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FOTO 27 – FÁBRICA REFRIGERANTES COROA EM 2002

5. AS PRÁTICAS DE GESTÃO E A REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA

5.1. A REPRESENTAÇÃO DO DIRIGENTE COMO “PAI”

5.1.3. A visão dos funcionários da família e a representação da empresa

"súditos". Mas são "companheiros" em virtude da tradição, e não "membros" em virtude de estatutos. Assim, eles devem obediência ao senhor e não a regras instituídas. Este aspecto influencia muito o modo de cobrança do proprietário da empresa. Os funcionários são vistos

por um espelho, quer dizer, precisam ter a mesma dedicação e responsabilidade que o seu patrão.

As falas dos funcionários que demonstraram a dedicação de Roberto ao trabalho não estão impregnadas de ressentimento, mas sim de uma espécie de orgulho para marcar a sua participação no desenvolvimento da empresa e para ressaltar a sua responsabilidade e compromisso nesse processo, como no discurso do gestor 9.

Às vezes eu sou até cobrado pela esposa e pelos filhos, você só pensa na coroa, não é que eu só penso na Coroa, mas eu tenho que realmente pensar muito porque eu acho que foi aonde eu vivi a maior parte da minha vida, e de onde a gente tirou tudo o que a gente tem na vida, todo o sustento, casa, etc.

Nas entrevistas, um dos comentários que mais chamou a atenção foi de um ex-funcionário, demitido, sobre as suas memórias quando trabalhava com Roberto Anselmo Kautsky. O ex- membro 1 exaltou a sua entrega à empresa, a sua admiração pelo proprietário.

O trabalho com o seu Roberto era maravilhoso [...] Quantas vezes quando ficava apertado no verão a gente saia do escritório, a gente tirava o almoço dos operários da indústria, para eles poderem ir almoçar, e não ter que parar. À noite, quantas noites eu trabalhei até 11h da noite, também na produção, ajudando porque estava na época do horário de pico e a gente ajudava inclusive sábado e domingo. A gente ajudava porque precisava, a parte administrativa descia e carregava caixa mesmo. [...] A administração dele para aquela época estava corretíssima.

Demonstrando o forte envolvimento dos funcionários com os objetivos organizacionais, pretende-se apontar a prioridade da família como referência básica na constituição dos elementos que motivam, condicionam, favorecem ou dificultam o engajamento dos funcionários no processo produtivo e na formulação/disseminação de uma ideologia organizacional e de uma ética do trabalho no conjunto da organização (COLBARI, 1992, 1995). Desde logo se percebe que os funcionários passam a ser extremamente dependentes do líder que pode, então, controlá-los e manipulá-los sem dificuldades (KETS DE VRIES & MILLER, 2001).

Por sua vez, o caráter paternalista potencializa a densidade das relações de trabalho, acrescentando-lhes um conteúdo dramático. A presença de outros valores impede que as relações de trabalho permaneçam fechadas aos limites de um contrato formal, o que numa situação de conflito alimenta um sentimento de “dilaceramento do tecido social” (COLBARI, 1992): as divergências ou disputas são percebidas em termos de injustiça e ingratidão por

parte do funcionário. Assim, algumas palavras de elogio os colocam em estado de exaltação, e a menor reprimenda os coloca arrasados.

Um funcionário narrou um problema administrativo que ocorreu quando uma conta de um restaurante não foi paga (um funcionário almoçava no restaurante e a Coroa pagava em refrigerantes, sempre ficando com crédito) e o seu proprietário procurou Roberto para reclamar. Esse simples caso causou uma mágoa profunda do gestor 8.

[...] houve um probleminha com uma conta que a gente tinha em um restaurante da cidade, aonde a gente sempre tinha crédito, pois nós tínhamos um funcionário que sempre almoçava lá. E essa empresa fazia essa conta corrente, e sempre ficava devendo a Coroa. Determinada ocasião isso reverteu, e a Coroa ficou devendo [...] ai o seu Roberto pegou a gente e deu aquela esfrega [...] Mas aquilo do jeito que o seu Roberto entendeu, primeira coisa, do jeito que ele falou magoou muito.

Ainda numa entrevista com um aposentado da empresa, era perceptível um ressentimento ao relatar o seu afastamento do trabalho na época de sua aposentadoria. Esse funcionário trabalhou por mais de trinta anos na produção. Durante a entrevista, ele contou vários casos que ocorriam na produção, sempre com grande emoção e satisfação, mas ao falar da sua aposentadoria sentia uma ingratidão da empresa. Em sua casa, várias garrafas antigas de refrigerante Coroa ficavam expostas em sua sala de visitas e também um quadro que continha uma homenagem que recebeu da empresa. O sentimento do ex-membro sobre a empresa pode ser explicado por meio desses aspectos simbólicos que estão sendo ressaltados na dissertação, pois mesmo após vários anos de trabalho o seu status quo econômico e social continua o mesmo – de família humilde que luta com dificuldades.

Neste contexto, o proprietário exige de seus funcionários devotamento e lealdade, sendo por muitas vezes incapaz de aceitar certos desvios do “comportamento ideal” na empresa. A rigidez, a severidade, a franqueza de Roberto foi muito ressalta nas entrevistas.

