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4.9 COMERCIAL IRLANDÊS

4.9.3 A voz da escola no comercial irlandês

O questionário do comercial irlandês apresenta o resumo da situação do vídeo, com espaços de respostas para o posicionamento e a justificativa da pessoa pesquisada.

O vídeo apresenta duas posições: uma de discriminação ao namoro dos dois meninos praticada por alguns colegas. A outra posição, que sensibiliza a maioria da escola, que se solidariza com a situação.

E se acontecesse em sua escola? Qual das duas posições seria percebida com maior facilidade? Por quê?

Os resultados encontrados foram reunidos em uma tabela, para que se perceba que, apesar de estarmos falando sobre a comunidade como um todo, existem especificidades que podem nos orientar ou pelo menos alertar para ações e ou políticas específicas.

Estudantes Docentes Apoio Gestão Total Posição de discriminar 12 10 05 02 29 Posição de solidarizar 20 05 05 01 31 Não sabe 04 02 05 - 11 Não respondeu 01 - - - 01

Chama atenção que mais da metade da docência acha que aconteceriam discriminações ao romance. Trago algumas justificativas relativas às duas posições da docência. Quando a docência acredita que a comunidade não se solidarizaria com a situação dos dois meninos, os professores e professoras dizem o seguinte: “porque dificilmente as pessoas se sensibilizam com a homofobia”, “nossos meninos fazem parte de uma sociedade discriminatória, seletiva, injusta e cruel. Uma aceitação desse tipo é um trabalho a ser desenvolvido a longo prazo não só na escola, mas na sociedade como um todo”, “porque as pessoas, apesar de dizerem que não, discriminam de forma velada a homossexualidade”. Chama atenção, e aqui não me refiro apenas à docência, de que, quando há discriminação e/ou preconceito, a responsabilidade é sempre do outro. Nesse caso, a pessoa de fato está tentando, de alguma forma, desviar a atenção de si, disfarçando seu próprio preconceito. Essa forma de

expressão lembra os resultados de uma pesquisa74 realizada pelo Data Folha, em 1995, sobre o racismo, cujos dados afirmavam que 90% dos brasileiros acham que existe preconceito de cor no Brasil, ao mesmo tempo que 96% dos entrevistados se declararam como não-racistas.

Uma docente justifica sua opinião quando diz que “ainda existe muito preconceito em relação à homossexualidade, principalmente entre os jovens de dez a 15 anos, nosso maior público”. Isso demonstra que ela sequer conhece a opinião dos seus aprendizes porque, como vimos na tabela anterior, os números apresentados mostram que estudantes são bastante tranquilos em relação à homossexualidade. É evidente que a nossa amostra não é significativa, mas as opiniões estudantis apresentam certa coerência em relação à totalidade dos questionários.

Quando a professora, mesmo que discrimine, acha que a escola não apoiaria o namoro e mesmo assim justifica dizendo que é “porque vivemos ainda numa cultura onde o machismo prevalece”, penso que já existe um passo adiante da situação. Compreender que a produção de determinadas discriminações, principalmente relacionadas aos gêneros e às sexualidades são originárias dos machismos, pode ajudar a desarticular uma série de comportamentos abusivos e violentos dos meninos. Digo dos meninos porque faz parte de suas formações os brinquedos e as brincadeiras violentas e o machismo é a expressão de violência contra as mulheres e ao público LGBT.

Da mesma forma, quando a professora argumenta que “o aluno ainda não está preparado para lidar com essa opção sexual” e justifica dizendo que “talvez a orientação familiar, a religião etc. façam com que ele não tenha boa aceitação”, aponta para questões de cunho privado e aí a importância de alertar, mais uma vez, para a criação de atividades voltadas para a comunidade escolar no sentido de discutir as questões de gênero e de sexualidade e que levem em consideração também as pessoas que já estão mais abertas para essas discussões.

Nesse caso, talvez seja interessante pensarmos em como os estudantes poderiam ser atores importantes de uma política de respeito à diversidade sexual e de gênero. Ao invés de centralizar o protagonismo dessa política apenas nos professores, talvez o Estado deva pensar nos estudantes como impulsionadores de ações em prol da diversidade.

Inegavelmente, para quem viu o vídeo, percebe o sofrimento do menino que passa a ter uma vida reclusa como uma forma de evitar as injúrias. Essas questões não deveriam

passar despercebidas da docência quando a escola é um lugar de acolhimento. Para Márcio Caetano (2008), essa experiência de solidão pode ser evitada a partir dos cuidados que algumas pessoas acionam. E, de fato, no início do vídeo, o menino tenta dissimular a situação, mas, depois de “descoberto”, não há mais como lidar com o constrangimento.

Meu olhar na escola é atravessado pelas questões originadas pela sexualidade. Pude perceber, também, que a vivência em um lugar heteronormatizado pode obrigar o sujeito ao jogo dissimulado da duplicidade. As pessoas encontram-se no “entre-lugar”: aquel@ que traz, para as suas práticas, a sensibilidade e os saberes das identidades que acumulam, mas por conhecer os códigos predominantes da escola, optam por manter-se, ao olhar d@ outr@, nas identidades legitimadas e reconhecidas para esse espaço. Esse quadro explica a astúcia e o cuidado para olhar, ouvir, sentir e tocar as inúmeras situações em que as sexualidades contra- hegemônicas são visibilizadas, ou então, conhecendo seus limites, silenciadas momentaneamente (CAETANO, 2008, p. 95).

