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4.1.1 O contributo da filosofia e da linguagem na construção da hermenêutica neoconstitucional

Inelutavelmente, no estudo da hermenêutica constitucional pós-moderna é preciso considerar o papel que a linguagem210 e o discurso211 podem oferecer no momento da interpretação. Isso porque, o primeiro espaço em que a hermenêutica possui relação privilegiada é o da linguagem e, de modo mais especial, da linguagem escrita212.

Nessa perspectiva foi que se desenvolveram diversos estudos, que tinham como alvo a significação técnica dos símbolos; sendo precursor em importância os

de Ferdinand de Saussure213.

Na antropologia, foi com Claude Lévi-Strauss que as ideias de Saussure

foram aplicadas, surgindo o Estruturalismo Antropológico214.

210

Além dos símbolos, signos e mitos mencionados no Estruturalismo de Ferdinand de Saussure. Tributa-se a Saussure o estudo da Semiologia, concedendo autonomia cientifica ao estudo da Linguistica.

211 representado pela dialética entre explicar e compreender. Em outras palavras, para Paul

Ricouer, a epistemologia da interpretação seria uma ontologia de “via longa”, na qual se deseja entender “o que é compreensão”, ao invés de procurar um método para compreensão. Para Ricouer, há uma correlação entre explicar e compreender e vice- versa; constituindo o que, mais tarde, se denominou de círculo hermenêutico.

212

Conforme Ricardo Maurício Freire Soares, após o surgimento das antigas escolas de hermenêutica bíblica, em Alexandria e Antioquia, passando durante a Idade Média pelas interpretações agostiniana e tomista das sagradas escrituras, a hermenêutica desembarca na modernidade como uma disciplina de natureza eminentemente filológica. (SOARES, 2013, p. 208).

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Resumidamente pode-se dizer que o autor, desprezando o discurso, centrou-se nas regras que permitem a língua operar; interessando-se na infraestrutura da língua; naquilo que é comum a todos os falantes e que funciona em nível inconsciente; numa inquestionável tentativa de conferir cientificidade ao estudo; relacionando a língua apenas com que lhe é pertinente (sincronia), desvinculada da história (diacronia).

214 Para Strauss, como leitores, podemos permanecer suspensos do texto, tratá-lo apenas

como texto sem mundo e sem autor e explicá-lo então por suas relações internas; por suas estruturas; fugindo assim da subjetividade do autor e alcançando a objetividade do texto. Dessa forma, o antropólogo francês pretendia aferir o modus operandi do espírito humano. No seu entender, existem no texto elementos universais, entendidos como partes irredutíveis e suspensas em relação ao tempo, que perpassariam todo o modo de pensar dos seres humanos; atingindo-se, nessa operação, a almejada objetivação que reina nas ciências naturais.

Em todos eles, era comum o uso de regras que permitissem o desenvolvimento de estudo pragmático, fundado no distanciamento sujeito-objeto e na neutralidade, pois só assim se evitava os subjetivismos e transcendentalismos, revestindo-se de cientificidade as ciências sociais215.

No plano jurídico, foi sob a influência da neutralidade axiológica pugnada por Hans Kelsen que se buscou a referida segurança cientifica.

O positivismo, assentado no discurso da autoridade, foi usado, por longo período, como instrumento de dominação, no controle da produção dos textos jurídicos, sem qualquer mudança na realidade social. O ordenamento era entendido de forma sistemática para atender às exigências da decidibilidade dos conflitos, transformando o Direito soberano ou nacional num direito de sistematização

centralizada nas normas de exercício do poder de gestão estatal216.

215 A respeito da preeminência da epistemologia das ciências naturais sob as ciências do

espírito, Boaventura de Souza Santos exemplifica: “[...] Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa(va) quantificar. O rigor científico aferia-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto (eram), por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passa(vam) a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que

não (era) quantificável (era) cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método

científico assenta(va-se) na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer, significa(va) dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou” (SANTOS, 2008, p. 27-28). Só após, na década de 1960, com o sincretismo teórico e metodológico, a discussão do pluralismo jurídico abriu espaço para uma nova proposta, fundamentada na ideologia liberal. A consolidação de uma nova sociedade capitalista impôs uma nova concepção do político e do jurídico e uma crescente autonomia das ciências, livres do domínio religioso. A partir daí, admite-se que é difícil, senão impossível, desenvolver um conjunto plenamente elaborado de conceitos culturalmente neutros para analisar comparativamente as sociedades. As ciências sociais passaram a ostentar o status de ciência pela análise cultural que faz das sociedades. Mais uma vez, recorremos as palavras de Boaventura: “[...] O argumento fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objectiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotético” (SANTOS, 2008, p. 38).

