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Capítulo I O mau trato, a negligência e o abuso sexual na infância

6. As sequelas do mau trato, da negligência e do abuso sexual na infância

6.1. As consequências físicas

Os estudos de Spitz (1946) são uma das referências na investigação das consequências da privação de cuidados (falta de envolvimento com um cuidador disponível e durante períodos de tempo adequados) em ambiente institucional. A ausência de um relacionamento estável com um prestador de cuidados privilegiado configura uma situação que, segundo a categorização actual, se pode classificar como negligência psicológica ou institucional (Oliveira & Camões, 2003). Nas instituições estudadas por Spitz, embora as crianças beneficiassem de cuidados médicos e alimentares adequados, as taxas de mortalidade atingiam valores na ordem dos 33%. A correspondência entre a não satisfação de necessidades psicossociais básicas e determinados deficits físicos e psicológicos (Garbarino et al., 1986) foi posteriormente demonstrada em 1967 no estudo de Bullard, Glaser, Hagarty e Pivchik (citados por Garbarino et al., 1986). Esta investigação mostrou, relativamente a um grupo de crianças severamente negligenciadas, atrasos significativos de desenvolvimento, tanto em termos físicos como comportamentais. Mais tarde, em 1972, Gardner observou desordens de origem psicossocial que designou por nanismo psicossocial ou nanismo de privação. As principais consequências desta perturbação são alterações nos ritmos de sono e de vigília, do apetite e da habilidade motora. Por outro lado, estas crianças exibem um comprometimento em termos do funcionamento psicológico e do desenvolvimento físico que, segundo o autor, estava associado a ambientes familiares negligentes. Ao longo do desenvolvimento, estas crianças tendiam a manter-se abaixo da

119 média própria da sua idade, relativamente ao peso, altura e maturação óssea (Gardner, 1972). As vulnerabilidades observadas, sob o ponto de vista do desenvolvimento físico, demonstram que a interacção psicológica com o prestador de cuidados (associada à disponibilidade emocional do adulto) é essencial para o desenvolvimento saudável da criança (Biringen, Damon, Grigg, Mone, Pipp-Siegel, Skillern & Stratton, 2005; Garbarino et al., 1986).

A queda do regime comunista na Roménia e a descoberta de dezenas de orfanatos que acolhiam crianças em condições de grande privação (ex.: sensorial, cognitiva, afectiva) permitiu, durante os últimos quinze anos, o desenvolvimento de estudos relevantes acerca dos efeitos destas condições de vida (avaliados no período seguinte à retirada da instituição), bem como sobre a capacidade de recuperação das vítimas posteriormente integradas em famílias por via da adopção (Grose & Ileana, 1996; Hoksbergen, ter Laak, van Dijkum, Rijk & Stoutjesdijk, 2003; Kreppner, Rutter, Beckett, Castle, Colvert, Groothues, Hawkins, O’Connor, Stevens & Sonuga-Barke, 2007; Meese, 2005; Rutter, O’Connor & English and Romanian adoptees (ERA) Study Team, 2004). O facto de a colocação institucional implicar privações de tipo material e social e, por isso, induzir perturbações no crescimento, no desenvolvimento cognitivo, na linguagem, no comportamento e na vinculação, tem sido corroborado por vários estudos (Bowlby, 1943; Fisher, Ames, Chisholm & Savoie, 1997; O’Connor & Rutter, 2000; Smyke et al., 2007; Zeanah et al., 2005).

Os orfanatos romenos (que acolheram a maior parte das crianças recrutadas para os estudos acerca dos efeitos da institucionalização) eram caracterizáveis por uma elevada rotatividade dos profissionais e deficiências do ponto de vista da estimulação social, cognitiva e da linguagem (Zeanah, Nelson, Fox, Smyke, Marshall, Parker & Koga, 2003). No entanto, o ambiente físico e as condições de prestação de cuidados eram variáveis (Smyke et al., 2007). Estas diferenças parecem, de resto, ser determinantes em termos de desenvolvimento para as crianças (Smyke et al., 2007). No entanto, devem também ser equacionadas as razões que levaram à institucionalização (no caso das crianças romenas, por exemplo, o principal motivo era a pobreza extrema), bem como as experiências prévias das crianças.

Uma das linhas de investigação que tem sido privilegiada com amostras de crianças institucionalizadas, procura determinar os efeitos bio-fisiológicos deste tipo de colocações.

