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4.2. INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

4.2.2 Processos de interpretação constitucional

4.2.2.4 Procedimentalismo e substancialismo

Antes de adentrarmos no estudo nos conceitos e categorias da nova interpretação constitucional, cumpre aduzir como, desse conjunto de fenômenos, resultou a construção de duas concepções importantes no desenvolvimento do

262 Segundo o autor, significa dizer que a norma constitucional deve funcionar, sempre,

como guia ao legislador a partir e com fundamento no qual promove as suas escolhas políticas quando da edição da lei. (SILVA NETO, 2013, p.152).

263 Ultrapassada que está a técnica da subsunção diante da presença dos princípios

constitucionais (ou normas-princípios), ao juiz se impõe o encargo de contígua adequação da lei às prescrições constitucionais. (SILVA NETO, 2013, p.152).

Constitucionalismo contemporâneo (capazes de influir de forma direta na jurisdição

constitucional), quais sejam: o procedimentalismo e o substancialismo264.

Em poucas palavras, é possível compreender que o conteúdo dessas concepções implica discutir qual é a extensão da jurisdição dos juízes num determinado país.

As raízes históricas da dicotomia podem ser encontradas no leading case norteamericano Marbury versus Madison (1803), que inaugurou a discussão e consolidou o paradigma, nos Estados Unidos, de que toda e qualquer questão pode ser analisada pelo Poder Judiciário265.

Entrementes, foi considerado pelo relator que o poder judicial, nos Estados

Unidos, é estendido a todos os casos decorrentes da Constituição266. Lá; “a

Constituição é o que o juiz diz que ela é”.267

264Como representante do procedimentalismo, é possível identificar Robert Alexy,

especialmente quando exaustivamente propõe a construção de um discurso racional em bases racionalistas que, malgrado possa produzir respostas diametralmente opostas, devem ser seguidas à risca na construção da argumentação jurídica. Ao revés, como adepto do substancialismo, tem-se Ronaldo Dworkin, que admite a existência de uma resposta correta apenas, de caráter absoluto, a ser encontrada.

265 O Caso "Marbury versus Madison" foi decidido em 1803 pela Suprema Corte dos Estados

Unidos, sendo considerado a principal referência para o controle de constitucionalidade difuso exercido pelo Poder Judiciário. Nesse julgado firmou-se o princípio da supremacia da decisão judicial, abrindo caminho para a chamada "Judicial Review", que dá ao Judiciário a possibilidade de rever os atos do Congresso praticados em ofensa à Constituição. A decisão envolveu o equilíbrio dos Poderes naquele país. Na eleição presidencial dos EUA de 1800, Thomas Jefferson derrotou John Adams. Após a derrota, John Adams resolveu nomear vários juízes em cargos relevantes, para manter certo controle sobre o Estado. Entre eles se encontrava William Marbury, nomeado Juiz de Paz. O secretário de justiça de John Adams, devido ao curto espaço de tempo, não entregou o diploma de nomeação a Marbury. Já com Jefferson presidente, seu novo secretário de justiça James Madison, se negou, a pedido de Jefferson, a intitular Marbury. Marbury apresentou um writ of mandamus (Mandado de Segurança) perante a Suprema Corte Norte-Americana exigindo a entrega do diploma. O processo foi relatado pelo Presidente da Suprema Corte, o Juiz John Marshall, em 1803, que concluiu, segundo interpretação própria, que a lei federal que dava competência à Suprema Corte para emitir mandamus contrariava a Constituição Federal. Como a lei que dava competência a Suprema Corte era inconstitucional, não cabia à Suprema Corte decidir o pedido do

mandamus. (USA, 1803).

266 Acerca dos poderes dados aos juízes pela Constituição: “Could it be the intention of those

who gave this power, to say that, in using it, the constitution should not be looked into? That a case arising under the constitution should be decided without examining the instrument under which it arises? This is too extravagant to be maintained. In some cases then, the constitution must be looked into by the judges. And if they can open it at all, what part of it are they forbidden to read, or to obey? […]. If such be the real state of things, this is worse than solemn mockery”. Traduzindo: “Poderia ser a intenção de quem deu esse poder, para dizer que, em usá-lo, a Constituição não deve ser analisada? Que um caso decorrente da constituição deve ser decidido sem examinar o instrumento em que ele

No Brasil, como sentenciado por Sidnei Agostinho Beneti:

Ainda estamos, em nosso país, à espera de uma decisão que divida as águas com essa força, como ocorreu com Marbury versus

Madison, mas é preciso constatar que o Poder Judiciário no Brasil se

afirma progressivamente e é acatado, a despeito das névoas dos mais diversos matizes político-econômico-ideológicos que sempre surgem diante das decisões judiciais fortes, as quais sempre tiveram e terão o dom de incomodar (BENETI, 2003, p. 23).

