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Gozo: de Freud a Lacan

2.3 Do indizível ao submetimento à Lei do desejo

Na teoria freudiana, a neurose está marcada na vivência passiva do infans no encontro com o sexual, com a sedução vinda de um outro5. A criança tem esse registro da irrupção do real sexual. Essa lembrança provoca uma elevação da tensão que não consegue ser descarregada. Dessa maneira, essa lembrança não se acopla ao sistema de representações. Trata-se de uma lembrança traumática que é vivenciada como uma ameaça a integridade do eu.

“É assim que a lembrança se torna traumatismo, ao mesmo tempo ferida e arma ferina que não se pode tolerar; dor e tortura de uma memória inconciliáveis com o eu (...) O sujeito (...) separa-se horrorizado dessa lembrança” (Braunstein, 2007, p. 21). De fato, o recalque traz consigo um afastamento; o que há de ser lembrado é que esse afastamento é parcial, já que o trauma não desaparece ou é esquecido, mas, pelo contrário, é eternizado.

O que ocorre é que o eu tem em si mesmo um inimigo; o desencadeante de situações inesperadas e indesejadas se colocado em liberdade. No entanto, para mantê-lo em cárcere, é necessário um dispêndio de energia e uma eterna luta contra esse material que insiste em querer fugir - o que acontece quando as defesas falham. O eu vira escravo de daquele conteúdo que ele próprio aprisionou. O traumático que antes era a experiência introduzida pelo Outro, passa a ser a lembrança em si.

5 Optou-se por escrever “outro”, com “o” minúsculo por estar fazendo referência à obra freudiana. Com as

O paradoxo é evidente: o princípio de prazer determinou o ostracismo e a exclusão

da lembrança traumática. Para se proteger do desprazer, o aparelho decretou a

ignorância dessa presença do Outro e de seu desejo que intervém sobre o corpo de

uma criança, objeto indefeso do qual abusa para gozar. Mas, ao cindir-se como

núcleo reprimido de representações inconciliáveis com o eu, este réprobo do

psiquismo, metamorfoseado em memória inconsciente, conserva-se para sempre,

torna-se indestrutível, atrai e liga a ele as experiências posteriores e retorna,

opressivo, às vezes, nas posteriormente chamadas “formações do inconsciente”,

entre as quais o sintoma é a mais sensacional (...) O sujeito, aquele do inconsciente,

experimenta a si mesmo na tortura dessa memória recorrente que o põe em cena

como objeto da lascívia do Outro (Braunstein, 2007, p. 21-22).

Neste sentido, tem-se que na introdução do sexual, o corpo da criança é um pedaço de carne, ou seja, passivo e indefeso diante do desejo do Outro. É objeto demandado pelo e para o Outro. A sedução se dá nos primeiros cuidados, na relação da satisfação das necessidades e com o submetimento do corpo e do sujeito a esse Outro desejante. É importante observar que o sujeito vai assumir diferentes posições no desejo, assim, como no fantasma do Outro (Braunstein, 2007). Essas considerações são de suma relevância e farão mais sentido nos próximos capítulos, em que se apresentarão as diferenças diagnósticas no campo da psicose e da perversão.

É possível afirmar que a sedução originária e primordial, marca o gozo no corpo do sujeito e o prepara para o momento que será experenciado posteriormente. O gozo, como o indizível, o excesso, o impossível será submetido à lei, à linguagem, ou seja, à castração.

Essas formulações compreendem a primeira teorização da etiologia das neuroses. A teoria do trauma, desse Freud inicial, apresenta o excesso desse quantum energético, dessa carga, desse gozo inarticulável e intolerável; esse excedente que ultrapassa as leis da representação. É a partir desse momento inicial que o conceito de gozo vai se desprender, conceito esse que acompanhará para sempre a história da psicanálise.