Neste sentido, têm sido estudadas amostras de crianças provenientes dos orfanatos Russos e Romenos que sofreram a ausência de relações adequadas durante a infância (Fisher, Ames, Chisholm & Savoie, 1997).). Num estudo, com crianças adoptadas no Reino Unido provenientes de orfanatos Romenos, foram constatados atrasos físicos (ex.: peso, altura), de desenvolvimento e problemas de saúde (ex.: respiratórios, gastrointestinais) aquando da sua entrada no país de acolhimento (Rutter & the ERA Research Team, 1998). O mesmo tipo de dificuldades foi identificado em crianças romenas adoptadas por famílias norte-americanas. No estudo de Grose e Ileana de 1996 (também com crianças romenas adoptadas por famílias norte americanas), concluiu-se que o desenvolvimento físico foi menos favorável para as crianças que provinham de instituições. A evolução destas crianças, anos mais tarde, após a integração em famílias de adopção, revelou-se bastante positiva no aspecto físico (Kreppner, Rutter, Beckett, Castle, Colvert, Groothues, Hawkins, O’Connor, Stevens & Sonuga-Barke, 2007). Apesar disso, os problemas de desenvolvimento global que estas crianças apresentam (significativamente superior ao de outras amostras) sugerem que possam ter sofrido danos neurológicos decorrentes das privações vividas durante o período de institucionalização (O’Connor & Rutter, 1996; Rutter, O’Connor & ERA Study Team; 2004). Por isso, as crianças provenientes de instituições e enquadradas em famílias através da adopção internacional constituem um grupo de alto-risco e beneficiam, nos Estados Unidos da América, de enquadramento escolar e terapêutico no âmbito das “necessidades especiais” (Meese, 2005).

Como vimos anteriormente, as investigações com amostras de crianças romenas visam determinar, não só os efeitos da institucionalização (associada à privação de cuidados físicos e emocionais adequados) mas também as respostas das crianças e das suas famílias à adopção. Ou seja, pretende-se, também, averiguar até que ponto os efeitos das privações precoces são ou não reversíveis. Uma das equipas que trabalha nesta área organizou-se em torno do Projecto de Intervenção Precoce de Bucareste e tem procurado esclarecer os efeitos da institucionalização nas dimensões cognitiva e comportamental. Do ponto de vista cognitivo, o atraso observado nas crianças institucionalizadas em orfanatos romenos parece indiciar que aquele tipo de colocação impediu aquisições importantes num período sensível do desenvolvimento (Nelson III, Zeanah, Fox, Marshall, Smyke & Guthne, 2007). E, apesar de se observarem mudanças positivas significativas como resultado da integração em

121 ambientes mais estimulantes e adequados (famílias adoptivas, por exemplo), continuam a apresentar problemas persistentes de tipo cognitivo, socioemocional e de saúde (Fisher et al., 1997; Rutter, Andersen-Wood, Beckett, Bredenkamp., Castle, Groothues, Kreppner, Keaveney, Lord, O'Connor, and the English and Romanian Adoptees (ERA) Study Team, 1999). Por outro lado, as mudanças observadas parecem depender mais do ambiente de prestação de cuidados durante a permanência na instituição do que de características individuais das crianças (Smyke et al., 2007). A investigação mais recente tem posto em causa a importância do tipo e qualidade de cuidados que as instituições oferecem às crianças e dos seus efeitos no percurso de desenvolvimento dos menores colocados neste tipo de resposta social. Alguns resultados, porém, interrogam-se acerca dos contributos da própria criança para o tipo de cuidados que recebe. Ou seja, neste contexto, ainda não está totalmente esclarecido o papel da criança enquanto desencadeador das respostas do cuidador. Este é, porém, um território ainda mal explorado e que carece de aprofundamento empírico (Smyke et al., 2007).

