• Nenhum resultado encontrado

3. A SENTENÇA PARCIAL DE MÉRITO COMO INSTRUMENTO À

3.2 Aspectos recursais

Duas são as possibilidades recursais previstas no Código de Processo Civil brasileiro para o fim de modificar as decisões proferidas pelo juiz de primeiro grau. Como visto anteriormente, em face das decisões interlocutórias é cabível o agravo de instrumento, ao passo que contra as sentenças é oponível a apelação.

No entanto, questão tormentosa surge quando a análise se pauta sob qual desses recursos é cabível contra a sentença parcial de mérito. A doutrina divide-se basicamente em três correntes. A primeira delas, entendendo tratar-se tal ato judicial como mera antecipação de tutela, tem como pacífica a compreensão de que o recurso cabível é o agravo. Para outros, que sustentam se tratar de decisão definitiva, ainda que interlocutória, o recurso igualmente será o de agravo, contudo, seu processamento dar-se-á como se apelação fosse, com possibilidade de sustentação oral, embargos infringentes, não retenção dos recursos especial e extraordinário, etc (POZZA, 2011, p. 224). Ainda, há quem defenda que, cuidando-se de decisão de mérito, seja a apelação o meio mais adequado à repulsa dos fundamentos dessa decisão.

O debate e a inexistência de consenso decorrem em razão de uma situação paradoxal. Se por um lado a sentença parcial se trata de um ato decisório do juiz que não põe fim a determinada fase procedimental do feito, o que, a teor dos conceitos estudados, importaria em insurgência pela via do agravo; por outro, este ato resulta na resolução de parte do próprio mérito da demanda, ao que caberia, via de regra, recurso de apelação.

O entendimento acerca da matéria ainda não se encontra estabilizado. Como já referido, há forte corrente que defende o aparelhamento do agravo de instrumento como o recurso próprio à situação, com a particularidade de lhe ser dado um tratamento semelhante ao da apelação no seu processamento perante os tribunais, a fim de não sonegar direitos dos jurisdicionados que seriam concedidos por ocasião de um julgamento uno (com apenas uma sentença). É a corrente defendida por Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2012, p. 273/274):

O julgamento se dá por decisão interlocutória de mérito. Seja como for, o recurso cabível é o agravo de instrumento. Como, todavia, o mérito da causa foi enfrentado de maneira definitiva, o que normalmente só ocorre na sentença no sistema do Código de Processo Civil, não há como negar às partes os mesmos direitos e garantias que lhes são atribuídos pelo regime da apelação, sob pena de se dar aos litigantes oportunidades diferentes em situações que merecem idêntico tratamento, o que evidentemente é contrário ao postulado da coerência do ordenamento jurídico. Assim, nesse agravo de instrumento as partes têm direitos à sustentação oral, à interposição, se for o caso, de embargos infringentes, de recurso especial e/ou de recurso extraordinário não retidos, e, configurados os seus pressupostos, à propositura de ação rescisória do julgado (art. 485, CPC).

Fredie Didier Jr. (2011, p. 543/545), seguindo a mesma linha de que a decisão se trata de interlocutória, ainda aponta que esta modalidade de agravo é a melhor forma de estabelecer o recurso cabível, ainda que esse processamento diferenciado não esteja previsto expressamente na lei processual civil:

Conforme exaustivamente demonstrado, a aplicação do §6º do art. 273, CPC, dar-se-á, em primeira instância, pela via da decisão interlocutória (art. 162, §2º, CPC). Assim, o recurso cabível será o agravo [...] Pensamos que são cabíveis os embargos infringentes, quando o acórdão não-unânime, que julgar o agravo interposto contra decisão que resolver parcialmente o mérito, reformar essa decisão [...] Embora o texto normativo diga o contrário, entendemos permitida a sustentação oral no julgamento do agravo contra a decisão que resolveu parte do mérito [...] Pelas mesmas razões, entendemos que, neste agravo, será necessária a presença do revisor, embora o CPC apenas preveja para o julgamento de apelação, embargos infringentes ou ação rescisória (art. 551, CPC).

