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Fonte: Documentos da família Kautsky.

Por esses motivos emigraram de Viena/Áustria, a família e alguns amigos (num total de dez pessoas), partindo de trem da Áustria até Hamburgo/Alemanha, onde embarcaram no navio

Printz Siegmund que os levou ao Brasil, deixando para trás parentes, amigos, o conforto da

cidade de Viena, o seu progresso e o aconchego pátrio. Em Hamburgo, como havia algumas horas para a partida do navio, Antônio acabou aprontando mais uma, conforme contou Roberto Anselmo Kautsky:

Ele resolveu voltar a terra para comemorar a sua despedida com alguns amigos que vieram assistir a partida. Contudo, esqueceu do tempo (por causa da cervejada), e quando voltou ao porto, o navio já havia zarpado com a sua esposa, filhos e demais companheiros. Por sorte, ele conseguiu embarcar no próximo navio e acompanhar a embarcação que ficou retida por mais de um dia no porto de Havre na França, para descarregamento e carregamento. No mais, a viagem transcorreu normalmente.

Mais uma vez percebe-se que o avô de Roberto Anselmo Kautsky era muito irresponsável e libertino. É importante estar caracterizando a personalidade de Antônio Ricardo Kautsky, pois de certa maneira este comportamento deve ter influenciado uma conduta mais responsável no seu filho Roberto Carlos Kautsky, já que desde cedo ele precisou assumir os negócios do pai no Brasil, conforme será descrito mais adiante.

4.1.1. As dificuldades da adaptação em terras estrangeiras

Quando a família Kautsky chegou ao Rio de Janeiro, no dia 20 de setembro de 1904, eles foram obrigados a embarcar em um navio de cabotagem costeira que levou três dias para chegar a Vitória, devido a uma forte tempestade. O almoço no navio consistia numa sopa rala, servida em uma bacia de alumínio, e, apesar do navio balançar muito, Antônio não perdia o bom humor. Fazendo uma piadinha disse a Carlos Mund, conforme Roberto, “quando o navio

pender para o seu lado e a sopa chegar ai, sirva-se, e quando ela voltar para cá, eu me sirvo”. Ao ancorarem em Vitória, que na época era governada por Henrique Coutinho,

precisaram pegar alguns botes para desembarcarem numa pedra que servia de cais, perto do Parque Moscoso, conhecido como Schmidt. Quando chegaram tiveram uma péssima impressão de Vitória/ES, pois a cidade não tinha água encanada nem rede de esgotos, assim usavam-se pinicos e os excrementos eram lançados à rua.

A família Kautsky seguiu viagem com o trem Leopoldina Railway (inaugurada em 1o de janeiro de 1900) até a estação Germânia, que antes se chamava “Ponte Quebrada”, em Domingos Martins. De lá, viajaram mais seis horas em lombo de burros até Sapucaia (Parajú/Domingos Martins). Quando lá chegaram ao escurecer, Rosália sentou-se num tronco que havia em frente ao barraco e chorou copiosamente dizendo que aquilo era o fim do mundo, um ambiente hostil e agreste. Para entrar no barraco tiveram, primeiramente, de arrancar o mato que havia no chão de terra batida. Estavam com medo de cobras. À noite, exaustos do trabalho, Rosália guardou o restante da comida e foram dormir. No dia seguinte, eles tiveram uma grande surpresa, as formigas saúvas, típicas da região, entraram nas panelas e carregaram tudo e descascaram os pães. Contudo, esse foi apenas um exemplo das dificuldades que enfrentariam nessa terra estrangeira.

Dias depois, eles foram visitar Sofia Simmer, a esposa do Maximiano Salloker (prefeito da Vila) que os havia visitado em Viena. Na visita, Rosália perguntou se ela havia gostado das frutas (maçãs e uvas secas) que havia presenteado quando da sua chegada na Vila, ao que Sofia retrucou, conforme Roberto, “Nem os porcos quiseram comer!”.

Nessa passagem verifica-se o ambiente hostil em que doravante a família Kautsky deveria viver. Além disso, as condições eram ainda muito precárias, pois a região onde se instalaram somente começou a ser colonizada a partir de 1847, conforto inexistia.

Logo que se estabeleceram em Sapucaia, Antônio começou a lecionar em alemão, sua língua pátria, e a realizar freqüentemente reuniões com os pais dos seus alunos para passar-lhes conhecimentos. Por causa desses conhecimentos, ele foi nomeado o tesoureiro da “caixa de cobra” no período de 1904 a 1906. No fim do primeiro mês surgiu a primeira desavença com o prefeito Salloker, pois em vez de lhe pagar os 60 mil réis prometidos, Salloker somente lhe pagou a metade do valor. Provavelmente com esse valor não conseguiriam viver dignamente.

Contudo, a sua esposa Rosália, para ajudar a comunidade, começou a ensinar artes como o bordado, a costura e a culinária para as mulheres da comunidade. Naquela época, os colonos só aproveitavam a carne do boi, os miúdos eram descartados, mas ela ensinou-os a aproveitar os miúdos fazendo a lingüiça, até hoje muito apreciada na região. Além disso, ela realizou vários partos. Por causa da contribuição da família para a comunidade, eles se tornaram queridos pelos colonos, que em contrapartida traziam ovos, lingüiça, toucinho e produtos da lavoura. Assim, a família conseguiu viver muito bem nesse período, até economizando os trinta mil réis que Antônio recebia pelo ensino.

