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2.2 Música e Matemática

2.2.5 Música e deleite estético

Tendo já apontado, na seção anterior, a conexão entre harmonia musical e deleite, consideramos oportuno aprofundar este tema, dada sua relevância para um melhor entendimento acerca do caráter estético da música em São Tomás de Aquino.

Ao tratar da psicologia humana, São Tomás aborda, entre outros temas, a hierarquia dos prazeres, e é perceptível a consciência que ele tinha da possibilidade de um prazer humano desinteressado, que se identifica com o deleite produzido pela apreensão da beleza nos objetos. Tal deleite é dito desinteressado por não estar ligado diretamente a uma utilidade ou a uma satisfação das necessidades próprias do animal,

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tratando-se, portanto, de algo característico da criatura espiritual.

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Na Summa Theologiae e em Sententia libri ethicorum são bastante claras tais idéias.

Na Summa Theologiae, São Tomás trata da questão dos deleites na seção dedicada à virtude da temperança (II-II, q.141), que é aquela virtude pela qual o homem refreia os desejos desordenados de prazeres sensuais e faz uso moderado dos bens temporais.

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De fato, quanto mais uma atividade corresponde às necessidades da natureza de um ser, tanto mais intenso será o prazer decorrente, e, no caso do homem, os prazeres mais veementes decorrem das atividades referentes às necessidades vitais mais fundamentais, como a nutrição e a reprodução. São tais prazeres, resultantes do sentido do tato, que a virtude da temperança deve regular, abrangendo, além deles, também aqueles prazeres de outros sentidos na medida em que se relacionem, direta ou indiretamente, com os prazeres do tato. Ora, nos animais irracionais os prazeres de cada um dos sentidos referem-se remota ou proximamente ao tato e, portanto, às necessidades biológicas fundamentais. No homem, ao contrário, há a possibilidade de um deleite completamente alheio aos prazeres do tato, e tal seria o deleite estético.

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136 ECO, 1988, p.17.

137 “É porque o homem é um ser espiritual que pode desprender-se das necessidades vitais e contemplar as coisas não por relação às suas exigências biológicas, mas em si mesmas, em sua própria estrutura, na harmonia objetiva de suas proporções e suas cores.” (DE BRUYNE, 1959, p.304, tradução nossa)

138 PIO X, 2005, p.215.

139 ECO, 1988, p.18.

Um animal como o leão, por exemplo, ao ver uma presa, deleita-se não pela sua aparência ou pela beleza dos sons produzidos, mas porque

“imediatamente refere tais sensações aos seus desejos táteis”.

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De diferente modo ocorre com o homem. Diz São Tomás de Aquino, em II-II, q.141, a.4 ad3,

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que “o homem, ao contrário, goza prazeres dos outros sentidos não só referentes à alimentação, mas também pelas sensações agradáveis que encontra no seu objeto”. Na seqüência do mesmo texto, São Tomás aponta como exemplo deste prazer desinteressado o caso da música, em que “o homem se deleita com um som harmonioso”. Neste tipo de situação, o deleite não diz respeito diretamente à virtude da temperança, mas somente por antonomásia.

Em outra passagem da Summa, em I, q.91, a.3 ad3,

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São Tomás também se refere ao fato de somente o homem ser capaz de deleitar-se na beleza dos objetos sensíveis: “os sentidos foram dados ao homem não somente para prover às necessidades da vida, como nos outros animais, mas ainda para o conhecimento”. Por isso, enquanto os animais encontram prazer somente nas atividades relacionadas às necessidades biológicas, apenas o homem “encontra prazer na beleza das coisas sensíveis tomadas em si mesmas”.

Em Sententia libri ethicorum, lib.3, l.19, n.13, por sua vez, São Tomás trata da relação entre a virtude da temperança e os deleites provenientes do sentido da audição e explica que a temperança não tem a ver com os prazeres próprios do ouvido, os quais, contudo, podem ser matéria de alguma outra virtude ou vício:

Se alguém se deleita superabundantemente, ou na medida em que deve, em melodias, [...] ele não será chamado de temperante ou intemperante por causa disto, porque não são prazeres muito

140 ECO, 1988, p.18.

141 Ad tertium dicendum quod delectationes aliorum sensuum aliter se habent in hominibus, et aliter in aliis animalibus. In aliis enim animalibus ex aliis sensibus non causantur delectationes nisi in ordine ad sensibilia tactus, sicut leo delectatur videns cervum vel audiens vocem eius, propter cibum. Homo autem delectatur secundum alios sensus non solum propter hoc, sed etiam propter convenientiam sensibilium. Et sic circa delectationes aliorum sensuum, inquantum referuntur ad delectationes tactus, est temperantia, non principaliter, sed ex consequenti. Inquantum autem sensibilia aliorum sensuum sunt delectabilia propter sui convenientiam, sicut cum delectatur homo in sono bene harmonizato, ista delectatio non pertinet ad conservationem naturae. Unde non habent huiusmodi passiones illam principalitatem ut circa eas antonomastice temperantia dicatur.

