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A noção de claritas, isto é, claridade ou esplendor, em São Tomás de Aquino apresenta diferentes significados, que vão desde um sentido simples e literal até um sentido místico e metafísico.

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Pode significar (i) a luz e a cor física; (ii) a luz da razão, que torna as coisas conhecidas; (iii) o brilho da reputação terrena; ou ainda (iv) a glória celestial dos corpos glorificados dos bem-aventurados, do corpo transfigurado de Cristo ou dos objetos renovados no final dos tempos.

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No primeiro caso, trata-se de algo superficial. Diz São Tomás em S.theol., I, q.39, a.8, que entre as exigências da beleza está o “esplendor: as coisas que têm nitidez de cores, dizemos que são belas”. Em II-II, q.145, a.2, lê-se que “à razão de belo ou decoroso concorrem o brilho e a proporção devida”, e que a beleza do corpo consiste em “ter o homem membros bem proporcionados, com certo brilho harmonioso de cor”. Também em Sent., lib.4, d.48, q.2, a.3 co., São Tomás diz que “a beleza dos corpos celestes consiste principalmente na luz”.

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Este sentido de claritas é físico, denotando simplesmente uma compleição agradável de algum objeto corpóreo.

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No segundo caso, trata-se da luz da razão. Em S. theol., II-II, q.142, a.4, por exemplo, São Tomás condena o pecado da intemperança, indicando a sua

“feiúra” enquanto prazer desordenado que obscurece a luz da razão, “donde vem toda a beleza e esplendor da virtude”. Também em II-II, q.180, a.2 ad 3, diz que tanto a claridade como a proporção devida “encontram-se radicalmente na razão, à qual incumbe fazer brilhar a luz e ordenar à justa proporção das coisas”. E em II-II, q.145, a.2: “a beleza espiritual consiste em ter o homem comportamento e atividade bem equilibrados pelo esplendor espiritual da razão”.

No terceiro caso, trata-se do notório reconhecimento que se tem da virtude de alguém. Em S. theol., II-II, q.145, a.2 ad 2, lê-se: “a glória é efeito da honra, pois, por ser honrado ou louvado, torna-se alguém famoso aos olhos dos

301 ECO, 1988, p.102.

302 Seguimos a divisão proposta por Eco. (ECO, 1988, p.104)

303 Pulchritudo autem caelestium corporum praecipue consistit in luce.

304 “Se nos limitamos a este sentido de claritas, ela denota coisas como uma compleição agradável, a tonalidade quente de uma escultura ou o verde brilhante de um campo”. (ECO, 1988, p.103, tradução nossa)

outros”;

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e em II-II q.132, a.1: “A glória significa um certo brilho”.

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(grifo nosso) Tal sentido de claridade diz respeito, pois, à reputação que alguém possui perante os demais em razão das suas virtudes.

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O quarto e último sentido de claritas refere-se a um tipo de esplendor que não pode ser experimentado na vida terrestre. Em In Symb. Apost., a.11, por exemplo, São Tomás trata da futura ressurreição dos mortos e afirma que

“os bons receberão uma glória especial, porque os santos terão os seus corpos glorificados por quatro qualidades: a primeira, é a claridade; lê-se: ‘Os justos resplandecerão como o sol no reino de seu Pai’(Mt 13,43).”

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Tais são, resumidamente, os quatro diferentes sentidos atribuídos à claritas.

Ainda que haja, portanto, diferentes acepções para claridade, pelos textos supracitados é possível notar que todos possuem algo em comum: trata-se trata-sempre de uma manifestação do princípio de organização, ou ainda, do esplendor da forma.

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Um ato de intemperança, por exemplo, seria feio porque nele não se manifestaria um princípio racional que se serve de regra para a ação. A beleza corporal, por sua vez, derivaria da alma, que é a forma substancial do homem, e fundamentar-se-ia, quanto à claridade, na manifestação externa de um equilíbrio interno. Algo análogo ocorre com relação aos bens espirituais. Em S.theol., I, q,57, a.4 ad 1, por exemplo, escreve São Tomás: “a qualidade da mente quanto à quantidade da graça e da glória será manifestada pela claridade do corpo”.

