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Sobre a Perversão

4.3 A Verleugnung como resposta

Neste sentido, Freud vai caminhando para uma reformulação da perversão. Não se trata de ser pré-edipiana, mas, ao contrário, da posição do sujeito frente ao complexo de castração. Nestes casos, a reposta frente à ameaça não seria o recalque – Verdrangung - nem a rejeição (forclusão) – Verwerfung - , mas a renegação , o desmentido – Verleugnung, ou seja, um duplo posicionamento frente à castração – há o reconhecimento da falta e, ao mesmo tempo, uma renegação dessa percepção. É disso que a perversão vem falar: da indiferença sexual – as mulheres são dotadas do falo. É importante marcar que ‘desmentir’ só é possível se há, no sujeito, a marca do desejo, isto é, da falta no Outro; não se desmente o que não se tem. Há que se ter uma inscrição inicial para que, assim, o sujeito possa vir a recusar. Neste sentido, pode-se pensar nos quadros psicóticos como estruturas em que esse momento primeiro nem chegou a se realizar. Não há inscrição, não há metáfora; trata-se de algo que atravessa, que se encontra fora do circuito.

Lacan, a partir de uma re-leitura freudiana, irá dispor as estruturas clínicas a partir do sistema real, simbólico e imaginário. Se, inicialmente, Freud faz uma leitura partindo da realidade empírica - ausência do órgão peniano na mulher - Lacan vai traduzir isso e afirmar que não se trata do real, mas do falo simbólico e imaginário.

Em seu artigo “O Falo e a Mãe Insaciável”, in seminário IV (1956-57) , Lacan inicia sua fala afirmando aquilo que a frustração não é, ou seja, ela não se constitui como a recusa de um objeto de satisfação, sendo satisfação algo articulado à noção de necessidade. É bem verdade que a idéia de necessidade não engendra a manutenção do desejo. Nenhuma relação pode ser garantida entre frustração e permanência do desejo. É importante afirmar que Freud nunca mencionou o termo frustração. Ele vai falar de Versagung, podendo ser traduzida por denúncia.

Conforme mencionado no início, a frustração não diz respeito à recusa de um objeto que venha satisfazer a necessidade do sujeito. Pode-se pensar que, inicialmente, a frustração é articulada a recusa do dom, como sinal de amor. Afirma Lacan,

O dom implica todo o ciclo da troca, onde o sujeito se introduz tão primitivamente

quanto possam supor. Só existe dom porque existe uma imensa circulação de dons

que recobre todo o conjunto intersubjetivo. O dom surge de um mais-além da

relação objetal, já que ele supõe atrás de si toda a ordem da troca em que a criança

ingressou, e só pode surgir deste mais-além com o caráter que o constitui como

propriamente simbólico. Nada é dom se não for constituído pelo ato que,

previamente, o anulou ou revogou. É sobre um fundo de revogação que o dom surge,

é sobre esse fundo, e como signo de amor, inicialmente anulado para ressurgir em

seguida como pura presença, que o dom se dá ou não ao apelo (Lacan, 1956-57, p.

185).

Diz-se de apelo, pois aí está o primeiro momento em que a palavra se dá. É o instaurador da ordem simbólica. Sendo assim, tem-se que o dom se mostra ao apelo; e o apelo se faz escutar na ausência do objeto (Idem). Quando o objeto encontra-se presente, ele se mostra essencialmente como dom, como signo de amor, e não como objeto de satisfação. É importante mencionar que toda satisfação posta em causa na frustração surge sobre o caráter de decepção no campo simbólico.

A dialética presença-ausência do objeto constitui uma relação de grande importância para o sujeito, à medida que aniquila, na satisfação, a insaciedade original que marca essa

É preciso pensar, neste momento, o que ocorre no instante em que a satisfação da necessidade é transformada em satisfação simbólica. Pela substituição, em si, já ocorre uma transformação. A ênfase e o caráter simbólico são dados à atividade, ou seja, ao modo de apreensão, que coloca a criança como possuidora desse objeto.

É assim que a oralidade se torna o que é. Sendo um modo instintual da fome, ela é

portadora de uma libido que conserva o próprio corpo, mas não é somente isso.

Freud se interroga quanto à identidade dessa libido: será a libido da conservação

ou a libido sexual? Certamente, ela visa à conservação do indivíduo: ela é de fato o

que implica de amor pela satisfação, ela é uma atividade erotizada. Ela é libido a

destrudo, mas, precisamente, porque entrou na dialética da substituição da

exigência no sentido próprio, e libido sexual (Lacan, 1956-57, p. 187).

Outra questão relevante diz respeito ao ingresso da criança na dialética da frustração. A partir daí, o objeto real não precisa ser específico, já que não é o objeto que desempenha o papel fundamental, mas sim o fato de que a atividade assumiu seu papel erógeno no campo desejante, ordenado no plano simbólico.