O impacto das experiências de abuso ou negligência sobre o sistema nervoso tem sido objecto de um crescente interesse por parte de estudiosos que trabalham no contexto da neurociência do desenvolvimento e da psicopatologia do desenvolvimento (Cicchetti & Cannon, 1999; Chicchetti & Curtis, 2006; Glaser, 2000). Partindo do princípio que tanto o desenvolvimento normativo como não normativo podem dar contributos significativos para a compreensão dos processos que lhes estão associados e para o esclarecimento dos mecanismos que estão na base da resiliência, os investigadores têm aprofundado o impacto de diversos tipos de experiências ao longo do ciclo de vida. No que concerne ao mau trato e negligência, os estudos têm procurado determinar as suas sequelas em termos da estrutura e funcionamento do cérebro, assim como do ponto de vista neuroendócrino. (Cicchetti & Rogosch, 2001; Perry, 2002; Perry, 2007). A investigação tem corroborado as hipóteses acerca dos efeitos das experiências adversas na infância sobre: 1) o funcionamento cerebral, 2) o desenvolvimento das estruturas cerebrais - nomeadamente a diminuição do tamanho do hipocampo na idade adulta (Perry, 2002; Perry, 2007), 3) a sensibilidade das redes neuronais perante experiências geradoras de stresse (Gunnar, 2000) e, 4) o funcionamento do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenocortical (Davies et al., 2007; Teicher, 2002). Estas conclusões devem, porém, ser interpretadas com cuidado atendendo à plasticidade neuronal

que ocorre pelo menos até à idade adulta e permite que os neurónios danificados possam ser reparados ou substituídos (Cichetti et al, 2001). Nesta perspectiva, e apesar dos danos cerebrais, as intervenções sociais, a psicoterapia e a farmacoterapia podem contribuir para o processo de reparação (Cicchetti & Valentino, 2006).

O mau trato físico e alguns tipos de negligência que estão na origem de acidentes graves (ex.: afogamentos, envenenamentos, atropelamentos, etc.) podem, por si só, deixar sequelas importantes no crescimento e maturação física da vítima. As lesões podem mesmo ser irreversíveis, tal como acontece nos casos de algumas lesões neurológicas. Um dos exemplos é o dano neurológico de tipo permanente observado em muitas das crianças fisicamente maltratadas (Lynch, 1988). As hemorragias intra-oculares (uma das lesões que acompanham as hemorragias subdurais ou intra-craniais) decorrentes do abanar violento ou de agressões físicas podem estar na origem da incapacidade visual permanente (Lynch, 1988). Muitas lesões duradouras na pele ou cicatrizes têm a sua origem em agressões directas (marcas de chicotadas, dentadas, beliscaduras, socos, queimaduras, etc.).

As omissões que configuram comportamentos negligentes e que podem acarretar sequelas permanentes são geralmente consequência de: 1) ausência de cuidados alimentares básicos, conduzindo a estados de subnutrição e desidratação; 2) ausência de cuidados médicos preventivos ou curativos e, 3) ausência de supervisão/adopção de medidas de protecção adequadas (ex.: proteger a criança do acesso a medicamentos ou detergentes, proteger a criança de quedas, etc.) podendo levar a que a criança coloque, a sua própria vida em risco (ex.: atravessando estradas, esgueirando-se de janelas ou manipulando substâncias perigosas).

No caso específico de mau trato devido a patologia psiquiátrica do prestador de cuidados, nomeadamente na síndroma de Münchausen por procuração, o risco de vida para a criança é real. De facto, apesar de a mãe maltratante não actuar com a intenção de provocar a morte da criança, muitos dos casos de síndroma de morte súbita, por exemplo, parecem estar associados a esta forma de mau trato. Algumas sequelas físicas das vítimas da Síndrome de Münchausen por procuração decorrem, frequentemente, dos exames e tratamentos médicos a que são sujeitas. Muitas vezes, são submetidas a exames médicos dolorosos e invasivos, tais como biopsias, endoscopias e até cirurgias. As lesões físicas a longo-prazo podem manifestar-se no sistema nervoso central (ex.: lesões cerebrais,

123 consequência dos períodos de anóxia, cegueira cortical) e em vários órgãos (ex.: rins, estômago, etc.).

Um outro tipo de mau trato a crianças e jovens que pode implicar repercussões ao nível do desenvolvimento físico é o exercício de actividades profissionais. O trabalho infantil pode desencadear problemas de saúde, nomeadamente nas situações em que as crianças são forçadas a desenvolver tarefas em indústrias perigosas (ex.: minas, construção civil) ou obrigadas a manipular produtos nocivos para o sistema respiratório como acontece, por exemplo, na indústria do calçado (Sarmento, Bandeira & Dores, 2000). A realização de tarefas fisicamente exigentes na agricultura ou na construção civil, antes de o organismo da criança ter atingido uma maturação plena, pode contribuir para o aparecimento de deformações ósseas ou perturbações no sistema respiratório que muitas vezes evoluem no sentido da cronicidade.