1992) e, num estudo realizado por Meston, Heiman, Trapnell e Carlin (1999), com população universitária americana descendente de asiáticos e de europeus, encontrou-se um maior número de relatos de maus tratos físicos e emocionais entre a população descendente de povos asiáticos (quer em indivíduos do sexo feminino quer do sexo masculino). Relativamente ao abuso sexual, as mulheres descendentes de europeus relataram ter sido vítimas desta forma de abuso em maior número que as mulheres descendentes de população asiática. Segundo os autores, estas diferenças podem basear-se nas diferentes filosofias e práticas educativas de cada grupo cultural. Quando à baixa incidência de situações de abuso sexual entre o grupo asiático, o conservadorismo sexual entre os elementos daquela etnia é apontado como um possível factor explicativo (Meston et al., 1999).

No que concerne às denúncias, a investigação mostra que existem diferenças entre etnias acerca dos valores culturais que se reflectem no maior ou menor número de relatos de mau trato ou de negligência aos serviços de protecção a menores (Ibanez et al., 2006).