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2.2 A NATUREZA JURIDICA DA CLAUSULA PRO MISERO

2.2.1 A cláusula pro misero e a relação com institutos jurídicos afins

2.2.1.5 Nossa posição: cláusula pro misero como topoi

Após as considerações sobre os institutos afins, cumpre investigar, a partir de então, à luz das novas metodologias do pensamento científico do século XXI, as características e natureza jurídica da cláusula pro misero.

Como vimos defendendo, embora haja afinidade com os princípios,

postulados e os conceitos jurídicos indeterminados104, a cláusula pro misero

distingue-se por peculiaridades que lhe conferem natureza diversa e específica no sistema jurídico pátrio, seja pela própria necessidade de formulação teórico-jurídica mais condizente com as transformações sociais hodiernas, seja pelas contradições práticas que a sociedade pós-moderna vem impondo à ciência do Direito.

Visando atender os novos padrões de contextos sociais, na estrutura da hermenêutica constitucional pro misero, parece forçoso aceitar, logo de início, um deslocamento da discussão do padrão lógico formal-sistemático de inspiração positivista para um eixo criativo do direito, que, se de um lado, preserva o conteúdo normativo do ordenamento, de outro, lhe aproxima mais efetivamente da dimensão concreta de justiça. É nesse cenário que comparece de importância salutar a metodologia tópica de abordagem do direito.

De matriz aristotélica, a concepção tópica procura situar-se na conhecida distinção, que tem caracterizado o pensamento ocidental, entre o conhecimento e/ou

103Que abrange os princípios e valores adotados, expressa ou implicitamente, pelo

ordenamento jurídico nacional.

raciocínio apodítico105 e o conhecimento e/ou raciocínio dialético-retórico106 de deliberação a partir de opiniões ou pontos de vista geralmente aceites - os topoi.

Os topoi ou “lugares comuns” podem ser conceituados como argumentos estandardizados, aceitos por todos (pela maioria ou pelos mais qualificados) que, progressivamente e por múltiplas aproximações, fundamentam a racionalidade das decisões judiciais de forma mais consistente e persuasiva, pela obtenção do

consenso (SANTOS, 1988, p. 5-6)107.

Nesse sentido, Daniel Sarmento leciona:

A partir do caso concreto, o operador do direito deve buscar a solução mais justa, através de um procedimento circular, por intermédio do qual são testados os diversos topoi (pontos de vista), para verificar qual deles acena com a melhor resposta para o problema enfrentado... A decisão, na tópica, resulta do confronto dialético entre os diversos topoi pertinentes ao caso, devendo prevalecer aquele que contribuir para a construção da solução mais justa (SARMENTO, 2003, p. 128-129).

No Brasil, como característica elementar, a hermenêutica da cláusula pro misero tem ocorrido essencialmente no âmbito dos tribunais, tendo por instrumento,

a zetética108 e; ponto de partida, os problemas sociais emergentes concretos.

Por esse processo, buscam-se levar em conta os méritos relativos às diferentes pretensões, mesmo daquelas que se situam fora do objeto da causa ou que aprioristicamente seriam “proibidas” - à luz dos critérios da lógica jurídico- sistemática e das regras definidoras da competência e da jurisdição (SARMENTO, 2003, p.128-129), mas que a sociedade refere e tem conhecimento direto; tencionando-se, nesse propósito, que a decisão contabilize o menor número de equívocos e o maior número de adesões.

105 O conhecimento apodítico (as aporias) aspira à verdade absoluta e recorre para isso à

demonstração analítica, através da dedução lógica (silogística) ou da experimentação empírica.

106 O conhecimento dialético-retórico aspira à adesão ao que é crível, plausível, razoável,

recorrendo para isso a provas dialético-retóricas, isto é, à argumentação.

107 Em Aristóteles, os topoi consistem num conjunto de pontos de vista empregáveis em

muitos sentidos e que são aceitáveis universalmente, que podem conduzir à verdade. (DIAS, 2010).

108 O termo zetética deriva do grego zetein, que significa por em dúvida, investigar, duvidar.

Assim, pode-se entender o pensamento zetético como uma oposição ao pensamento dogmático. A zetética coloca o questionamento como posição fundamental, admitindo que qualquer paradigma ou dogma seja investigado, indagado. Qualquer premissa tida como certa pela dogmática pode ser reavaliada, alterada e até desconstituída pelo ponto de vista zetético.

Inclusive, uma das características mais salientes do topoi pro misero reside em que as decisões não resultam da aplicação unívoca de normas/leis gerais a casos concretos. São antes o produto do sopesamento e fixação gradual, provisória e sempre reversível do topoi, cuja carga normativa (extremamente vaga em abstrato) se vai especificando, a medida que se envolve, pela argumentação, com a faticidade concreta da situação em análise.

O objetivo, como dito, é estabelecer gradualmente decisão que seja aceite pelas partes e pelo auditório relevante109, ou que, “não sendo aceite por todos, mantenha [como observado por Boaventura de Souza Santos] carga de persuasão suficiente para marginalizar ou estigmatizar os recalcitrantes” (SANTOS, 1988, p. 17- 19)110.