Aos que advogam nesse sentido, destaca-se o argumento de que, caso o recurso fosse o de apelação, necessariamente haveria que ser obstado o andamento do processo perante o primeiro grau de jurisdição à espera da decisão do Tribunal, já que nesta modalidade (prevista no art. 513 do CPC) os autos são integralmente remetidos ao órgão superior. Diante disso, essa interrupção do andamento do feito prejudicaria própria efetividade da prestação jurisdicional, uma vez que o tempo necessário para tal resolução violaria justamente a agilidade que se busca com o julgamento fracionado do mérito (THEODORO JR., 2006, p. 5/7).

Sobre tal ponto, todavia, a corrente contrária diverge. Os militantes à utilização da apelação como o recurso apto aduzem que a alternativa mais eficaz seria a formação de autos suplementares (nos mesmos moldes do processamento do agravo de instrumento), para que, justamente, não ocorra a paralisação da marcha processual no primeiro grau de jurisdição. Desse modo, far-se-ia uma cisão

do processo, de maneira que o recurso da decisão corresse de forma autônoma ao restante da lide, com todas as prerrogativas comuns da apelação. Segundo Pozza (2011, p. 227/228):

Em tendo natureza jurídica de sentença, como sustentamos, cabível a apelação, por força do art. 513 do CPC. Não se está, pois, a criar recurso novo, mas simplesmente advogando a aplicação de recurso já existente a uma situação peculiar. Recurso esse interposto perante o juízo a quo, mas que, uma vez recebido e respondido, suba ao Tribunal sob a forma de autos suplementares, formados com cópia integral de todo o processo, visando a permitir que o processo tenha prosseguimento normal e imediato para a solução do restante da lide, que não depende do resultado do recurso, pois, como ensina Francesco Luiso, em lição já mencionada, a posterior sentença não terá reflexos jurídicos sobre a primeira, podendo apenas minorar suas consequências sob o ponto de vista econômico. E sendo apelação, como tal será tratada no Tribunal, dando ensejo, portanto, à revisão e embargos infringentes, quando cabíveis, inviável a retenção dos recursos extraordinário e/ou especial. Haverá uma espécie de cisão do processo para que suba a apelação ao Tribunal.

Aliás, sobre a possibilidade de cisão do processo, o referido autor faz uma analogia ao fracionamento do feito que ocorre pacificamente no processo penal. Para Pozza (2011, 229), ainda que tal procedimento não se encontre previsto no CPC, trata-se da melhor forma de assimilação prática dessa nova sistemática, já que a tarefa de tentar transformar uma modalidade de apelação em agravo, como defende outra parte da doutrina, evidencia-se ainda mais onerosa aos operadores jurídicos:

A cisão do processo, aliás, prevista no art. 80 do CPP, é instituto com o qual convive o processo penal sem qualquer problema, mas com a diferença de que, quase sempre, acontece antes da instrução, em havendo um réu preso e outro foragido, por exemplo. No processo civil, todavia, ela ocorreria, em havendo sentença parcial de mérito, apenas por ocasião da apelação, se interposta. A solução ora alvitrada é mais conforme com o ordenamento, pois apenas admite mais de uma apelação num mesmo processo, ao passo que a interposição de agravo implicaria transformar esse recurso, voltado à impugnação das decisões interlocutórias, não de sentenças, em uma apelação, tarefa mais difícil de ser assimilada pelos operadores.

No mesmo sentido, também defendendo a apelação como recurso cabível, José Vilson Gonçalves (2009, p. 2) assevera que a decisão que resolve o mérito da lide, por se tratar de uma sentença, há que ser atacada invariavelmente por meio da apelação:

A partir dessa predominante orientação, inexoravelmente se concluirá que a decisão que, embasada nesse preceito em comentário, ainda que empregue a expressão “antecipação de tutela”, antecipa a solução do incontroverso, não se cuida de decisão interlocutória, como sói acontecer em antecipações típicas de efeito de tutela, mas de sentença, ante a inquestionável resolução de mérito. [...] No entanto, uma vez definida a natureza do ato judicial, e tratando-se de sentença, quer se refira à demanda total, quer se refira tão- só à parte, o recurso cabível é a apelação, porquanto da sentença caberá apelação (13), e nesse passo, conforme dito acima, a lógica originária do CPC não sofreu alteração.