É interessante pensar como o falo seria introduzido, assim, na dialética da frustração. Tem-se que, de acordo com a teoria freudiana, as meninas passam por um processo muito mais complicado que os meninos, no que tange o complexo de Édipo e a diferenciação sexual. A menina precisa entrar em contato, justamente, com aquilo que nela não está presente: o falo. Obviamente, não se trata de questões orgânicas ou disposições anatômicas, mas sim de uma representação fálica imaginária. É bem verdade que Lacan trocou o termo pênis, muito

utilizado por Freud, por falo; justamente intencionado a evitar certas confusões – entre aquilo que se refere ao campo biológico e aquilo que vai muito além das disposições fisiológicas.

O falo imaginário está no cerne de numerosos ocorridos na vida do sujeito. A saída desse labirinto, desse jogo em que a criança se encontra é dada pela percepção de que a mãe é castrada e, já que o falo lhe falta, ela, assim, o deseja.

É por razões inscritas na ordem simbólica, transcendendo o desenvolvimento

individual, que o fato de ter ou não o falo imaginário e simbolizado assume a

importância econômica que tem no nível do Édipo. Isso é o que motiva ao mesmo

tempo a importância do complexo de castração e a preeminência das famosas

fantasias da mãe fálica (...) Trata-se do falo, e de saber como a criança realiza mais

ou menos conscientemente que sua mãe onipotente tem falta, fundamentalmente, de

alguma coisa, e é sempre a questão de saber por que via ela vai lhe dar esse objeto

faltoso, e que sempre falta a ela mesma (...) O falo é fundamental como significante,

fundamental neste imaginário da mãe a que se trata de unir, já que o eu da criança

repousa sobre a onipotência da mãe. Trata-se de ver onde ele está e onde não está.

Ele nunca está realmente ali onde está, e nunca está completamente ausente ali onde

não está (Lacan, 1956-57, pp. 195-197).

Neste texto, Lacan (1956-57) coloca que a questão primordial encontra-se antes do Édipo, ou seja, entre a relação de frustração e o início do complexo edípico. Segundo ele, este é o momento em que a criança se encontra na dialética intersubjetiva do engodo (Lacan, 1956-57). A fim de satisfazer o desejo materno que, por sinal, é insaciável, a criança percorre

da mãe. Esse desejo que não pode ser satisfeito, é enganado. “Precisamente na medida em que mostra à sua mãe aquilo que não é, constrói-se todo o percurso em torno do qual o eu assume sua estabilidade. As etapas mais características são sempre marcadas (...) pela ambigüidade fundamental do sujeito e do objeto” (Lacan, 1956-57, p. 198).

Em seu seminário X (1962-63), o artigo intitulado ‘A causa do Desejo’ traz uma consideração importante em relação à lei e ao desejo; ambos compartilhariam do mesmo objeto. O mito edípico traz em si essa idéia. Na origem, o desejo, como desejo paterno e a lei são a mesma coisa. Essa relação é tão próxima que é possível afirmar que a função da lei marca o caminho desejante. O desejo, como desejo pela figura materna, é como a função da lei. É no momento em que esse desejo é barrado que a lei impõe desejá-la. Neste sentido, tem- se que desejamos no próprio mandamento, que o desejo do pai é o criador da lei.

O efeito central dessa identidade que conjuga o desejo do pai com a lei é o complexo

de castração. A lei nasce da transmudação ou mutação misteriosa do desejo do pai

depois de ele ser morto, e a conseqüência disso, tanto na história do pensamento

analítico quanto em tudo que podemos conceber como a ligação mais certeira, é o

complexo de castração (Lacan, 1963 p. 120).

Para uma criança neurótica a significação do desejo da mãe está marcada, não está forcluída, como na psicose; ela aponta o que lhe falta, ou seja, o falo como significante do seu desejo. Esse simbólico institui efeitos sobre o imaginário.

Se a criança recebeu de sua mãe a significação fálica de sua falta, então ela pode

para mãe fazer-se objeto fálico como imagem (Lacan nota-o pequeno φ). O sujeito, menino ou menina, é, pela imagem de seu eu [moi], o que falta à mãe. É isto que

está em jogo para o não-psicótico. A mãe não tem o falo, logo eu o sou...para ela!

(Julien, 2002, p. 107).

Sendo a criança um objeto ofertado a tamponar o desejo materno, cabe saber como aquela ofertará à mãe esse objeto que lhe falta e como estar à altura do que a mãe deseja. Do impossível de responder a essa questão surge a angústia de castração. Ser o objeto fálico para preencher o desejo materno é a própria angústia de ser devorado e engolido por ela. Diante do horror da castração na mulher, a perversão se instaura aí, como uma conseqüência dessa angústia avassaladora.