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A unidade de medida melódica

2.2 Música e Matemática

2.2.2 A unidade de medida melódica

A preeminência do aspecto melódico na reflexão de São Tomás de Aquino sobre a música pode ser notada não somente pelas referências à distinção grave-agudo, mas igualmente pelas menções feitas à necessidade de uma unidade normativa musical. Assim como em uma palavra, por exemplo, as

manifestava somente na sucessão melódica, passava a se manifestar também na simultaneidade sonora. Vários textos aludem à beleza da polifonia musical. Escoto Erígena, irlandês do século IX, por exemplo, “para sugerir a inexprimível beleza do Universo, não encontra imagem mais sugestiva que a de um concerto polifônico.” (DE BRUYNE, 1994, p.239, tradução nossa) Em Sententia libri De sensu et sensato, tract.1, l.17, n.3, pode-se encontrar uma breve menção de São Tomás aos sons executados simultaneamente. No referido texto, lê-se que algo seria melhor percebido pelos sentidos no caso de ser simples, ao invés de ser misturado com outra coisa, como, por exemplo, no vinho puro, e o mesmo ocorreria na música: uma voz seria melhor sentida se soasse sozinha do que se fosse ouvida em consonância com outra voz, colocada em oitava ou qualquer outra harmonia em relação a ela: “Secunda suppositio est quod unumquodque magis sentitur si sit simplex, quam si sit alteri permixtum, sicut vinum purum fortius sentitur, quam si sit temperatum aqua. Et idem est de melle quantum ad gustum, et de colore quantum ad visum, et quantum ad auditum de una voce, quae magis sentitur si sola sit, quam si audiatur in consonantia ad aliam vocem, puta in diapason, vel in quacumque alia consonantia: et hoc ideo, quia quae commiscentur, obscurant se invicem. Sed haec secunda suppositio non habet locum nisi in his ex quibus unum fieri potest: haec enim sola permiscentur.” (grifo nosso)

letras formam as sílabas e nada há menor que uma letra que possa constituir a unidade básica de medida para uma palavra, assim também existiria, na ordem dos sons musicais, uma medida fundamental que constituiria um critério de mensuração.

Diz São Tomás em algumas passagens que, para a melodia musical, a unidade de medida básica seria a diesis, que provavelmente pode ser equiparada a um intervalo de semitom menor.

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Em In De sensu, tract.1, l.15, n.11,

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lê-se que a visão humana a partir de um mínimo de magnitude não identifica os objetos, e, semelhantemente, a audição também apresenta um limite para apreensão da diferença de altura entre dois sons musicais, e esta menor diferença seria o referido intervalo. Em Expositio libri posteriorum, lib.1, l.36, n.11, São Tomás diz que “nas melodias, toma-se como um princípio um tom, que consiste na proporção sesquioitava [9/8] ou a diesis, que é a diferença entre um tom e um semitom”.

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Em In Metaph., lib.10, l.3, n.10,

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aponta que os menores semitons são unidade para a melodia e em lib.10, l.2, n.12,

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na mesma obra, são citados, além do exemplo da música, outros casos em que a unidade é fundamento para a mensuração, como na métrica de versos literários, em que as palavras são medidas pelas diferentes sílabas. Também em Sententia super librum De caelo et mundo, lib.2, l.6, n.4, lê-se que o que é mínimo em um dado

93 A referência ao semitom menor diz respeito à teoria musical segundo a qual o tom não se divide em dois semitons iguais. No tratado de Música de Boécio pode-se encontrar a consideração da diesis como a metade do semitom menor (em I,21) ou como o próprio semitom menor (II,28; III,5; e III,6). (BOÉCIO, 2005, p.234)

94 Et inde quod quamvis superveniat visus, tamen aliqua pars eius minima, puta decima millesima, latet visum; et similiter quamvis totus cantus continuus audiatur, tamen auditum aliquid latet parvum de cantu, puta diesis, quod est minimum in melodia, quasi distantia quaedam toni et semitoni: huiusmodi autem distantia media inter ultima latet. Et ita est in aliis sensibus, quod ea quae sunt omnino parva, latent omnino sensuum. Sunt enim sensibilia in potentia, non autem in actu, nisi quando separantur: sic videmus in magnitudinibus quod linea unius pedis est in potentia in linea bipedali, sed tunc est actu quando dividitur a toto.

