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4.2 Proporção, integridade e claridade em Música

4.2.2 Integridade

Como visto anteriormente, a integridade ou perfeição designa a presença, em um determinado ente, de tudo aquilo que concorre para defini-lo como tal e também a plena realização das potencialidades deste ente.

No caso dos seres naturais a integridade é de certa forma medida pela correspondência do ente particular com as exigências de sua natureza. No caso, porém, das obras artísticas, produzidas pelo homem, a forma da obra é puramente artificial. Diz São Tomás, em S. theol., I, q.44, a.3:

De fato, o artífice produz determinada forma na matéria por causa do exemplar que tem diante de si, seja ele um exemplar que se vê exteriormente, seja ele um exemplar concebido interiormente pela mente.357

Para o caso específico de uma obra musical, entendemos que é possível propor um tríplice sentido para a integridade ou perfeição:

a) Em um primeiro sentido, na medida em que a estrutura sonora manifesta claramente a sua adequação à idéia concebida pelo seu artífice.

b) Em segundo lugar, na medida em que a obra manifesta-se como um todo inteiro, isto é, na medida em que, analogamente ao que ocorre em um corpo orgânico perfeito, também se mostra como um todo completo, coerente e ordenado.

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c) Em terceiro lugar, na medida em que a obra musical ordena-se adequadamente à sua finalidade.

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357 Artifex enim producit determinatam formam in materia, propter exemplar ad quod inspicit, sive illud sit exemplar ad quod extra intuetur, sive sit exemplar interius mente conceptum.

358 “Há homens de várias estaturas e proporções; todavia, além e aquém de um certo limite, não se tem mais a verdadeira natureza humana, mas apenas uma anormalidade. Esta forma de perfeição pode ser reconduzida ao outro critério de beleza, a integritas, que deve ser entendida exatamente como a presença, em um todo orgânixo, de todas as partes que concorrem para defini-lo como tal. Um corpo humano é disforme sem um de seus membros, e dizemos que os mutilados são feios, porque lhes falta a proporção das partes em relação ao todo [...] Princípio de estética orgânica no verdadeiro sentido da palavra, e não sem interesse para uma fenomenologia da forma artística como hoje a conceberíamos [...]” (ECO, 2010, p.178, grifo nosso)

359 “A perfectio prima, realizando-se, permite que a coisa se adapte ao próprio fim, dando lugar, assim, à perfectio secunda. A perfeição formal da coisa permite a ela operar segundo a própria finalidade; mas igualmente é verdade que a perfectio secunda é regra para a perfectio prima, porque uma coisa, para ser perfeita, deve organizar-se precisamente segundo as exigências de sua função [...] Por esse motido uma obra de arte é bela se funcional, se sua forma é adequada ao fim”. (ECO, 2010, p.179, grifo nosso)

O primeiro sentido, referente à correspondência entre o objeto e a sua concepção, parece-nos remeter a um tema bastante relevante da filosofia da música: a relação entre a obra musical e a sua interpretação. Com efeito, sendo uma arte que se desenrola no tempo,

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a existência física do objeto musical exige um intérprete.

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Na correspondência entre esses dois termos, entendemos que haveria um critério de valoração estética.

O segundo sentido parece-nos ter estreita relação com o tipo de proporção que mencionamos na seção anterior e que se refere ao conceito de ordem aplicado à estrutura geral da obra musical. De fato, através de uma série de relações de semelhança, distinção, oposição etc. é possível elaborar um agrupamento musical que cause a impressão no ouvinte de um todo completo e acabado. Entendemos que tal concepção pode ser aplicada facilmente também a unidades menores de uma obra musical, pois se pode falar em completude ou acabamento em uma simples e breve linha melódica, por exemplo.

Ainda que não tenhamos apresentado um texto de São Tomás acerca desta possível aplicação do conceito de integridade a uma obra artística, parece-nos oportuno mencionar uma breve passagem em que ele cita Santo Agostinho.

Tal texto, em S. theol., I-II, q.32, a.3, trata do fato de que é próprio do homem querer conhecer algo de maneira perfeita, mesmo no caso de um objeto cujas partes não existem todas simultaneamente, como é certamente o caso das artes temporais:

360 Diz Fubini (2008, p.50) acerca das artes temporais: “Se a natureza destas artes é desenrolarem-se no tempo, a sua sobrevivência na história deve ser assegurada por alguma forma de grafia que conserve uma imagem da sua vida até ao momento em que o intérprete a faça reviver na sua natureza temporal. É este o caso da música. Mas o que pode ser uma necessidade, no caso da música, torna-se uma arte adicional: o intérprete – maestro ou executante – disputa, às vezes, o mérito da criatividade com o próprio compositor e, seja como for, é uma figura dotada de autonomia e de grande relevo artístico.” (grifo nosso)