Fulano passou na beira de outro funcionário ali embaixo e quando passou ele levou a mão na bunda do outro funcionário, o funcionário todo chateado: quando ele voltar, se esse cara fazer o que fez, vou sentar uma garrafa na cabeça dele. Voltou e fez, então o cara sentou a garrafa na cabeça dele. Aí, fulano veio aqui em cima e falou com seu Roberto, o cara lá me deu uma garrafada na cabeça, cortou até a perna. Ai, então foi o outro, ele contou que aconteceu assim, passou aqui e me passou a mão, voltou e me passou a mão, eu sentei a garrafa nele. Então ele pegou os dois, ele era rigoroso nisso, aí os demitiu (GESTOR 6).

Política ele não falava muito aqui dentro, ele não gostava de falar. Até hoje ele é assim. Eu também tive um caso com ele de um santinho. Eu trabalhava no final dessa sala, era uma única sala, e veio um político aqui e eu coloquei o Santinho no

vidro. Ele disse: Quem colocou esse negócio aí? Então, tira. Aqui dentro não quero política, do portão para fora vocês podem fazer o que quiser. Aqui dentro não quero política (GESTOR 8).

[...] o pessoal mais antigo ainda fala, é comum, a até hoje, os mais antigos falarem que papai andava pela fábrica, os caras que estavam parados, começavam a se mexer, e falavam, se você não tiver nada para fazer, pega pelo menos uma vassoura para a gente vê que vocês estão fingindo que estão trabalhando (DIRETOR).

Assim, esse estreito limite do relacionamento patrão versus funcionário leva os funcionários a legitimar as decisões e autoridade de Roberto. Conforme os entrevistados, essa representação se dá por variadas formas.

A administração era uma sala só, todo mundo trabalhava junto, era muito interessante o fulano pegava o jornal e começava a ler a coluna social e colocava o nome das pessoas do escritório no lugar. Era muito gostoso, foi uma época muito boa (EX-MEMBRO 1).

Nessa passagem percebe-se que todo o processo administrativo era realizado em uma única sala, onde trabalhavam o proprietário e dos demais funcionários administrativos. Essa sala estava localizada no segundo andar do prédio, com janelas amplas que davam visão para o pátio e a movimentação dos caminhões carregados e do outro lado davam visão para a produção. Esta característica do projeto arquitetônico da fábrica - de centralidade e visibilidade - já tinham sido verificados por Davel (1998) quando na análise da Chocolates Garoto, empresa criada por uma família tradicional capixaba. Em outros relatos dos entrevistados:

[...] a melhor empresa para você trabalhar em Domingos Martins. Até hoje continua. É como a gente fala: os olhos da menina. [...] existe um a verdadeira família dentro da Coroa. Amizade, respeito um pelo outro, são verdadeiras equipes (GESTOR 9).

A imagem que eu tenho dele como administrador é que ele era muito austero, ele vivia para trabalhar, era sempre o primeiro a chegar e o último a sair, nunca foi de viajar, passear, o passatempo dele era as orquídeas e muito pouco, só final de semana, sábado e domingo que ele saia no interior para procurar alguma coisa, sempre se sacrificou pela empresa, a vida inteira (DIRETOR).

Vê-se que é uma representação sempre positiva, legitimando a autoridade do “senhor”. Nenhuma das entrevistas ressaltou o autoritarismo e a severidade como um aspecto maléfico. Isto pode ser explicado pelo tratamento que é dado pelo proprietário aos funcionários e da própria legitimação. Apesar da realidade de dominação empresarial permanecer dissimulada em um processo em que patrões oferecem proteção e concessão de favores e benefícios em troca da fidelidade e submissão dos trabalhadores (WEBER, 1999), as entrevistas ressaltam

uma outra dimensão, um clima de camaradagem e respeito entre os funcionários e de atenção do proprietário.

Todo mundo gosta de ser bem tratado, né. Todo mundo gosta de passar, por exemplo, passar pelo seu patrão e ele te dar bom-dia, a gente fica feliz da vida, pode estar danado da vida, pode ter um monte de problemas, mais ele me viu e me cumprimentou. É muito interessante você passar pelo seu funcionário dar um bom dia e ele te responder, ele fica feliz o dia tudo, ele pode até não estar muito bem, ao elogiar, nossa que bonito, quem fez isso, que bonito está isso, eu acho que todo mundo gosta disso (EX-MEMBRO 1).

Eu acho que uma forma legal que deveria permanecer sempre é aquela coisa da troca de calor humano, por exemplo, que nem nas festas, todo mundo bebe e conversa, eu acho que tem que continuar, eu acho que é uma forma da gente conhecer as pessoas, agora que está maior, quem trabalha de noite não sabe quem trabalha de dia, é uma troca, uma troca de amizade para se conhecer, eu acho que esse relacionamento não pode parar [...] (GESTOR 10).

Assim, a família, além de se constituir como espaço privilegiado para a atribuição de precedência e a distribuição de privilégios – o que afirma a sua vitalidade e o seu domínio na vida social (COLBARI, 1995), ela permanece como fator central na explicação da dedicação dos funcionários ao trabalho e como referência na articulação dos elementos que estruturam o discurso legitimador do proprietário da Refrigerantes Coroa.