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Natureza jurídica: aspectos comuns e distintos entre a sentença parcial e

3. A SENTENÇA PARCIAL DE MÉRITO COMO INSTRUMENTO À

3.1 Natureza jurídica: aspectos comuns e distintos entre a sentença parcial e

O contexto no qual se insere o dispositivo que prescreve a sentença parcial de mérito no ordenamento processual civil merece uma análise específica, mormente para averiguar sua relação com o instituto da antecipação de tutela. Isso porque, consoante já mencionado, o parágrafo 6º do artigo 273 do Código de Processo Civil, acrescentado pela Lei nº 10.444/2002, encontra-se inserido no dispositivo que abrange a possibilidade do julgador conceder, a requerimento da parte, a antecipação dos efeitos da tutela pretendida na ação (art. 273, caput e incisos I e II7).

7 Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

No entanto, para considerável parte da doutrina, como Fredie Didier Jr., Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, a topologia do instituto encontra-se equivocada. A localização “geográfica” do referido parágrafo na lei processual não condiz com suas características, já que não se trata de tutela antecipada, mas sim de julgamento do próprio mérito da ação, uma vez que se digna a apreciar parte de um pedido (ou integralmente, quando houver cumulação) deduzido na inicial que se evidenciar incontroverso nos autos.

Desse modo, a inserção da sentença parcial de mérito no dispositivo próprio da antecipação de tutela pode, prima facie, causar certa confusão no que toca à sua aplicação. Aliás, a própria redação do artigo também induz a uma interpretação equivocada ao prever expressamente o termo “tutela antecipada”8

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A conceituação do instituto da antecipação de tutela é bem definida por Paulo Afonso Brum Vaz (2002, p. 73):

Pode-se, pois, dizer que a tutela antecipada é uma proteção jurídica diferenciada, caracterizada pela urgência e pelo direito evidente, que, com base em cognição sumária ou exauriente, e presentes os requisitos legais, satisfaz antecipadamente no mundo fático, a pretensão vertida pelo postulante, concedendo-lhe uma utilidade ou atribuição que somente poderia alcançar depois da sentença com trânsito em julgado.

Na mesma linha, é o magistério de Humberto Theodoro Júnior (2010, p. 668):

Diz-se na espécie que há antecipação de tutela porque o juiz se adianta para, antes do momento reservado ao normal julgamento do mérito, conceder à parte um provimento que, de ordinário, somente deveria ocorrer depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia e prolatada a sentença definitiva.

Verifica-se, pois, que a concessão do pleito antecipatório funda-se na necessidade do requerente em ter satisfeito o pedido declinado na inicial em momento anterior ao da sentença, já que esta logicamente só se dá após o regular

8 “§6º A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados,

processamento instrutório do feito, o que por muitas vezes demanda um extenso lapso de tempo. Para tanto, evidentemente que se impõe que o requerimento seja fundamentado, devendo haver, a teor da lei, verossimilhança nas alegações do requerente, bem como fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou ainda, que reste caracterizado o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu.

Essa decisão, oportuno notar, pode também ser revogada ou modificada a qualquer tempo pelo juízo, conforme disposto no parágrafo 4º9 do referido dispositivo. E, evidentemente, as razões permissivas à revogação ou à modificação da medida devem necessariamente ser diversas daquelas apresentadas no momento da concessão (MARINONI; MITIDIERO, 2012, p. 275).

Como se denota, portanto, a própria lei tratou de estabelecer uma exceção à regra do regular desenvolvimento de todas as fases do processo judicial até a decisão final, para que fosse possibilitada ao postulante a concessão do seu pleito antes mesmo da sentença. É que o Estado, como detentor da função jurisdicional, não pode tolher dos seus jurisdicionados direitos que eventualmente e justificadamente devem ser reconhecidos antes do julgamento do feito, até porque o processo não pode ser um meio que prejudique o autor que tem razão, conforme célebre princípio formulado pelo jurista italiano Giuseppe Chiovenda (MARINONI, 2004, p. 346).