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E em III, q.45, a.2, ao tratar do corpo transfigurado de Cristo, diz São Tomás que “a claridade da alma redunda sobre

305 Ad secundum dicendum quod, sicut supra dictum est, gloria est effectus honoris, ex hoc enim quod aliquis honoratur vel laudatur, redditur clarus in oculis aliorum. Et ideo, sicut idem est honorificum et gloriosum, ita etiam idem est honestum et decorum.

306 Gloria claritatem quandam significat.

307 “Neste sentido, uma pessoa virtuosa é bela em parte por causa do seu manifesto esplendor na estimação dos outros”. (ECO, 1988, p.104, tradução nossa)

308 Circa tertium sciendum est, quod quantum ad bonos erit specialis gloria, quia sancti habebunt corpora glorificata in quibus erit quadruplex conditio. Prima est claritas: Matth. XIII, 43: fulgebunt iusti sicut sol in regno patris eorum.

309 Explica De Bruyne: “O valor metafísico da claridade identifica-se com uma certa transparência da forma nas cores do corpo ou no resplendor do espírito. A claridade, então, mais ainda que a proporção, é expressiva do princípio organizador que se chama a forma substancial. A noção de forma deve ser entendida aqui no sentido aristotélico e não no neoplatônico [...] Forma é o que faz que um ser seja tal; graças à forma se constitui o indivíduo em uma espécie determinada, mas também e sobretudo em seu ser particular.” (1959, p.322-323, tradução nossa)

310 Et tamen qualitatem mentis, quantum ad quantitatem gratiae et gloriae, repraesentabit claritas corporis.

o corpo como uma qualidade permanente que o afeta”.

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É sempre a forma impondo a ordem sobre o corpo e manifestando-se exteriormente como princípio organizador.

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Esta conexão entre claridade e forma é bastante evidente particularmente nos comentários de São Tomás ao capítulo IV dos Nomes Divinos de Dionísio Areopagita.

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Portanto, pode-se concluir que a claridade designa a comunicabilidade fundamental da forma, que se efetiva na relação com o olhar de alguém sobre o objeto.

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Com efeito, como visto anteriormente, é próprio da noção de beleza a sua referência à inteligência, já que são ditas belas as coisas cuja apreensão agrada. Ora, sendo um objeto harmonioso e íntegro, ele está, em si mesmo, apto a ser julgado belo, mas para tanto é necessário que esta ordem que lhe é intrínseca seja claramente manifesta à inteligência do sujeito cognoscente. Daí a necessidade, para se dar a apreensão e o deleite estético, de uma adequação entre o sujeito cognoscente e o objeto, o que se dá fundamentalmente através da qualidade expressiva do objeto. Diz São Tomás, em S.theol., II-II q.132, a.1: “O brilho [claritas] tem uma certa beleza que se manifesta diante de todos”.

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A claridade designaria, em suma, a essência de algo enquanto claramente manifesta,

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a manifestação do organismo dotado de proporção e integridade,

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ou ainda, a propriedade das coisas pela qual a ordem e a

311 Nam ad corpus glorificatum redundat claritas ab anima sicut quaedam qualitas permanens corpus afficiens.

312 ECO, 1988, p.116-118.

313 Dionísio explica que Deus é a causa da claridade porque Ele confere um certo esplendor, à semelhança da luz, a toda a Criação. No seu comentário (c.IV, l.5), conforme explica Eco, São Tomás indica que a “luz” de que Dionísio fala deve ser entendida como uma figura retórica que indica “participação” e seria justamente a forma a participação na luz divina. (ECO, 1988, p.115)

