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A viabilização do julgamento antecipado do pedido incontroverso

As sucessivas alterações do Código de Processo Civil foram fundamentais para estabelecer uma legislação mais harmoniosa com os princípios constitucionais relacionados à razoável duração dos processos. Dentre essas modificações, destaca-se aqui o §6º do art. 273, incluído pela Lei nº 10.444/2002: “§6º A tutela

antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.”

O referido dispositivo estabeleceu em nosso ordenamento jurídico aquilo que mais tarde ficou conhecido como sentença parcial de mérito, uma vez que possibilitou ao julgador conceder antecipadamente parte da pretensão jurisdicional ao autor, caso ela se evidenciar incontroversa nos autos. Trata-se, assim, de uma medida contra o protelamento à satisfação de direitos já passíveis de reconhecimento no feito. Por que esperar até o final julgamento quando parte do pedido encontra-se já maduro para apreciação?

Nessa concepção de análise legislativa, Fredie Didier Jr. (2012, p. 535) leciona:

O reconhecimento jurídico do pedido pode ser total ou parcial: o primeiro impõe a extinção do processo com julgamento de mérito; o segundo, não, supondo a existência de pedido suscetível de fracionamento. Quando parcela do direito não é mais controvertida, qualquer defesa que protelasse a sua realização seria abusiva. A parte só pode esperar para ver realizado o seu direito quando este ainda depender de demonstração em juízo.

Exemplificativamente, pode-se imaginar uma ação de cobrança em que o autor postula o recebimento de R$ 200,00; o réu, por seu turno, reconhece a dívida, no entanto, discorda do montante cobrado, afirmando dever apenas R$ 150,00. É fato incontroverso, portanto, que existe uma dívida de R$ 150,00, enquanto que ainda pende de resolução a controvérsia relativa aos R$ 50,00 restantes, o que possivelmente demandará dilação probatória e mais tempo de tramitação do feito. Eis nessas situações em que se aplicaria o disposto no art. 273, §6º, do CPC, de modo que fosse já julgado, em forma de sentença, parte do pedido deduzido nos autos (R$ 150,00), já que reconhecido pelo próprio réu (ponto incontroverso), viabilizando sua pronta execução.

Contudo, na prática a utilização dessa alternativa não se mostrava possível, em razão da interpretação sistemática dos artigos referentes à sentença no CPC, os quais determinavam a necessária extinção do feito ao ser prolatada uma sentença. Ou seja, não haveria como se utilizar a resolução parcial do mérito, porquanto o juiz,

ao decidir parte do mérito da demanda (que já restava incontroverso), haveria que, necessariamente, extinguir o feito, deixando de apreciar o restante da lide. As causas, portanto, ainda que parcialmente já prontas para julgamento, deviam se arrastar até o solucionamento de todas as questões abarcadas na demanda, para somente após se proceder na prolação da sentença de mérito.

Na esteira das reformas processuais da primeira década do século XXI, a Lei nº 11.232/2005 alterou o paradigma de sentença, como exaustivamente demonstrado no item anterior. Denota-se que tal ato legislativo se deu apenas três anos após a instituição do §6º ao art. 273 do CPC, evidenciando-se como uma resposta aos apelos da doutrina, que clamava por alterações no texto legislativo. Assim, tendo a sentença se enquadrado aos ditames da nova ordem processual civil brasileira - pautada na ideia una e sequencial da ação de conhecimento e de execução - ela passou a não mais possuir a prerrogativa de extinguir o feito, óbice que impedia a utilização da sentença parcial de mérito.

Para Câmara (2008, p. 19), a sentença jamais possuiu o condão de pôr termo ao processo, nem mesmo antes da referida reforma, citando, como exemplo, os procedimentos previstos para as ações de despejo, de depósito e as possessórias, nas quais são proferidas sentenças que não finalizam o procedimento:

[...] Para fixá-la, levei em conta, em primeiro lugar, o fato de que o mero fato de ser proferida a sentença não é (nem era) capaz de pôr termo ao processo. O mero fato de ser possível interpor recurso contra sentença mostra que o processo sobrevive àquele provimento jurisdicional. Além disso, jamais me pareceu correto definir a sentença como ato que põe fim ao procedimento em primeiro grau, já que há alguns procedimentos que não têm (nem tinham) na sentença seu ato final. Basta lembrar de procedimento como o da “ação de despejo”, “ação de depósito” ou o das “ações possessórias”.