216 Nesse sentido, Lênio Streck chama esse discurso dogmático de "fetichização do discurso

jurídico", explicando que, por meio de tal discurso, "a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (de produção) que a engendraram, como se a sua condição-de-lei fosse uma propriedade natural (STRECK, 2005b, p. 95). Não

Porém, como não poderia deixar de ser, ao pretender tal distanciamento, que condicionava o estatuto cientifico das ciências, a verdade ficava comprometida, perdendo a densidade ontológica da realidade estudada (GADAMER, 2008).

Todavia, com o surgimento da fenomenologia, rapidamente sua influência foi sentida em diversos ramos do conhecimento, e no Direito, atuou no resgate da relevância do papel do intérprete na concepção da verdade (ROCHA et al., 2011, p. 150). Contrariamente a atitude neutra e distanciada do racionalismo, a fenomenologia pugna pela necessária interferência do subjetivismo na apreensão e compreensão do mundo.

Segundo Hans Georg Gadamer, só a totalidade psíquica do intérprete, relacionada à percepção dos fatos sociais regulados pelo Direito, permite realizar plenamente a compreensão. A revelação quanto à linguagem e ao conteúdo de um texto contemporâneo, só se dá “no vaivém do movimento circular entre o todo e as partes” (GADAMER, 2008, p. 298).

Nessa linha de compreensão, Manoel Jorge e Silva Neto, alerta que a tradição e a pré-compreensão compõem o fenômeno hermenêutico, pois interpretar “decorre necessariamente do prévio conhecimento (tradições aliadas à pré-

compreensão) a respeito do que empiricamente se sucede na vida real”217. E é esta

obstante, cabe nesse instante uma advertência: enganam-se aqueles que imaginam que Kelsen ignorava a influência dos aspectos sociológicos, políticos ou econômicos na interpretação da norma jurídica. Absolutamente não. Kelsen não reduziu o Direito à norma. Em verdade, ele entendia que, para construção de uma epistemologia jurídica, uma Teoria Pura, tais aspectos deveriam ser alijados, a fim de se sistematizar uma “verdadeira” ciência, livre de interferências de elementos extranormativos, sob pena de “[...] a pureza de método da ciência jurídica (estar) então posta em perigo; não só pelo fato de se não tomarem em conta os limites que separam esta ciência da ciência natural, mas - muito mais ainda - pelo fato de ela não ser, ou de não ser com suficiente clareza, separada da Ética: de não se distinguir claramente entre Direito e Moral. (KELSEN, 2003, p. 67).

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Efetivamente, o pré-conceito (ou pré-juízo), no sentido positivo que Hans Georg Gadamer lhe confere, ou ainda a autoridade e a tradição são condição prévia de toda a compreensão, ou seja, não há compreensão sem pré-compreensão (ou preconceito), porque só podemos compreender a partir de um horizonte de sentido que já temos de antemão, determinado pela nossa pertença a um “mundo” e a uma tradição e dentro dos seus pressupostos. O círculo hermenêutico (ou arco hermenêutico, como já destacado) põe a nu o jogo que vai da pré-compreensão à compreensão, no processo recorrente, contínuo e sempre inacabado, de compreender mais para compreender melhor. Não há, pois, compreensão sem pré-compreensão, por um lado, e nunca há uma compreensão ou interpretação última, por outro, já que cada horizonte a partir do qual se compreende é apenas um horizonte, este horizonte, e podemos sempre retomar o processo, mais tarde, desde um outro horizonte, o que nos permitirá compreender não só mais, mas melhor ou, ainda, de outro modo (GADAMER, 2008, p. 344-353). Todavia, é salutar esclarecer que,

interação que permite ao intérprete mergulhar na linguisticidade do objeto hermenêutico, aproveitando-se da textura aberta da obra (SOARES, 2011).