314 Explica Eco: “Em nível ontológico, a claritas é a própria e verdadeira capacidade expressiva do organismo; é a radioatividade do elemento formal. Um organismo percebido e compreendido declara-se como tal e a inteligência o goza pela beleza de sua legalidade. Não se trata, pois, de uma expressividade ontológica subsistente etiamsi a nullo cognoscatur; é manifestatividade que se realiza diante de uma visio focalizante, de um olhar que fixa desinteressadamente a coisa sub ratione causae formalis. A coisa é ontologicamente disposta a ser considerada bela, mas para ser julgada como tal é necessário que o fruidor, realizando a proporção entre cognoscente e conhecido, e evidenciando todas as correspondências do organismo completo, goze plena e livremente o resplandecer, diante de seus olhos, de toda esta perfeição. A claritas é ontologicamente clareza em si e torna-se clareza para nós, clareza estética, quando uma visão se especifica, ao se lançar sobre ela.” (ECO, 2010, p.185)

315 Claritas autem et decorem quendam habet, et manifestationem.

316 Em síntese, a partir das noções de proporção e clareza, pode-se concluir que, em São Tomás, são condições para a beleza tanto “o aspecto das coisas quando correspondem à sua essência, como sua essência quando se revela em seu aspecto”. (TATARKIEWICZ, p.265, tradução nossa)

317 ECO, 1988, p.120-121.

harmonia se manifestam com evidência e permitem à inteligência uma contemplação plena.

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Para o caso específico da arte, pode-se inferir que a claridade indica a qualidade do objeto pela qual sua ordem interna é claramente manifesta à percepção sensível e à apreensão intelectiva do homem. Neste sentido, para que uma obra seja bela, os seus elementos intrínsecos (variedade, unidade, proporção entre as partes etc.) devem ser claramente cognoscíveis.

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3.6 Conclusão

Pelos textos analisados, evidencia-se que São Tomás define o belo como sendo aquilo cuja apreensão agrada. Neste sentido, o belo diz respeito tanto à potência apetitiva, já que causa deleite, como à potência cognoscitiva, já que causa deleite em sua apreensão. Por isso, o belo não é nem simplemente o que deleita e nem simplesmente o que é conhecido, mas o que deleita pelo seu conhecimento. Contudo, não se pode supor que com tal concepção São Tomás procurasse apresentar uma definição analítica, explicitando a noção pelo seu gênero e pela diferença específica.

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Trata-se, com efeito, somente de uma definição descritiva pelo efeito, isto é, aponta simplesmente o efeito psicológico da beleza, não abordando exaustivamente a questão ontológica.

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Por outro lado, São Tomás menciona também certas propriedades – proporção, integridade e clareza – que seriam próprias daquilo que é belo. Com isto, caracteriza-se uma definição descritiva intrínseca, mas não propriamente uma

318 Assim M.Wulf define claritas: “On peut définir le resplendissement du beau: une propriété des choses, en vertu de laquelle lês éléments objectifs de leur beauté, à savoir l'ordre, l'harmonie, la proportion se manifestent avec netteté et provoquent dans l'intelligence une contemplation facile et plénière.” (1895, p.346)

319 Explica M.Wulf: “L’ordre artistique doit donc parler à l’âme, frapper lês facultés perceptrices;

la multiplicité dês eléments qui forment l’ouvre, leur varieté, leur unité, doivent être visibles et connaissables.” (1914, p.280) A seguir, ele cita uma passagem do Tratado do Amor de Deus, de São Francisco de Sales: “Le beau étant appelé beau, parce que sa connaissance délecte, il faut que, outre l’union et la distinction, l’integrité, l’ordre et la connivence de sés parties, il ait beaucoup de splendeur et d’eclat, afin qu’il soit connaissable et visible; lês voix, pour être belles, doivent être claires et nettes, lês discours intelligibles, lês couleurs éclatantes et resplendissantes”. E.Gilson considera que a claritas designa, no ser sensível, “o fundamento objetivo de nossa percepção sensível da beleza”, é aquilo que, no objeto, “prende o olhar e o retém”. De modo geral, na ordem das coisas sensíveis, o brilho designaria as qualidades pelas quais o objeto tem a aptidão de captar e reter a atenção. (GILSON, 2010, p.40-41)

320 IVANOV, 2006, p.77.

321 BANYERES, 2006, p.7-8.

definição essencial.