Se a sentença é parcial, os autos principais se prestarão ao prosseguimento do processo quanto à lide não solucionada, devendo a apelação ser manejada em autos adicionais ou por instrumento.

A tese da utilização da sentença e da formação de autos apartados é também compartilhada por Redondo (2007, p. 54/55, grifo do autor). Para o autor, deve-se preferir a denominação de tal recurso como “apelação em autos suplementares”, e não “apelação por instrumento”. Isso, pois, ao contrário do que ocorre com o agravo de instrumento, a apreciação do juízo de admissibilidade continua sendo realizada pelo juízo monocrático, a quem é inicialmente destinado o apelo:

Assim, proferida a sentença parcial, a apelação deverá ser formada em

autos suplementares, com as fotocópias necessárias e facultativas que

possibilitem sua apreciação, à semelhança do rol de documentos exigidos para o agravo por instrumento (art. 525 do CPC) [...]

Ainda que se denomine esse recurso de apelação em autos suplementares, a sua apresentação deverá continuar sendo feita ao próprio juízo monocrático (art. 514 do CPC), para que realize o juízo de admissibilidade (art. 518 do CPC), o que revela a impropriedade da denominação apelação

por instrumento, por suscitar a diferente sistemática do agravo, que

interposto diretamente perante a segunda instância.

Como se denota, a apelação ordinariamente demanda o envio integral dos autos à superior instância (caso o processo não seja eletrônico), a fim de que seja apreciado todo o teor do processo, uma vez que a decisão se refere ao próprio mérito da lide. No entanto, aos que defendem esse recurso contra as sentenças parciais, sua utilização estará necessariamente atrelada à formação de autos suplementares. A justificativa é lógica: uma vez remetidos os autos ao segundo grau, o feito restaria integralmente suspenso, mesmo que a decisão tenha se dado apenas em relação à determinada parcela do pedido deduzido inicialmente, o que redundaria em sobrestamento do processo, justamente o contrário do que visa a sentença parcial, que busca a efetividade da prestação jurisdicional.

Vale referir que essa possibilidade de interposição de dois ou mais apelos em um mesmo processo não é vedada pelo código de processo civil. Aliás, existem procedimentos em que isso é expressamente previsto, a exemplo das ações de prestação de contas, consignação em pagamento e demarcação e divisão de terras, ainda que todos eles possuam duas fases, e que a segunda só tenha curso após o trânsito em julgado da primeira sentença, particularidade que não ocorre no ato judicial do art. 273, §6º, do CPC. (TESHEINER, 2006, p. 44).

Outro relevante aspecto a se destacar é acerca da eventual violação ao princípio da taxatividade dos recursos, porquanto a modalidade de apelação ora trazida não estaria prevista expressamente em lei. No entanto, de acordo com Fábio Milman ([2008?], p. 12), não há qualquer inovação em relação ao consagrado entendimento de sentença, havendo a única ressalva de que se impõe o envio de fotocópias para formação dos autos suplementares, o que em nada descaracteriza o referido recurso. No entendimento do autor:

Com a devida vênia, não há criação de recurso novo, mas, sim, emprego da apelação consagrada no Código de Processo Civil com estreita obediência a

toda sorte de seus pressupostos –ofertada por escrito em quinze dias

perante o juízo que proferiu a sentença, acompanhada da prova do preparo, recebida nos efeitos previstos no art. 520 do CPC, com oportunidade de resposta em quinze dias, distribuição a relator, atuação de revisor, possibilidade de sustentação oral etc. Apenas o que se agrega ao ritual ortodoxo é a remessa do recurso na forma de fotocópias em caderno

próprio, condição que em nada descaracteriza a apelação.