Nessa mesma trilha, Zavascki (1997, p. 27) ensina que:

A tutela definitiva é formada em procedimento necessariamente contraditório, de cognição exauriente, que, por mais sumário que seja, sempre demanda bom espaço de tempo entre o pedido e a entrega da prestação jurisdicional. Ocorre, todavia, que, em certas situações, os fatos conspiram contra essa demora [...] nem sempre a manutenção do status quo até o encerramento do processo de cognição é compatível com o dever do Estado de dar a quem tem direito tudo aquilo e precisamente aquilo a que tem direito, como disse Chiovenda, referindo-se à função do processo.

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§ 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão

A tutela antecipada, assim sendo, é dada para que seja viabilizada a imediata execução da pretensão deduzida na demanda, de modo que não fique frustrado o próprio direito que eventualmente venha a ser reconhecido em sede de sentença. Dessa forma, imperioso observar que aquilo que se antecipam são os efeitos decorrentes da sentença, e não esta em si. Segundo Zavascki (2000 apud POZZA, 2011, p. 138):

O que se antecipa não é propriamente a certificação do direito, nem a constituição e tampouco a condenação porventura pretendidas, como tutela definitiva. Antecipam-se, isto sim, os efeitos executivos daquela tutela. Em outras palavras: não se antecipa a eficácia jurídico-formal (ou seja, a eficácia declaratória, constitutiva e condenatória) da sentença; antecipa-se a eficácia que a futura sentença pode produzir no campo da realidade dos fatos

É aí que reside a questão fundamental da diferenciação entre a antecipação da tutela e a sentença parcial de mérito. Apesar de ambos os institutos possuírem a finalidade de agilizar a satisfação do direito do autor antes da prolação da sentença de mérito, o primeiro apenas concede a antecipação dos efeitos dessa sentença, ao passo que o segundo trata-se de uma sentença em si, sujeita a, após esgotarem-se os meios recursais cabíveis, ficar coberta pelo manto da coisa julgada material.

Para Fredie Didier Jr. (2012, p. 538/539), a mais importante observação que se deve fazer sobre o §6º do art. 273:

[...] diz respeito à sua natureza jurídica: não se trata de tutela antecipada, mas, sim, de resolução parcial da lide (mérito). A topografia do instituto está equivocada.

Não é antecipação dos efeitos da tutela, mas emissão da própria solução judicial definitiva, fundada em cognição exauriente e apta, inclusive, a ficar imune com a coisa julgada material. E, por ser definitva, desgarra-se da parte da demanda que resta a ser julgada, tornando-se decisão absolutamente autônoma: o magistrado não precisa confirmá-la em decisão futura, que somente poderá examinar o que ainda não tiver sido apreciado.

Na mesma linha de diferenciação dos institutos, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2012, p. 278) lecionam que:

Não se trata de simples antecipação provisória da tutela. Antecipa-se o momento do julgamento definitivo da parcela incontroversa do mérito da causa, tendo em conta que é injusto obrigar o autor a esperar a realização de um direito que não se mostra mais controverso (máxime na perspectiva do direito fundamental a um processo sem dilações indevidas, art. 5º,

LXXVIII, CRFB) e que o processo não pode prejudicar o autor que tem razão em seu pleito.

O pedido analisado em sede de sentença parcial, portanto, está sujeito a uma cognição necessariamente exauriente, ao contrário do que ocorre num pedido antecipatório, em que a cognição é sumária. E diz-se exauriente porque, de acordo com o que prescreve o próprio artigo, o pedido deverá mostrar-se incontroverso nos autos, de modo que não reste mais dúvidas acerca da sua (im) procedência. São os casos em que há prova suficiente para o deferimento do pleito, ou então quando a parte adversa não conteste especificamente um dos pedidos (ou parte dele)10, ou, ainda, que expressamente o reconheça. Nas palavras de Marinoni (2004, p. 347), quando se fala em julgamento antecipado parcial se quer dizer “que o juiz tem convicção de verdade sobre parcela da demanda, ou, melhor, que parte da demanda, por não exigir mais provas, requer julgamento ou tutela antecipada ou imediata”.