Também para ajudar nas despesas de casa, Roberto Carlos Kautsky – filho de Antônio – foi trabalhar na lavoura dos vizinhos, onde teve a oportunidade de matar duas cobras com pêlos num ninho de galinha. Nesse período trabalhou principalmente na propriedade de José Tschaen (teuto-francês), imigrante de uma região vinícola da França (Alsácia-Lorena), na qual aprendeu a fazer o vinho de laranja. A próxima narrativa contada pelo Roberto Anselmo ressalta a personalidade forte da sua avó:

Certa vez, a família ganhou um cabrito que cresceu e tornou-se um robusto bode. Aproveitando o descuido da sua avó que havia deixado a porta da cozinha aberta enquanto foi à fonte lavar a louça, o bode entrou e subiu na mesa, onde havia restos de comida e toda a louça que ela havia trazido da Áustria. Quando ela voltou, o bode se assustou e deu uma arrancada de cima da mesa, levando junto a toalha e toda a louça que se espatifou no chão. A Rosália que era uma mulher muito pacífica, viu as coisas passarem do limite, e então, virou uma fera. Assim, chamou o filho Roberto, que devia ter uns onze anos e disse: este bode tem que morrer hoje de qualquer maneira e mandou que ele o prendesse. Então, ela pegou a navalha do marido e degolou-o, depois o esfolou. Para uma mulher criada em Viena e que nunca havia visto nada parecido, foi uma dose para leão!

Depois de um ano morando em Sapucaia, houve outro desentendimento entre o Franz, o irmão de Rosália, e o Maximiano Salloker6, causado por ciúmes, pois o Franz era viúvo e começou a namorar uma cunhada do Salloker. Conforme narrou Roberto Anselmo Kautsky:

O Salloker, não aceitando o namoro, mandou prender o tio numa estaca de amarrar burros e colocou uma vara pontiaguda debaixo de seu queixo para que ele não pudesse abaixá-lo. Além disso, fixou dois palitos entre as suas pálpebras para que ele não pudesse fechar os olhos, assim como costumava fazer com seus empregados. Quando sua avó tomou conhecimento do acontecido, foi até o Salloker e disse que aquilo era uma selvageria e se ele não o libertasse imediatamente, ela o mataria. Assim, o Salloker mandou soltar o seu tio imediatamente.

Esta passagem confirma a dificuldade da família com o novo modo de vida e os problemas de convivência com a população da região. Este acontecimento deixou Rosália tão revoltada que no mesmo dia a família resolveu mudar-se para Soído, uma vila próxima, onde os irmãos João e José Stein já haviam procurado o seu Antônio para lecionar numa escola. Em Soído, nasceu mais uma filha de Rosália - Rosália Kautsky, num parto muito difícil, que deixou a mãe com uma febre alta e hemorragia intensa. Conforme narrou Roberto Anselmo Kautsky.

Para estancá-las, a parteira Bina Mala colocou um machado debaixo do colchão e escreveu a seguinte frase atrás da porta “Fieber bleib draus Frau Kautsky ist nicht zu Haus!” (Traduzindo: Febre fique lá fora, pois Dona Rosa não está por ora). Lá, o seu pai também fazia biscates na lavoura dos vizinhos para ajudar nas despesas da casa.

Mais uma vez, a passagem mostra a estreita relação da família com a fé. Também, certa ocasião,

[...] três pessoas haviam sido picadas por cobras num único dia, inclusive uma aluna com 18 anos da escola. Então, Antônio mandou chamar o curandeiro Jorge Kiefer que estava medicando dois outros casos anteriores numa localidade próxima. Na época não existia o soro antiofídico e quando o curandeiro realizava o seu trabalho a família beneficiada oferecia cachaça ou outra bebida alcoólica ao benfeitor após o tratamento. Com isso, quando Antônio encontrou o seu Jorge, ele já estava meio alto (bêbado). No caminho em direção a casa da aluna o curandeiro Jorge que andava na frente de Antônio, volta e meia, escorregava naqueles sulcos feitos pelas ferraduras dos lotes de burros e caía fora do caminho. Para dizer que

6 Maximiliano Salloker foi um imigrante católico austríaco que se destacou no início do século XX como bom administrador em Domingos Martins, quando assumiu a presidência municipal da Câmara (1904 a 1916). Contudo, ele acabou assassinado por causa das desavenças entre católicos (moravam em Santa Isabel) e luteranos (moravam em Campinho) da região, que disputavam para sediar a sede do município. Como principal dirigente político da região, situou-se no centro dessas desavenças, e para piorar a situação, no seu período administrativo ocorreu a mudança da sede de Domingos Martins para Santa Isabel. Quase morreu envenenado, mas sua morte veio a ocorrer por ocasião da abertura da estrada que ligaria Santa Isabel a Alfredo Chaves. Estrada que não passaria por Domingos Martins. Salloker morreu a tiros, aos 55 anos, 15 dias depois de iniciar a construção dessa estrada (www. seculodiario.com.br).