De fato, no Estado Democrático de Direito Brasileiro, o papel do Judiciário não é o mesmo que possuía anteriormente, que se pautava pela formulação clássica das relações de poder com os demais poderes estatais. Todavia, apesar de a jurisdição constitucional pátria ser exercida amplamente no país,268 ainda não se pode vislumbrar, segundo Lênio Streck, que no plano do agir cotidiano dos juristas no Brasil, uma das duas teses (procedimentalismo e substancialismo) seja francamente perceptível (STRECK, 2005b, p. 48).

Conforme Manoel Jorge e Silva Neto269, na visão tradicional, que tem por base a tese procedimentalista, a Corte Constitucional só tem o papel de mero fiscalizador da Democracia de Direito, devendo criar, citando Habermas (2012), esfera de proteção para respeito ao procedimento estatuído pelo Estado Democrático de Direito270.

surge? Isto é muito extravagante para ser mantido. Em alguns casos, então, a constituição deve ser analisada pelos juízes. E se eles podem abri-la em tudo, em qual parte dela lhe seria proibido ler ou obedecer? [...] Se tal é o estado real das coisas, isso é pior do que zombaria solene” (USA, 1803).

267

“The Constitution is what the judge says it is” (Cf. SILVA NETO, 2013, p. 234; MACCORMICK, 2008, p. 145 e ss); os autores ressalvam, com referência à decisão, as consequências inaceitáveis que surgiriam caso fosse decidido de forma diferente (argumentação e consequencialismo).

268

Desde o juiz estadual aos ministros do Supremo Tribunal Federal; todos interpretam a Constituição, podendo, inclusive, recusar aplicação à lei ou outro ato normativo que considerem inconstitucional. (BARROSO, 2006, p. 53).

269 Em preleção, na disciplina Teoria da Constituição ministrada no Programa de Pós-

Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, no ano de 2012.

270 Sustentando a tese procedimentalista, Jürgen Habermas critica com veemência a

invasão da política e da sociedade pelo Direito. Tece críticas especialmente ao que denomina de “gigantismo do Poder Judiciário”, surgido no pós-guerra. Como contraponto, propõe um modelo de democracia constitucional que não se fundamenta nem em valores compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da vontade e que exige uma identidade política não mais ancorada em uma “ação de cultura” mas, sim em uma “nação de cidadãos”. (HABERMAS, 2012, p. 297-298).

Expoente do Procedimentalismo, Habermas critica duramente a invasão da política e da sociedade pelo Direito, partindo da ideia de que os sistemas jurídicos construídos a partir do final do século XX, mesmo nas democracias das massas do Estado Social, impõem visão procedimentalista do Direito (SILVA NETO, 2013, p. 295 apud HABERMAS, 2012, p.297 e ss).

Ao que parece, por meio dessa noção, o filósofo alemão busca prevenir que uma jurisdição juridicamente criativa de Tribunal Constitucional torne-se uma instância estadista, sendo fulcral, segundo ele, no exercício da judicatura, que haja distanciamento da política e que o foco de suas atribuições se mantenha pautado na racionalidade superior de seus discursos. E acrescenta: “sob olhares críticos de uma esfera pública jurídica politizada – de cidadania que transformou na ‘comunidade dos intérpretes da constituição’ – o tribunal constitucional pode assumir, no melhor dos casos, o papel de um tutor” (HABERMAS, 2012, p. 347).

Todavia, em virtude da cada vez maior proatividade cobrada dos poderes públicos em sede de efetivação e concretização dos direitos sociais, surgiu, em oposição ao procedimentalismo, a tese substancialista; que, no Brasil, tem em Lênio Luiz Streck um de seus mais entusiasmados defensores.

Segundo o autor:

[...] na esteira das teses substancialistas, entendo que o Poder Judiciário (especialmente a justiça constitucional) deve assumir uma postura intervencionista, longe da postura absenteísta, própria do modelo liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira (STRECK, 2005b, p.48).

Na mesma linha, citado por Manoel Jorge e Silva Neto, tem-se L. H. Tribe, para quem, tendo a constituição valores substantivos, tais devem ser implementados pelo Judiciário; fato que demanda, até mesmo a participação democrática do cidadão, para a construção e pleno desenvolvimento da vontade política do Estado (TRIBE, [s.d.], p. 133 apud SILVA NETO, 2013, p. 295-296).