Acerca dos procedimentos que já previam a sentença parcial, Pozza (2011, p. 168-169) ainda inclui neste rol a ação de consignação em pagamento, a ação de divisão e de demarcação de terras, bem como a sentença que, condenando o réu ao pagamento de quantia, não fixa o quantum devido, a qual carecerá de liquidação. Segundo o autor, tais procedimentos, caracterizados por se dividirem em duas fases - excetuando-se a liquidação de sentença -, sempre dependiam da decisão da primeira delas para poder adentrar na segunda etapa. Destaca-se, nesse ponto, que

o referido decisum trata-se de verdadeira sentença, suscetível à apelação, que somente após seu trânsito em julgado autorizava o início da segunda fase do procedimento. Nas palavras do jurista:

Todos esses procedimentos especiais referidos dividem-se em duas fases distintas, ambas concluídas por uma sentença, portanto, apelável, só se podendo iniciar a segunda fase após o trânsito em julgado do decisum proferido na primeira. Já na sentença cuja liquidação é imprescindível, até o advento da lei nº 11.232/05, seu trânsito em julgado era requisito para o início da liquidação.

Todavia, com a vigência do diploma que instaurou a fase de cumprimento da sentença, não só passou a ser possível a liquidação na pendência de qualquer recurso, inclusive apelação (art. 475-A, § 2º), como deixou de ser sentença, pelo conceito do código, o ato judicial que julga a liquidação (art. 475-H), passando à condição de mera decisão interlocutória, atacável por agravo de instrumento. De qualquer sorte, em todos esses procedimentos a sentença da primeira fase é preliminar à segunda fase e, portanto, à próxima sentença (ou decisão, no caso da liquidação), sendo, pois, a primeira condição de existência da segunda.

Desse modo, tais procedimentos que “implicitamente” já previam a sentença parcial, passaram a corroborar ainda mais a utilização do instituto nas demais ações de um modo geral. Isso, repisa-se, pelo fato de que o novo conceito viabilizou a aplicação da resolução parcial no campo prático. Para tanto, passou a bastar que um dos pedidos, quando houver cumulação, ou parte de um pedido, quando este for passível de cisão, se demonstre incontroverso nos autos.

Sobre o tema, Elpídio Donizetti (2012, p. 413) refere que a “incontrovérsia” foi erigida à categoria de requisito exclusivo à concessão da medida, que, segundo ele, poderá se configurar sob mais de uma forma:

A incontrovérsia consiste na ausência do confronto de afirmações em torno de um fato alegado pelo autor, seja porque o réu não se desincumbiu do ônus da defesa especificada, seja pelo fato de ter reconhecido a procedência do pedido com a sua respectiva fundamentação, ou mesmo em decorrência de eventual transação acerca de determinado pedido, ainda que anteriormente tenha sido impugnado pelo réu.

Assim, em síntese, pode-se dizer que restando incontroverso um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcelas deles, a tutela deverá ser antecipada quanto a essa porção da lide sob forma de sentença, prosseguindo o feito em relação aos pedidos controvertidos. A propósito, vale notar, a redação do dispositivo sob análise menciona que “poderá” ser concedida a tutela nesses casos, porém, segundo o

supracitado autor, não se pode admitir tamanho poder discricionário ao juízo. Isso porque, a tutela antecipatória trata-se de direito subjetivo da parte que a requer, de modo que, estando presentes os pressupostos da concessão, a medida deverá ser obrigatoriamente concedida.

Desse modo, evidenciada a viabilização e o cabimento do instituto da sentença parcial de mérito no processo civil brasileiro, bem como o afastamento dos óbices relativos à impossibilidade da sua utilização, cabe ainda suscitar se sua aplicação mostra-se efetiva no plano prático-processual, já que o processo, visto como instrumento apto à concretização do direito material, somente se legitima em sua essência quando capaz de alcançar os fins a que se destina. Nesse sentido, o capítulo seguinte se dignará a apreciar a topologia do instituto e as questões relativas aos efeitos da utilização da resolução parcial de mérito na prática através de julgamentos já realizados, sem se olvidar dos aspectos recursais, ponto que causa os maiores debates no que tange a sua eficácia aplicativa.

3. A SENTENÇA PARCIAL DE MÉRITO COMO INSTRUMENTO À EFETIVIDADE

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