não havia caído, seu Jorge passava a mão no primeiro mato que tivesse pela frente e dizia: “Das brauch ich auch!” (Traduzindo: Isso aqui eu também preciso para o tratamento). De tanta queda que levou, ele chegou com os braços cheios de mato na casa da moça. Então, fez um chá, banhou o ferimento com outra infusão e pediu a família que se retirasse do quarto, pois a menina precisava descansar, ficando sob sua guarda. Passadas mais de uma hora e em face do silêncio, o pessoal resolveu dar uma olhada e qual não foi a sua surpresa, o curandeiro estava deitado na cama com a moça e ambos dormiam.

Esta passagem confirma o interesse da família em ajudar a comunidade, por isso a consideração da população com a família cresce e se expande com o passar dos anos e das constantes mudanças. Ficaram em Soído por um determinado tempo, todavia, as coisas ainda não haviam engrenado. Então, a família Kautsky resolveu tentar a sorte em São Bento, onde Antônio abriu uma pequena casa comercial, independente de continuar lecionando, e Rosália continuou dando as suas aulas de artesanato e culinária. Nessa vila, tiveram a oportunidade de ver o cometa Haley em 1910.

4.1.2. Aspectos importantes da comunidade de Domingos Martins

Antes de iniciar a descrição de uma nova fase da família Kautsky é importante explicar alguns aspectos sobre o município de Domingos Martins, anteriormente conhecido por Campinho, onde está instalada a Refrigerantes Coroa. O município possui uma área de aproximadamente 1.231Km2 e fica há menos de 42 Km de distância de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. O seu principal acesso se dá através da Rodovia BR262, que liga a capital Vitória a Belo Horizonte/MG.

Com essa descrição se espera contribuir para compreensão das mudanças nos negócios da família Kautsky que são diretamente influenciados pela dinâmica econômica e social local. A dinâmica nacional também é um fator importante, contudo, na época a criação da empresa, as informações sobre os acontecimentos nacionais eram muito dispersas e longe de serem compreendidas pelos colonos para qualquer tomada de decisão. Esse aspecto fica claro quando, em plena crise do café, o pai do senhor Roberto investe todos o seus recursos na compra do café e perde tudo por causa da crise de 1930. Além disso, por um período longo os colonos permaneceram isolados na região, por causa da animosidade dos colonos açorianos de Viana que não comercializavam com os colonos de Campinho e da ausência de uma boa estrada que ligasse a capital à colônia.

O município de Domingos Martins foi colonizado em 1847, por imigrantes alemães. Esses colonos emigraram da Região do Hunsrück/Alemanha, no Navio “Philomena”, em 20 de outubro de 1846, e chegaram em Vitória em janeiro de 1847 (DON PE. DOLD, 1896). Roberto Anselmo Kautsky também é descendente desses primeiros alemães que aqui se estabeleceram. Os pais de sua mãe Elisabeth Schwambach Kautsky - Augusto Schwambach e Catharina Faller Schwambach - eram filhos desses imigrantes. Posteriormente, juntaram-se a esses imigrantes, pomeranos, holandeses, austríacos, italianos, suíços, dentre outros.

Nas primeiras décadas, os imigrantes sobreviveram às custas de uma agricultura de subsistência. Cultivaram variados produtos (milho, tubérculos, mandioca, feijão, etc) através da mão-de-obra familiar e agregados e ainda socorriam os vizinhos nas suas necessidades.No início século XX a sua população era distribuída irregularmente em pequenas propriedades familiares rurais, distantes umas das outras, somente ligadas por “estradas de chão” (picadas), o que dificultava a movimentação e o comércio na localidade.

A história registrada por Wagemann (1949) mostra que o início da colonização em nada foi fácil: promessas do governo brasileiro não cumpridas, doenças, fome, abandono/isolamento, para citar apenas algumas das dificuldades. Nesse isolamento cada qual estava fadado a se virar sozinho (WEBER, 1998). Mas, como a viagem havia sido feita sem condições de retorno, foi preciso submeter-se às restrições dadas e procurar melhorá-las aos poucos.

Nesse contexto, as principais preocupações dos imigrantes alemães, após sua instalação na localidade foram a educação e instrução de seus filhos na religião, pois davam grande valor a uma sólida formação moral e cristã (RICHTER, 1994). Assim, a religião assumiu um papel decisivo na comunidade, marcando presença e auxiliando na medida do possível, principalmente no que tange a essas preocupações (FOTO 04).

A estrutura familiar do imigrante estava centrada no sistema patriarcal, nuclear, portanto, o casamento dos filhos não eliminava a unidade familiar que seguia dependendo da autoridade paterna. Os filhos, quando não continuavam morando com o pai, eram sempre bem-vindos e a mãe era a principal responsável pela educação das crianças. A vida pioneira, o isolamento, a consciência de formar um grupo à parte num país estranho contribuíram para fortalecer os laços familiares desses colonizadores. A união da família estava sedimentada, sobretudo, pelos princípios religiosos.