A carne do infans é desde o princípio um objeto para o gozo, para o desejo e para o

fantasma do Outro. Ele deverá conseguir representar para si seu lugar no Outro, ou

seja, deverá constituir-se como sujeito passando, imprescindivelmente, pelos

significantes que procedem desse Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo, inter-

ditor do gozo. O gozo fica assim confinado por essa invenção da palavra, em um

corpo silenciado, o corpo das pulsões, da busca compulsiva de um reencontro

sempre fracassado com o objeto (...) O sujeito (...) produz-se, então, como função de

articulação, de dobradiça, entre dois Outros, o Outro do sistema significante, da

linguagem e da Lei, por um lado, e o Outro que é o corpo gozante incapaz de

encontrar um lugar nos intercâmbios simbólicos (...) (Braunstein, 2007, p. 23-24).

A lei entra neste lugar de barra, de contenção do gozo. De fato, a lei se estabelece nesse limite, nessa proibição. Freud, em sua teoria, nomeia essa interdição de complexo de castração. Trata-se da contenção deste gozo que tem como ícone o falo. É neste sentido que se pode afirmar que a lei que rege o prazer entra na cadeia simbólica; o caminho de entrada é via Lei desejante. A partir da marca da falta – inscrita pela entrada no simbólico e na linguagem via complexo de castração e metáfora paterna – é que o sujeito pode desejar. O sujeito renuncia a esse gozo primordial em troca de uma promessa de um outro gozo; renúncia essa

que identifica o sujeito da lei. Deste modo, a lei que viabiliza o desejo, impõe, para tal, uma renúncia ao gozo. O gozo da Coisa se perde na imersão do sujeito na palavra.

(...) o sujeito vê-se levado, primeiro à localização do gozo em um lugar do corpo e,

segundo, à proibição do acesso a esse gozo localizado se não passar antes pelo

campo da demanda dirigida ao Outro (...) O gozo originário, gozo da Coisa, gozo

anterior à Lei, é um gozo interdito, maldito, que deveria ser inclinado e substituído

por uma promessa de gozo fálico que é consecutiva à aceitação da castração (...) O

gozo fálico é possível a partir da inclusão do sujeito como súdito da Lei no registro

simbólico, como sujeito da palavra que está submetido às leis da linguagem. O gozo

sexual faz-se assim, gozo permitido pelas vias do simbólico (Braunstein, 2007, p.

32).

Dessa maneira, pode-se afirmar que o sujeito se constitui, como tal, por estar fora desse gozo inicial (Das Ding), não simbolizável. Em seu processo de constituição, o infans irá se orientar pela primazia fálica, com o falo como significante e “imã” para todo o resto da cadeia de significação e significante. Neste sentido, diz-se de uma passagem da Coisa ao falo, ou seja, a inscrição da castração e do Nome-do-Pai. Desse processo fica, ainda, um resto. Trata-se do resto indizível, não simbolizado; diz-se do real ao qual tenta-se apreender com os significantes, com a linguagem; contudo, ele sempre escapa “(...) escorre e, além disso, se produz como efeito de discurso pela própria palavra, o objeto a, o fugidio mais de gozo”(Idem, p. 42).

uma instância sempre atenta; que vigia e castiga aquilo que está para-além do permitido. Aqui, as transgressões não são muito bem aceitas. De acordo com a idéia inicial freudiana, o supereu estaria por trás de conflitos que trazem à tona o que se satisfaz e o que é da ordem do desejo. Em acréscimo, o supereu se faz imperativo do sacrifício, do suplício para o sujeito; como se já não bastasse, exclama, a todo momento, o seu mandado categórico: goze!

É pela presença dessa instância que a culpa comparece no campo do sexual e do erótico. De acordo com Braunstein (2007), o supereu substitui o prazer pelo gozo. Esse mandado de gozo faz marcas no sujeito.

(...) esse imperativo é também um chamado: você não está a serviço de si mesmo,

mas presta contas a algo que lhe é superior e que é sua causa, sua Causa. A

existência lhe é oferecida e deve prestar contas dela, ainda que não a tenha pedido,

deve oferecer sua libra de carne a um Deus inclemente. (...) E o gozo é

consubstancial ao sacrifício. Em sua oferenda é o sujeito que se oferece, se submete

ao jugo que o instala na comunidade, que o inclui dentro do vínculo social, fazendo