142 […] sensus sunt dati homini non solum ad vitae necessaria procuranda, sicut aliis animalibus;

sed etiam ad cognoscendum. Unde, cum cetera animalia non delectentur in sensibilibus nisi per ordinem ad cibos et venerea, solus homo delectatur in ipsa pulchritudine sensibilium secundum seipsam.

veementes. Mas pode isto referir-se a outra virtude ou vício. 143 (tradução nossa)

Além desta relação entre a virtude da temperança e a percepção estético-musical, há outros temas referentes à música que podem ser encontrado na mesma obra. Em lib.9, l.10, n.14, São Tomás faz uma comparação entre os deleites que provém da boa ação e aqueles que provêm da boa música:

assim como o homem virtuoso alegra-se pelas boas obras e entristece-se pelas más ações, assim também o músico deleita-se nas boas melodias e irrita-se nas más.

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Em lib.10, l.3, n.7, menciona que os prazeres resultantes da combinação agradável de elementos sensíveis, como no caso da música, podem ser mais ou menos agradáveis segundo a natureza da pessoa que se deleita.

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Em lib.10, l.4, n.4, explica que os deleites diferem entre si segundo a espécie. O deleite resultante de uma ação virtuosa, por exemplo, difere, segundo a espécie, do deleite proveniente de uma ação torpe. Da mesma forma, assim como o injusto não se deleita no prazer próprio do homem justo, assim também o não-músico não pode deleitar-se no prazer próprio do músico.

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Em lib.10, l.6, n.7, menciona novamente o prazer correspondente à audição: assim como as formas belas são agradáveis de serem vistas, assim também as melodias suaves são agradáveis de serem ouvidas.

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Estes deleites da audição, provenientes das boas melodias, seriam objeto de maior atenção daqueles que são músicos, pois, como

143 Secundo ibi: similiter autem etc., ostendit quod temperantia non est circa delectationes proprias auditus. Et dicit quod similiter se habet et in delectationibus quae sunt circa auditum, quod scilicet circa eas non est temperantia vel intemperantia. Si enim aliquis in melodiis, idest in consonantiis humanarum vocum, et hypocrisi, idest simulatione humanae vocis quae fit per musica instrumenta, aliquis gaudeat vel superabundanter, vel secundum quod oportet, non ex hoc dicetur temperatus vel intemperatus, quia nec etiam hae sunt multum vehementes delectationes. Potest autem hoc pertinere ad aliam virtutem vel vitium.

144 Si igitur homo cum amicis moretur, operatio eius quae est delectabilis secundum seipsam, scilicet virtuosa, erit magis continua. Et hoc oportet existere circa beatum, ut scilicet continue delectetur in operibus virtutis. Virtuosus enim, inquantum huiusmodi, gaudet in actionibus virtuosis, sive a se, sive ab aliis factis. Et contristatur in operibus contrariis quae ex malitia alicuius procedunt, sicut musicus delectatur in bonis melodiis et offenditur in malis.

145 Manifestum est enim, quod delectatio simplex secundum se non recipiet magis et minus, sed sola mixta; inquantum scilicet contemperantia sensibilium quae delectationem causat potest esse magis vel minus conveniens naturae eius qui delectatur.

146 Et dicit, quod delectationes specie differunt. Aliae enim sunt secundum speciem delectationes quae causantur a bonis operibus, ab illis quae causantur a turpibus. Differunt enim passiones secundum obiecta. Et ita ille qui non est iustus, non potest delectari delectatione quae est propria iusti, sicut nec ille qui non est musicus potest delectari delectatione musici. Et idem est de aliis delectationibus.

147 Deinde cum dicit secundum unumquemque autem etc., manifestat quaedam quae dixerat. Et primo dicit, manifestum esse quod secundum unumquemque sensum est delectatio, ut supra dictum est, per hoc quod dicimus et experimur visiones esse delectabiles, puta pulchrarum formarum et etiam auditiones, puta suavium melodiarum.

se diz em lib.10, l.6, n.15, toda pessoa é especialmente ativa acerca daquelas coisas que mais ama e às quais devota suas atividades.