Nesse contexto, portanto, a sentença parcial de mérito fundamenta-se em uma convicção de verdade, ao contrário do que ocorre com a tutela antecipada, que é baseada em convicção de verossimilhança. Na verdade, tal distinção é elemento essencial para a própria fundamentação da utilização da sentença parcial, segundo os apontamentos de Marinoni (2004, p. 346/347):

Se é possível a realização antecipada de um direito com base em convicção de verossimilhança (art. 273, I, do CPC), é incoerente não admitir a antecipação quando a convicção acerca de um pedido é de verdade. Ora, se o direito provável pode não admitir protelação, o direito incontrovertido, por razões óbvias, não deve ter sua tutela postergada.

Dessa forma, por adquirir uma natureza jurídica distinta daquela atribuída à antecipação de tutela, tem-se que o parágrafo 6º do art. 273 do Código de Processo Civil deveria, a fim de ser mais bem interpretado e aplicado pelos operadores da lei, ser deslocado para outra parte da legislação, evitando a confusão dos institutos. Para alguns doutrinadores, inclusive, a sentença parcial trata-se de uma nova

10 Sobre tal ponto, ressalva-se que não obstante a revelia não possa tornar os fatos incontroversos, isso, porém, não abala a tese de que a ausência de contestação na forma especificada faz com que o fato não-contestado seja presumido verdadeiro. Há que se notar que no caso de revelia considera-se apenas a ausência do réu, e, como não se sabe sua causa, esse deixa de ser penalizado com a presunção de veracidade (MARINONI, 2004, p. 343).

modalidade de julgamento conforme o estado do processo, prevista no art. 330 do CPC. Segundo Didier Jr (2011, p. 539/541):

Trata-se de alteração legislativa que somente atingirá os almejados resultados se os operadores do direito atentarem para este erro topográfico e passarem a aplicar o instituto de acordo com a sua finalidade: fracionar a resolução do mérito [...]

Trata-se, na verdade, de mais uma modalidade de “julgamento conforme o estado do processo” (arts. 329-331, CPC). Eis a sua topografia ideal.

De igual modo, expõe Pozza (2003, p. 99/100) que: “O bom seria que o legislador tivesse posto o citado parágrafo 6º em artigo separado, logo após o 273, ou então ressalvado que, para sua efetivação, não seria observado o disposto no caput”.

Ainda, Fredie Didier Jr. (2011, p. 541) refere que compreender o aludido parágrafo 6º como simples antecipação de tutela significa retirar-lhe qualquer utilidade:

Defender a tese de que se trata este §6º de simples hipótese de antecipação da tutela é retirar-lhe qualquer utilidade. Se o art. 273 prevê uma tutela antecipada atípica, genérica, inominada, bastando o preenchimento dos seus requisitos, qual seria a utilidade de o legislador dizer que, quando parte do pedido é incontroverso, seria possível a antecipação da tutela? Se apenas se tratasse de uma decisão provisória, essa menção seria ociosa, pois a situação em análise enquadrar-se-ia, à perfeição, à hipótese de abuso do direito de defesa (inciso II) – realmente, a permanência da defesa do réu, no caso, seria manifestamente abusiva, em razão da incontrovérsia.

Com efeito, independentemente das críticas e das variadas interpretações topológicas do instituto, a sentença parcial de mérito, por se tratar de ato essencialmente decisório, estará logicamente sujeita a um competente recurso, em atenção ao princípio fundamental do contraditório e da ampla defesa. E, por se tratar de decisão definitiva, mas que não implica no encerramento integral da fase de conhecimento do feito, invariavelmente surge a controvérsia acerca de qual o expediente cabível na possibilidade de irresignação: agravo ou apelação? É o que se ventilará no tópico seguinte.

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