361 Também Gilson apresenta uma reflexão acerca do papel do intérprete musical: “O cantar supõe um cantor e isso se torna a fonte dos problemas na arte musical, os quais não surgem na pintura. O pintor é seu próprio executante, ele é seu próprio virtuoso e seu trabalho é unicamente seu, em um sentido no qual, no caso de um músico, raramente ocorre – talvez, até, nunca. Na música, a existência real da obra depende mais freqüentemente de alguma outra pessoa que não o criador; agora a arte da execução é distinta da arte da composição, é aprendida, adquirida e demonstrada separadamente. Um contemporâneo de Liszt o repreendeu por “tocar o piano” e recomendou Chopin àqueles que queriam “ouvir música tocada”. Em parte, estava ele certo, embora deva ser admitido que as duas artes estejam intimamente relacionadas, donde a origem do problema do virtuoso que inevitavelmente surge em todas as ordens da arte musical, uma vez que o executante tem de adquirir a habilidade para poder executar as obras musicais que lhe são confiadas.” (p.149, tradução nossa)

O homem deseja conhecer algo inteiro e perfeito. Portanto, se algumas coisas não puderem ser apreendidas todas de uma só vez, é agradável haver nelas uma mudança para que de uma se passe a outra, e assim o todo seja conhecido. É o que nota Agostinho: “Não queres certamente que a sílaba pare, mas que ela vá embora e outras tomem seu lugar, até que ouças toda a palavra. É sempre assim com as coisas que constituem uma só e que não existem todas ao mesmo tempo: o conjunto deleita mais que as partes, quando é possível sentir todas.”362 (grifo nosso)

Por fim, quanto ao terceito tipo de integridade, referente à finalidade da obra artística, consideramos ser possível um maior desdobramento do tema a partir dos textos de São Tomás por nós mencionados no primeiro capítulo. Em particular, aqueles que indicam direta ou indiretamente algum papel moral às obras musicais.

A partir dos textos de São Tomás apresentados na seção dedicada à música litúrgica, assim como das fontes por ele utilizadas, é possível constatar duas finalidades fundamentais para a obra musical, a saber, o uso na liturgia católica e a fruição estética.

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Para ambos os usos, contudo, há caracteres que a obra em si deve possuir. No primeiro caso a obra musical deve ser de tal modo que seu efeito nos ouvintes seja o de incentivar a devoção interior; no segundo caso, deve ser de tal modo que seu efeito nos ouvintes seja um deleite moderado e ordenado. Em ambos os casos, por sua vez, há uma medida para a estrutura interna da música, a saber: a sua influência nos afetos do homem e, por isso mesmo, na moralidade dos atos humanos.

Propomos, a seguir, uma possível sistematização de alguns princípios gerais acerca da música e da sua relação com os afetos humanos a partir de textos de São Tomás de Aquino:

(i) Diferentes formas musicais exercem efeitos diferentes na afetividade humana. São Tomás refere-se explicitamente a isto em S. theol., II-II, q.91, a.2c: “segundo as diferenças das melodias, as pessoas são levadas a

362 Homo desiderat cognoscere aliquod totum et perfectum. Cum ergo aliqua non poterunt apprehendi tota simul, delectat in his transmutatio, ut unum transeat et alterum succedat, et sic totum sentiatur. Unde Augustinus dicit, in IV Confess.: Non vis utique stare syllabam, sed transvolare, ut aliae veniant, et totum audias. Ita semper omnia ex quibus unum aliquid constat, et non sunt omnia simul, plus delectant omnia quam singula, si possint sentiri omnia.

363 Em seu sermão sobre o Credo diz São Tomás: “Devemos usar bem das coisas criadas. As coisas devem ser usadas conforme as finalidades que lhes foram dadas por Deus. As coisas foram criadas para dois fins: para a glória de Deus, porque ‘todas as coisas para Si mesmo Deus as fez’ (Prov XVI, 4), e para nossa utilidade, porque ‘Deus fez todas as coisas para servirem aos povos’ (Dt IV, 19).” (TOMÁS DE AQUINO, 1997, p.30, grifo nosso)

sentimentos diferentes”; e em In Psalm., XXXII, n.2: “as consonâncias musicais mudam o afeto do homem”.