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Em suma, a partir de tais textos, que tratam da relação entre virtude e deleite auditivo, pode-se dizer que relativamente às coisas que não são más em si mesmas e que são feitas tendo-se em vista o puro deleite, como parece ser o caso da música, São Tomás não as condena a priori. Por outro lado, há um problema de ordem moral na medida em que alguns prazeres que a música suscita podem possuir uma significação biológica, ao aumentar mais ou menos a atração humana aos bens do instinto. No caso da música, São Tomás parece aproximar-se, segundo De Bruyne, da posição de Platão e de Aristóteles: em alguns casos o toque de instrumentos musicais, assim como representações teatrais e danças, deve ser proscrito “quando o prazer que suscitam resulta normalmente perigoso, dissolvente ou lascivo”.

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(tradução nossa)

Para as artes que produzem obras em vista de deleites sem significação prática e também para aquelas que têm por objetivo a diversão ou o puro jogo, o critério de julgamento, quanto ao sentido ético de tais obras, seriam os princípios gerais da moral.

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A música, particularmente, entendemos que se enquadra nesse tipo de arte que se ordena ao deleite e à distração

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: “tais artes dão origem aos jogos cênicos dos juglares e histriones e também, sem dúvida, às composições instrumentais”, diz De Bruyne ao tratar da teoria da arte em São Tomás.

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Valeria, então, para a música os mesmos princípios que São Tomás utiliza para o jogo em geral. Ora, diz São Tomás, em S. theol., II-II, q.168, a.2 ad 3, ao tratar do jogo: “As atividades lúdicas, em si mesmas, não se destinam a

148 Et inde est quod unusquisque circa illa maxime operatur et his operationibus insistit quae maxime diligit. Sicut musicus maxime insistit ad audiendum melodias; et ille qui est amator sapientiae maxime insistit ad hoc, quod mente theoremata, idest considerationes, speculetur.

149 DE BRUYNE, 1959, p.355.

150 “A estética do século XIII [...] apresenta um caráter profundamente religioso: a beleza das coisas é função da do Criador e a atitude que o homem deve adotar frente à beleza e aos prazeres resultantes dela deve determinar-se pela moral geral do Cristianismo. Isto não significa que a estética medieval seja estranha à estética puramente natural: muito ao contrário, integra todas as definições e uma grande parte dos problemas da Antiguidade” (DE BRUYNE, 1959, p.13, tradução e grifo nossos)

151 A experiência estética da obra musical poderia, pois, ser enquadrada naquele tipo de atividade considerada lúdica, isto é, o jogo. Com efeito, diferentemente de uma arte utilitária que visa fabricar um objeto ao qual se impõe uma finalidade (como fabricar uma serra, a qual serve necessariamente para serrar), a música ordenar-se-ia para a pura contemplação estética.

De Bruyne e Eco apontam, de fato, as semelhanças existentes entre a contemplação estética e o jogo, já que, como este, também a contemplação desinteressada não se ordena a uma necessidade vital.

152 DE BRUYNE, 1959, p.356.

nenhum fim. Mas o prazer que se encontra nelas está voltado à recreação e ao repouso espiritual. Nesse sentido, é lícito praticá-las, desde que moderadamente”. (grifo nosso) Na mesma questão, é possível recolher alguns princípios gerais acerca do assunto: (i) deve-se evitar aquela atividade lúdica que tenha um alcance obsceno e imoral; (ii) não se deve colocar nela o fim supremo da vida; e (iii) deve-se evitar que ela rompa o equilíbrio espiritual da alma. Com efeito, diz São Tomás, na mesma questão, a.2, que é preciso cautela para que “não se perca totalmente a gravidade da alma”; e cita, em seguida, Santo Ambrósio, que afirma: “Acautelemo-nos, ao querer relaxar mentalmente, para não perdermos toda a harmonia formada pelo concerto das boas obras”.

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Como conclusão, podemos apontar que, segundo os textos apresentados, a música pode ser utilizada com um fim lúdico, proporcionando um deleite desinteressado, livre de qualquer necessidade prática ou vital.

Entretanto, se uma música provoca um deleite desordenado, excessivo ou

aproxima o homem de prazeres imorais, então ela não se coaduna com a devida

finalidade estética, que é de prover ao homem uma contemplação deleitosa

moderada e adequada à sua natureza racional.