Ainda no prisma da legalidade, outro óbice invocado pelos que refutam a apelação como recurso competente diz respeito à ausência de disciplina legal acerca da sua formação pela via de autos suplementares. A solução, nesse caso, estaria vinculada ao poder instrutório do juízo, que se responsabilizaria pela determinação do procedimento a ser observado, sem, todavia, legislar, já que se aplicariam analogicamente os critérios que presidem a formação do agravo de instrumento. Ainda assim, a hipótese revela-se frágil, uma vez que o jurisdicionado estaria obrigado a responsabilizar-se por atos que a lei não lhes incumbe. Assim, segundo Milman ([2008?], p. 12/13), a melhor alternativa ainda repousa na alteração do texto legal:

Outro apontado problema que tornaria inviável a remessa da apelação ao tribunal por meio de autos (instrumento) em separado, repousaria na falta de disciplina legal acerca da responsabilidade pela iniciativa de sua formação. O caminho pacificador está no próprio juízo, ao receber a apelação, abraçar a tarefa [...] Também se poderia pensar na adoção do critério que preside a composição documental do agravo de instrumento (art. 525 do CPC), [...] Tais práticas, tanto deve ficar claro, lançam sobre as partes responsabilidade que a lei não lhes confere (qual seja, a de providenciar em

fotocópias para recebimento e exame de apelação – e aqui necessário

reconhecer que o apelo mal instruído não poderá ser conhecido...), pelo que sua adoção, em vez da ordem judicial de extração de peças, certamente depende de alteração no texto do Código de Processo Civil.

Por fim, outro ponto merecedor de crítica à apelação igualmente toca à praticidade da utilização de tal instrumento. Isso porque, em ações com pedidos cumulados, haveria que se prolatar tantas sentenças quantos fossem os pedidos, em tempos distintos, acarretando embaraços na rotina forense tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição. Segundo esse entendimento, seria inviável aos tribunais assimilar o recebimento de várias apelações provenientes de um único processo, impossibilitando a unicidade do julgado. Todavia, não se deve olvidar que a parte que optou por cumular pedidos poderia também ter preferido promover ações autônomas para cada um deles, o que do mesmo modo inevitavelmente demandaria uma sentença para cada ação correspondente (CHIOVENDA, 1998, p. 442/444).

Nesse contexto, é inegável que o princípio da fungibilidade recursal deverá imperar no recebimento desses recursos. A controvérsia, uma vez não pacificada, possibilita que o juízo ad quem receba a irresignação quer como agravo, quer como apelação, diante da indecisão da própria doutrina e da jurisprudência acerca do tema, que não deverá prejudicar o jurisdicionado na defesa de seus direitos.

Ademais, importante observar que a prolação da sentença parcial de mérito trata-se de uma exceção à regra, já que deve ser dada unicamente quando evidenciar-se mais vantajosa à economia e à efetividade processual. Nas palavras de Wambier, Wambier e Medina (2006, p. 141):

[...] o julgamento fracionado da lide deve ser evitado pelo juiz, que somente deve-se valer deste mecanismo nos casos em que a resolução parcial do objeto do processo se mostre evidentemente mais vantajosa para a realização da tutela jurisdicional [...]

Portanto, o julgamento fracionado da lide deve ser apreciado de acordo com o contexto da marcha processual. Cabe ao juiz a análise do amadurecimento do feito até o julgamento final, de modo que a utilização da sentença parcial necessariamente se vincule a uma condição mais vantajosa aos jurisdicionados, com racionalização do tempo e dos atos processuais. Caso contrário, não há que se estabelecer qualquer extraordinariedade ao rito do julgamento uno, que é preferível quando as exceções não demonstrarem qualquer benefício à resolução da lide.

Isso posto, demonstradas as contradições doutrinárias acerca da polêmica questão sobre qual o meio processual oponível às sentenças parciais de mérito, nada mais objetivo que apreciar como tal questão se apresenta no campo prático. Assim, o propósito do seguinte item é de averiguar no espectro jurisprudencial a utilização do instituto, analisando a abordagem conferida ao referido dispositivo legal em diferentes situações já julgadas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Documentos relacionados