(ii) Os diferentes efeitos causados pela música podem auxiliar ou prejudicar um determinado objetivo a ser alcançado, como, por exemplo, a devoção dos fiéis no louvor a Deus. São Tomás afirma, primeiramente, que a música pode estimular a devoção. Em S. theol., II-II, q.91, a.2c, diz que “foi salutar a introdução do canto nos louvores divinos para que os espíritos mais fracos fossem mais incentivados à devoção”; e em In Psalm., XXXII, n.2, diz que no louvor a Deus “são executadas algumas músicas, a fim de incitar a alma a se voltar para Deus”. Por outro lado, também São Tomás reconhece, em S. theol., II-II, q.91, a.2, ad2, que determinadas músicas podem não ser adequadas à finalidade à qual se destinam, como é o caso das que são executadas por aqueles que na igreja cantam de modo teatral, “não para excitar a devoção, antes para se exibirem e se deleitarem”.

(iii) Os efeitos da música estão relacionados com uma certa semelhança entre os movimentos sonoros e os movimentos afetivos do homem.

São Tomás refere-se a isto em S. theol., II-II, q.91, a.2, ad5, ao citar Santo Agostinho: “todos os afetos de nosso espírito, conforme a sua diversidade, descobrem modalidades próprias da voz e do canto com as quais se movem, por uma secreta familiaridade”. (grifo nosso)

(iv) Os intervalos melódicos entre os sons, o ritmo que os ordena no tempo e o timbre do instrumento ou da voz que os produz são elementos que constituem o objeto musical que influencia os afetos humanos. São Tomás refere-se indiretamente aos intervalos melódicos ao citar, em In Psalm., XXXII, n.2, a tradicional teoria sobre os modos eclesiásticos, que são justamente diferentes tipos de organização dos tons e semitons dentro de uma oitava.

Quanto ao ritmo musical, pode-se considerar que São Tomás estava familiarizado com as duas fontes que ele mesma cita: (i) o Proêmio do tratado de Música de Boécio, que em determinado trecho menciona o fato de que aqueles que escutam uma canção muitas vezes propendem “involuntariamente a que seu corpo reproduza algum movimento similar à cantilena escutada”

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; e (ii) o capítulo V do Livro VIII da Política de Aristóteles, em que é dito que qualquer canção imita algum caráter, sendo que nos ritmos, “alguns têm uma

364 BOÉCIO, 2005, p.29.

característica de repouso, outros transmitem movimento, e entre esses últimos, alguns se referem a movimentos mais nobres e outros a movimentos mais vulgares”.

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Quanto ao timbre, há uma referência direta de São Tomás em In Psalm., XXXII, n.2, relacionando alguns instrumentos musicais com determinados efeitos da música, como por exemplo o paralelo entre o órgão e o efeito de “arrebatar às coisas elevadas”.

(v) A influência da música sobre os afetos pode ser superficial, provocando determinadas emoções, ou profunda, favorecendo uma boa ou má disposição interior estável no homem. A influência superficial é referida, por exemplo, em In Psalm., XXXII, n.2, no trecho em que São Tomás cita o episódio relatado por Boécio, em que Pitágoras, vendo que um jovem estava furioso ao som do modo frígio, fez alterar o modo e, assim, abrandou o ânimo do jovem enfurecido para um estado apaziguado. Trata-se, com efeito, de uma rápida mudança de comportamento e diz respeito a determinadas paixões do apetite sensível do homem. A influência estável da música pode ser deduzida em S.

theol., II-II, q.91, a2 ad4, a partir da citação que São Tomás faz de Aristóteles a respeito do uso da música na educação. São Tomás afirma que determinados instrumentos musicais “movem mais a alma para o deleite do que para a formação da boa disposição interior”. (grifo nosso)

Tais princípios, ainda que não estejam algumas vezes explícitos nos textos de São Tomás, todavia, parecem-nos estar subjacentes às idéias expostas e às fontes por ele utilizadas. Em suma, pode-se dizer que haverá proporção da obra musical com a sua finalidade na medida em que a sua estrutura sonora, sendo apreendida pelos sentidos e pela inteligência, não cause efeitos no homem contrários à dupla finalidade a ser atingida, isto é, na medida em que não provoque no homem (i) efeitos contrários à devoção interior, no caso da música litúrgica; (ii) e nem deleites excessivos, desordenados ou que aproximem o homem de tais prazeres, no caso da música em geral.

Concluimos, pois, que também na composição musical é elemento de valor estético a sua adequação ao fim que lhe convém, ou seja, é necessário haver uma proporção adequada entre a obra e os fins aos quais a música se destina enquanto parte integrante da vida humana. Entendemos, pois, que este tipo de adequação, que poderíamos chamar de funcional, sendo também

365 ARISTÓTELES, 2007, p.275-276.

relevante para a valoração estética de um objeto, elimina qualquer possibilidade

de uma concepção estético-musical que não leve em conta as implicações de

ordem moral de determinadas obras musicais particulares e também de

distintos estilos musicais.