Quando a professora justifica “porque a demonstração de afetividade entre as pessoas do mesmo sexo causa impacto, estranhamento, vergonha, rejeição, preconceito”, ela está convocando o armário como uma possibilidade de existir. Sedgwick (2007) vai justamente abordar o ficar/sair/retornar ao armário como forma de sobreviver ao preconceito e evitar injúrias e violências, mas alerta que o armário tem infinitas portas e sair pode ser uma constante na vida de alguém. No sentido do vídeo, foi preciso uma atitude coletiva dos estudantes para que os meninos pudessem se relacionar com tranquilidade. A saída do armário também é alvo de saída para Torpedo, o vídeo seguinte, mas que aparece em outra configuração.

Uma das professoras apontou a “falta de políticas educacionais” como razão da discriminação, o que me animou bastante por entender a necessidade e importância do que aqui me disponho a contribuir.

Parece que as falas aqui elencadas já justificam a necessidade de formação para a docência, ao supor que esta tem tido grande responsabilidade sobre a heteronormatividade produzida pela escola e, nesse sentido, Miranda (2014) corrobora com essa ideia, já que a sua pesquisa mostra que as primeiras séries são determinantes para esse processo, que vem machucando tão profundamente alguns meninos.

Já quando a docência apoia e se solidariza, diz: “Porque respeitaria a opinião e decisão do outro”, “Acredito, pelo que já percebi, que o namoro dos dois meninos seria mais fácil de aceitar. Mesmo assim, ainda há muita postura discriminatória em relação a essas questões em nossa sociedade”.

Outras falas, como a de um professor, que justifica sua posição dizendo: “Porque tal situação já é corriqueira nesse ambiente” ou a de uma professora, que aconselha “sensibilizar, apoiar, já existem casos aqui”, faz-nos acreditar que tirar as expressões do afeto entre o mesmo sexo da zona de perigo, do estranhamento, parece ser o mais aconselhável. Nesse sentido, alerto para que imagens de casais homossexuais estejam presentes nas escolas, a exemplo das variadas formas de família, por exemplo, ou por meio de filmes.

Um dos estudantes que fez parte da pesquisa se posicionou dizendo que a maioria da escola se sensibilizaria e justificou dizendo: “Porque a maioria é gay”. A afirmação ficou sem entendimento, porque tanto pode ser em função de a maioria dos seus próprios amigos serem gays, como pode ser também que o vídeo tenha sido entendido, com o “dar as mãos” dos colegas, como uma atitude de “confessar” as homossexualidades. Nesse sentido, alerto, mais uma vez, para que a leitura crítica da imagem faça parte da formação.

O discurso também foi recorrente quando duas estudantes expressaram os seguintes sentimentos: “Porque é dando o respeito e amor que Deus nos dá em troca” e “Eu tinha que respeitar porque eu não poderia fazer nada, só orar por eles”. Faço o lembrete porque a questão das interferências religiosas na escola precisa ser revista e, nesse sentido, alerto para a laicidade da escola, para a possibilidade de conhecimento e escolha entre os variados credos.

Quando uma gestora justifica dizendo “porque mesmo com divulgação, debates sobre o preconceito e ao combate ao homossexualismo, ainda existe uma resistência muito forte em respeitar a opção sexual de cada um”, sua opinião expressa desconhecimento sobre o assunto, o que justifica o seu próprio preconceito. Ela combate a homossexualidade e utiliza termos já ultrapassados, como “homossexualismo” e “opção sexual”. Nesse sentido, alerto que as formações deverão ser amplas, incluindo os diversos segmentos da escola, sobretudo docência e gestão, e que elas devem partir de pressupostos bem elementares tais como conceitos e expressões mais comuns da área de gêneros e sexualidades.

Há diferenças entre os dois meninos que protagonizam o vídeo. Embora sutil, existe uma feminilidade maior em um deles, é justamente sobre o portador dessa feminilidade que recaem as injúrias na escola. O vídeo também mostra que é ele quem mais sofre, que busca o isolamento. Coincidência ou não, é bom que se reflita sobre o menino efeminado e suas auguras na escola. Sobre esse tema, o emocionante relato de Giancarlo Cornejo (apud MISKOLCI, 2012, p. 69-76) mostra como a escola marca profundamente a vida das pessoas. Os meninos efeminados são os mais vulneráveis às variadas formas de violência, embora

qualquer menino, todo o tempo, precisa provar a masculinidade desde a infância, para evitar sofrer determinadas sansões vindas de colegas, docentes e gestão, porque

a masculinidade vem associada, desde a infância, a um modo de ser agressivo, de estímulo ao combate, à luta. Uma das formas principais de afirmação da masculinidade é por meio da força física, do uso do corpo como instrumento de luta para se defender, mas também para ferir. Como a violência é cultivada como valor masculino, muitas mulheres acabam submetidas a situações de sofrimento físico ou psíquico em razão da violência de seus companheiros, irmãos, pais, namorados, empregadores ou desconhecidos (ARAÚJO; BARRETO; PEREIRA, 2009, p. 74).