95 In melodiis autem accipitur ut unum principium tonus, qui consistit in sesquioctava proportione, vel diesis, quae est differentia toni et semitonii. Et in diversis generibus sunt diversa principia indivisibilia.

96 Et similiter esset si omnia essent melodia; quia entia haberent aliquem numerum, qui quidem esset numerus diesum sive tonorum. Sed tamen numerus non est ipsa substantia entium. Et per consequens oporteret quaerere aliquid quod esset unum, scilicet quod est diesis. Non tamen ita quod ipsum unum esset substantia.

97 Et quia ex velocitate et tarditate motuum contingit gravitas et acuitas in sonis, ut determinatur in musica, subdit exemplum de mensuratione sonorum; dicens, quod in musica prima mensura diesis est, idest differentia duorum semitonorum. Tonus enim dividitur in duo semitona inaequalia, ut in musica probatur. Et similiter in voce, mensura est elementum, quia etiam brevitas et longitudo vocis velocitatem et tarditatem motus consequitur.

gênero é a medida deste mesmo gênero, e, como exemplo, cita o caso da música, cuja medida seria o tom.

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Ainda em In Metaph., lib.3, l.12, n.14, explica São Tomás que o unum, isto é, o “uno” pode ser predicado das coisas de duas maneiras. Primeiramente, sendo convertível com o próprio ente, sendo cada coisa una pela sua própria essência, e, neste caso, a unidade acrescenta ao ente somente a noção de indivisibilidade. A outra maneira é aquela pela qual a unidade tem o caráter de primeira medida, isto é, de um mínimo, seja em sentido absoluto ou sentido relativo a um determinado gênero. Neste último caso, pode-se falar de uma unidade de medida quanto ao peso (o quilo, p.ex.), ao comprimento (o metro, p.ex.) e também quanto às melodias (o semitom).

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Em suma, o intervalo de um semitom “menor”, que resulta da divisão do tom (proporção 9/8 aplicada aos sons) seria a unidade sonora normativa e, por isso mesmo, seria essencial para a construção de uma melodia musical.

Denotam-se nesta concepção dois aspectos: (i) um princípio de ordem matemática, que rege as relações numéricas segundo as quais as consonâncias e os demais intervalos musicais são constituídos; e (ii) uma constatação da própria experiência, que torna patente os limites da percepção sensível do homem na ordem visual e auditiva.

A consideração de que é necessária uma unidade de medida para a melodia,

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aliada às idéias sobre consonâncias já tratadas anteriormente, parecem indicar que também na música a beleza seria efeito da medida, isto é,

98 Manifestum est quod id quod est minimum in unoquoque genere, est mensura illius generis, ut habetur in X Metaphys., sicut in melodia tonus, et in ponderibus uncia, et in numeris unitas;

manifestum est autem quod minimus motus est qui est velocissimus, qui scilicet habet minimum de tempore, quod est mensura motus; omnium ergo motuum velocissimus est motus caeli.

99 Unum autem, secundum quod dicitur de aliis rebus, dicitur dupliciter. Uno modo secundum quod convertitur cum ente: et sic unaquaeque res est una per suam essentiam, ut infra in quarto probabitur, nec aliquid addit unum supra ens nisi solam rationem indivisionis. Alio modo dicitur unum secundum quod significat rationem primae mensurae, vel simpliciter, vel in aliquo genere. Et hoc quidem si sit simpliciter minimum et indivisibile, est unum quod est principium et mensura numeri. Si autem non sit simpliciter minimum et indivisibile, nec simpliciter, sed secundum positionem erit unum et mensura, ut as in ponderibus, et diesis in melodiis, et mensura pedalis in lineis: et ex tali uno nihil prohibet componi magnitudinem: et hoc determinabit in decimo huius.

100 “Na metafísica, a unidade é a essência; na aritmética, a unidade; na geometria, o ponto; na astronomia ou na mecânica, o átomo; na música, o tom”. (DE BRUYNE, 1958, p.347, tradução nossa) Consideramos que por tom entende-se o intervalo musical determinado pela proporção 9:8 aplicada aos sons. Com efeito, ainda que em alguns textos que expusemos faça-se menção a uma subdivisão do tom (gerando semitons), o próprio desenvolvimento da música medieval, essencialmente diatônica, parece-nos apontar para o tom como uma espécie de medida básica para a construção de qualquer possível melodia.

da comensuração adequada das partes, o que pressupõe sempre um módulo de

medida ou uma unidade fundamental.

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