Não obstante, ainda hoje, quando aplicado à dimensão jurídica, a percepção do círculo hermenêutico é alvo de censuras, em especial, no âmbito da teoria da decisão.

A ideia de sistema jurídicocientífico aberto, nunca tomado de forma definitiva,

pode oferecer, segundo alguns teóricos, insegurança e arbitrariedades218.

Todavia, como já sinalizado, dentro da perspectiva neoconstitucionalista,

cresce, ao lado do sentimento jurídico219, a importância do exame das circunstâncias

sociais do caso concreto. Circunstâncias essas, dinâmicas e mutáveis; repletas de diversidade nas tradições culturais220, religiosas e morais existentes221.

De fato, segundo Dirley da Cunha Júnior, “o Direito é cultura porque é criação do Homem: Tudo que existe, ou sucede, por intervenção do homem, e em que se

na concepção de Manoel Jorge e Silva Neto, quando se refere a pré-compreensões: “[...] não se refira que é o caso da ideia inata, porque, se colocarmos uma criança de tenra idade diante de uma circunstância desconhecida, não saberá distinguir as situações que nunca vivenciou. [...], pois, a ausência de discernimento quanto aos fatos inviabiliza, por completo, o fenômeno interpretativo”. (SILVA NETO, 2013, p. 137).

218 Admitir que o subjetivismo do intérprete faça parte dos critérios da interpretação é deixar

ao alvedrio do aplicador a escolha. No domínio da decisão, seria admissível que o juiz, quando a norma em questão carecesse de interpretação, formasse em primeiro lugar o seu convencimento (do que seria a decisão “justa”), por vias distintas da subsunção a lei, e só então, de certo modo para efeitos de controle, passasse a procurar fundamentar na lei o resultado previamente obtido. Com isto, o resultado seria decorrência da escolha do método e as valorações particulares adotadas pelo julgador, residindo aí à maior crítica. (LARENZ, [s.d.], p. 168-169).

219 Por sentimento jurídico, refere Karl Larenz, como processo psíquico que encerra uma

opção ou valoração e que se expressa como uma aprovação ou desaprovação da decisão (assim proposta ou emitida). Tal expressão não pode ser senão a exteriorização de um processo psíquico do foro interno. (Idem, página 169). Assim, o sentimento jurídico não seria um sentimento individualizado, mas sim, um sentimento compartilhado no seio da comunidade (cf. SANTOS, 1988, 17-19).

220

Partindo das ideias do fenomenologista Edmund Husserl, Carlos Cossio identificou a existência de quatro regiões ônticas do conhecimento (objetos ideais, naturais, culturais e metafísicos), as quais foram representadas por meio de uma tabela por Manoel Jorge e Silva Neto. Reconhece o autor que o Direito busca no substrato empírico da realidade social a fonte que, ao depois, será materializada através do processo de adscrição dos enunciados linguísticos. (SILVA NETO, 1998, p. 113-114).

221 Aceitando como necessária à convivência de realidades diversas, o multiculturalismo

surgiu como um movimento baseado no pluralismo e na coexistência pacífica, dentro de um mesmo país, região ou local, de diferentes culturas e tradições. Inclusive, foi a partir dele que Marcelo Neves desenvolveu sua tese acerca do transconstitucionalismo, admitindo o diálogo transversal entre as diversas ordens jurídicas ou mesmo extrajurídicas na resolução de problemas constitucionais comuns. À propósito, para consulta: David & McGrew (2001); Santos (1997); Pinto (1999, p. 56-69).

incorpora ou procura incorporar-se um valor, é cultura”222. E em arremate, sintetiza Manoel Jorge e Silva Neto: “de um objeto cultural (leia-se: do Direito) não se extrai um sentido, mas sim, convictamente, um valor” (SILVA NETO, 1999, p. 11).

É sob esse aspecto que se pretende estudar a hermenêutica nesta tese; pois “tudo que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente depende de práticas interpretativas [...] sendo a hermenêutica inseparável da própria vida humana” (SOARES, 2011).