Não obstante, a par do proveito, o uso dessa nova metodologia não passou incólume aos críticos.

Um dos problemas fundamentais fica por conta da própria imprecisão conceitual de tópica e de topoi111. Ademais, em se tratando de tema tão incômodo como o da efetividade dos direitos sociais, muito difícil é alcançar o sobredito “consenso” por exigir base social estável, projetos institucionais firmes e cultura política progressista; o que ainda não se observaria na sociedade brasileira.

De outro lado, ao ser adotada como forma de pensamento a posteriori - e não a priori - a cláusula exige dos operadores do direito à consideração dos problemas

109

Os demais interessados e a própria sociedade. Aqui a referência é a retórica de Chaim Perelman. A partir de 1947, na Bélgica, Chaim Perelman, juntamente com sua colaboradora Lude Olbrechts-Tyteca, vai desenvolver sua pesquisa que resultará, em 1958, na publicação do Tratado da Argumentação. Perelman é pioneiro na reabilitação da retórica e no despertar do interesse, sobre o tema, de sucessivas gerações de filósofos. Suas reflexões sobre o discurso argumentativo e a introdução dos conceitos de auditório interno e universal ampliaram, de modo significativo, o conhecimento acerca desse processo de comunicação. Como cerne de seu estudo, para Perelman em função de um

auditório, qualquer argumentação se desenvolve. Para tanto, deve-se ter em mente que:

“toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual”. (PERELMAN, 2005, p. XIV e 16).

110 Marxista notório e confesso, Boaventura de Souza Santos reivindica, neste livro, a

incorporação do discurso jurídico, enquanto objeto de estudo, a uma abordagem marxista do Direito. Por meio da investigação científica do processo de produção informal do direito ocorrida na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro (1970), o autor vai visualizar o nascimento e desenvolvimento de um direito extraoficial, denominado de “Direito de Pasárgada”. Pelo uso de mecanismos normativos e fóruns jurídicos criados pela própria comunidade na resolução dos problemas afetos à moradia, o autor pretende responder dois questionamentos: acerca das possibilidades e dos limites do direito insurgente diante dos desafios contemporâneos.

111

Quanto a crítica, voltaremos a falar com mais vagar no item 4.2.2.2 A tópica de Theodor

fora do tradicional modelo de sistema. Pensar topicamente, requer um sistema aberto, no qual a ideia de hipossuficiência e seu combate não pode e nem deve ser aferida de antemão (pela fixação de critérios objetivos); mas requer ser deliberada pela reflexão do problema – e de sua interpretação – em toda a sua extensão e complexidade112.

Contudo, ao que tudo indica, foi a reflexão sobre a normatividade dos direitos fundamentais sociais de cunho existencial que tornou imperativa a análise dos casos concretos sobre as possibilidades da metodologia tópica do direito, estimando-se, por essa via, dotá-los de legitimidade e consistência na garantia de concretização do pacto social constitucionalmente albergado.

Na práxis, quando defronte a problemas relacionados às diversas formas de marginalização, vê-se que os tribunais precisam alijar a antiga pretensão de permanência e a-historicidade do conteúdo normativo; preferindo, no trato das questões sociais, alcançarem-lhes a resolução por meio de valorações e referências conjunturais de reconhecida mutabilidade no tempo e no espaço (MENDONÇA, 2003, p.278), o que faz sentir, ainda mais presente, o vigor da influência da hermenêutica tópica nesse processo.

A nosso ver, a cláusula pro misero é fruto do anseio compartilhado pela sociedade brasileira de irresignação e urgência em dar significado e efetivo cumprimento ao querer constitucional de depauperamento das desigualdades de

diversas ordens113 que ainda marcam a realidade de inúmeros cidadãos em todo o

país.

Como consectário, é crescente o prestígio do uso do topoi pro misero nas decisões judiciais que envolvem direitos sociais vitais e, embora alvo de críticas, sua aplicação demonstra que as leis carecem menos rigor e mais relativização, como única forma de superar a inoperância das diretrizes constitucionais e as limitações da dogmática clássicas.

112A par dessas críticas, destaca-se também a própria imprecisão conceitual de

praticamente todos os principais pontos utilizados na construção do pensamento tópico. Segundo Manuel Atienza, pode-se atribuir, pelo menos, três sentidos diferentes a tópica de Viehweg: (1) uma técnica de busca de premissas; (2) uma teoria sobre a natureza das premissas; (3) uma teoria sobre o uso dessas premissas na fundamentação jurídica. (ATIENZA, 2000, p. 70-72).

113 Leia-se: diversidade cultural, racial, étnica, social, educacional, econômica, dentre outras.

Ou seja, qualquer tipo de vulnerabilidade ou relação desigual não autorizada pela Constituição Federal de 1988.

Em razão de todo o exposto, é que se justifica a opção, nesse trabalho, pela identificação da natureza da cláusula pro misero como um topoi, tendo, no exame da atividade judicial, tanto dos tribunais locais quanto do constitucional, não só sua gênese, mas também a fixação de suas características mais marcantes de prevalência, sobreposição e essencialidade.

3 INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DA CLAUSULA PRO MISERO

3.1 O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NA CONCRETIZAÇÃO DA