Com efeito, tendo como norteador a tese procedimentalista, o Poder Judiciário, quando instado a se pronunciar sobre concretização de normas programáticas e direitos sociais, frequentemente recorria à separação dos poderes para entregar ao Poder Executivo a missão de conduzir as políticas públicas nessas áreas. Entretanto, o que se espera do Judiciário hoje, não é posição subalterna

perante os outros poderes, sobretudo com relação àqueles a quem cabe a produção normativa (MACHADO & HERRERA, [s.d.], p. 3289).

Assim, a querela em pauta nessa dissertação, centra-se na análise das duas grandes teses a serem equalizadas pelo Judiciário: a “Teoria da Reserva do Possível” e a “Máxima Efetividade pelo Estado do Núcleo Essencial dos Direitos Fundamentais Sociais pro misero”, sob olhar, nesse exercício, a partir de dois eixos: o procedimentalismo e o substancialismo.

Ao nosso sentir, aos argumentos de cariz procedural (contrários à legitimação do controle de políticas públicas pelo Judiciário) inelutavelmente devem se opor argumentos favoráveis à atuação do juiz, conferindo-lhe o poder de dar vida à Constituição (sendo essa sua tarefa precípua) e, consequentemente, promover intervenção concretista dos direitos sociais de núcleo vital (MACHADO & HERRERA, [s.d.], p. 3290).

Sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira.

Como fatores de fomento dessa nova realidade, podem-se citar: a redescoberta da cidadania e a conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos, a criação, pelo Texto Constitucional pátrio, de novos direitos; introduzido novas ações com ampliação da legitimação ativa para tutela de interesses, mediante representação ou substituição processual271 e a virtuosa ascensão institucional do

Poder Judiciário, que passou a desempenhar papel simbólico importante no

imaginário coletivo (BARROSO, 2006, p. 53).

Outrossim, o referencial fático produzido pela sociedade brasileira vem impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão dos poderes da República, desautorizando até mesmo a atividade legislativa de romper a barreira do núcleo essencial, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade.

Nesse viés é que a garantia do conteúdo essencial pro misero surge amparado basicamente na ideia de limitar os abusos normativos da atividade reguladora do legislador ordinário em matéria de direitos fundamentais sociais e na inadmissão do desrespeito à Constituição, tanto mediante ação quanto inércia

271 Atuação dos Ministérios Públicos, Defensorias Públicas, associações, sindicatos, dentre

governamental, que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional (MACHADO & HERRERA, [s.d.], p. 3291).

Aliás, como apontado por Manoel Jorge e Silva Neto, a visão substancialista de condução do Poder Judiciário nos interesses sociais relevantes parece ser muito mais uma etapa para atingimento da ideia procedimentalista de cidadania ativa, destinada a realizar, no plano político, os valores substanciais da coletividade (SILVA NETO, 2013, p. 296).

Prova disso, é o crescimento do comportamento ativo do cidadão nos espaços políticos e nas centenas de decisões judiciais tomadas pela Suprema Corte que, sufragando o entendimento por nós esposado, vem alijando os argumentos conservadores (que sustentam a aplicação da teoria da reserva do possível e da

repartição hermética dos poderes) 272, e adotam, por meio da ponderação de bens, o

de que há direitos positivos, ligados à dignidade humana, que implicam leitura relativizada da cláusula financeira273.

Embora ainda não se possa falar em adesão plena a qualquer uma das teses274, constata-se o desenvolvimento da judicialização das questões políticas e sociais no país, o que será demonstrado ilustrativamente pelo conjunto de pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais a ser colacionado nos tópicos seguintes.

Antes disso, como produto dessa nova tendência, cumpre aduzir as técnicas de interpretação que instrumentalizam, no campo da hermenêutica constitucional, tal realidade. São elas: o pensamento possibilista de Peter Häberle e a força normativa de Konrad Hesse que integram, ao lado do método tópico, os alicerces conformativos da cláusula pro misero.

272 Com vistas a configurar limites fático e teórico à concretização dos direitos fundamentais. 273 Esse, inclusive, foi o posicionamento firmado no Supremo Tribunal Federal, na decisão

prolatada pelo Ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário (RE) nº 581352/AM, Proteção Materno-Infantil - Assistência à Gestante - Dever Estatal - Omissão Inconstitucional - Legitimidade do Controle Jurisdicional. Recorrente: Ministério Público do Estado do Amazonas. Recorrido: Estado do Amazonas. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 21 de novembro de 2013 (BRASIL, 2013a).

274 Mesmo o Supremo Tribunal Federal não tem sido uniforme quanto à primazia absoluta

dos direitos sociais em detrimento da cláusula da reserva do possível, tendo entendido, no julgamento da ADPF 45, ser justificável a oposição de limitação material pela Administração, não havendo como exigir, de imediato, a implementação de uma política pública. (Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45/DF. Arguinte: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Arguido: Presidente da República. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 29 de abril de 2004) (BRASIL, 2004).