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Pela proporção ou harmonia o ente é completo e uno;

pela integridade ou perfeição, o ente possui tudo o que lhe é devido; e pela clareza ele manifesta esta ordem que lhe é própria.

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Uma possível definição analítica de beleza, elaborada a partir dos princípios expostos por São Tomás, deveria, pois, conter: a sua identidade com o bem, quanto ao sujeito, a sua particular ordenação à potência cognoscitiva e os elementos constitutivos intrínsecos. Tal definição para beleza, a partir das informações já consideradas, poderia ser a seguinte: a perfeição do ente que resplandece pela ordem e deleita pela apreensão

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, ou ainda, mais sucintamente, como o esplendor da ordem.

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Sendo também uma noção analógica e co-extensiva com o “ser”, o belo aplicar-se-ia em diferentes níveis,

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entre os quais o da obra artística humana, na qual também se realiza segundo as propriedades gerais de proporção, integridade e clareza, e na sua ordenação às potências cognoscitiva e apetitiva do homem.

322 IVANOV, 2006, p.77.

323 Explica M.Wulf em History of Medieval Philosophy, que na estética da Escolástica a noção de beleza refere-se a uma impressão (aspecto subjetivo) tendo sua causa em um objeto apto a produzi-la (aspecto objetivo). Tal impressão pode ser entendida como uma “contemplação desinteressada por parte da faculdade intelectual, acompanhada por um deleite próprio”.

(tradução nossa) Os aspectos objetivos da beleza – a ordem completa e íntegra – estão conectados com a forma substancial do ente, ou seja, com o seu princípio de unidade. Além disso, a Escolástica apresenta a noção de claritas, que estabelece uma relação de causalidade e adaptação entre os elementos objetivos e subjetivos da beleza: “a claritas pulchri é aquela propriedade das coisas em virtude da qual os elementos objetivos da sua beleza (ordem, harmonia, proporção) são reveladas à mente com clareza, suscitando a plena e livre contemplação da inteligência.” (1909, p.343, tradução nossa)

324 BANYERES, 2006, p.18.

325 [...] “on peut définir le beau: l'harmonie des diverses parties d'un même tout manifestée vivement à notre intelligence ou, en deux mots, la splendeur de l'ordre.” (MERCIER, 1894, p.284)

326 Em In Psalm., XLIV, n.2, há um claro exemplo desta concepção da beleza analogamente aplicável a diferentes âmbitos da realidade.Com efeito, menciona São Tomás quatro tipos de beleza em Cristo – (i) aquela decorrente da sua natureza divina; (ii) aquela própria da justiça e da verdade; (iii) aquela própria da conversação honesta e virtuosa; e, por fim, (iv) a beleza corpórea : “Et nota in Christo quadruplicem pulchritudinem. Unam secundum formam divinam.

[...] Alia est pulchritudo justitiae et veritatis [...] Alia est pulchritudo conversationis honestae [...] Quarta est pulchritudo corporis [...]”.

Após termos analisado, sucintamente, a questão da música em São Tomás de Aquino e também a sua teoria sobre o belo, no presente capítulo nos propomos a aproximar as duas exposições anteriores, procurando esclarecer o que constitui propriamente a beleza em música.

Dividimos este capítulo em duas seções. Primeiramente, procuramos

expor como o próprio São Tomás de Aquino considera a possibilidade de uma

beleza na arte, em particular. E, em segundo lugar, de que maneira os critérios

de proporção (ou harmonia), integridade (ou perfeição) e claridade podem ser

aplicados concretamente ao caso da música.