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2.2 ENTRE MOVIMENTOS E CONCEITOS, ENFIM QUEER

2.2.4 O caminhar dos estudos queer

O pós-estruturalismo dos anos 1980 norteou um novo percurso, que é mais amplo e que busca desarticular o modelo heterossexual ao desconstruir o próprio conceito de gênero enquanto construção binária, nascido na segunda onda do feminismo (BUTLER, 2003).

Dessa forma, os estudos acadêmicos e os movimentos sociais vão potencializar a visibilidade dos movimentos identitários LGBT e, embora a história27 apresente dissonâncias em relação ao reconhecimento das sexualidades não hegemônicas, um dos fatos mais significativos, tomado como marco para tais estudos e para o movimento LGBT, foi a revolta de Stonewall.

27 Em Pensando sobre sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade, a autora mostra percursos e embates do movimento.

Entre as décadas de 1950 e 1960, os lugares de “pegação”, em Nova York, eram patrulhados e a polícia vivia em conflito com alguns estabelecimentos que tinham em seu perfil a frequência de lésbicas, travestis e gays (RUBIN, 2003). Muito comumente, essa população sofria agressões físicas, passava por processos de ridicularização, tendo suas liberdades cerceadas quando participava de manifestações públicas.

Um desses lugares era o bar Stonewall. Em junho de 1969, aconteceu o estopim daquela situação, em função da inevitabilidade do confronto com a polícia que respondeu violentamente à manifestação. Com isso, os manifestantes passaram a ter apoio dos moradores da região e, a partir desse acontecimento, houve uma mudança de paradigma cuja exposição midiática do confronto logrou a visibilidade das sexualidades dissidentes, o que contribuiu para o desenvolvimento de movimentos sociais de gays, lésbicas e, mais adiante, para o desenvolvimento de novos campos teóricos, a exemplo da teoria queer. O termo queer tem a força de uma injúria e Louro (2004) define queer com certo encantamento e admiração. Para ela queer é

[...] o estranho, raro, esquisito, queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2004).

Queer tem, portanto, poder de xingamento, mas a palavra em si não tem tradução para

a língua portuguesa. Por isso, Larissa Pelúcio (2014), em um texto no qual discute as dissidências sexuais – Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no

Brasil?, esclarece que:

[...] “queer” nada quer dizer ao senso comum. Quando pronunciado em ambiente acadêmico não fere o ouvido de ninguém, ao contrário, soa suave (cuier), quase um afago, nunca uma ofensa. Não há rubores nas faces nem vozes embargadas quando em um congresso científico lemos, escrevemos ou

pronunciamos queer.Assim, o desconforto que o termo causa em países de

língua inglesa se dissolve aqui na maciez das vogais que nós brasileiros insistimos em colocar por toda parte (PELÚCIO, 2014).

Em virtude dessa falta de potência da palavra em si, mas longe de propor-lhe uma tradução, a autora sugere o exercício da antropofagia como uma forma de capturar esses novos saberes, mas também agregar-lhes o constrangimento gerado pela expressão queer em países de língua inglesa. Nesse sentido, teoria cu talvez fosse o seu equivalente, já que sua

anatomia é universal e não implica em referência de nenhuma identidade específica, pelo contrário, abarca a todas.

Queer é, por assim dizer, um conjunto de saberes que busca responder a um quadro

perverso do amplo controle sobre as sexualidades dissidentes. As ações empreendidas pelo âmbito social, que envolvem pessoas, instituições, saberes, vão resultar em:

Drags espancadas, travestis mutilados, religiosos prometendo a cura da homossexualidade, médicos definindo o sexo dos nascidos intersex, escolas disciplinando o desejo, gays assassinados, swingers, boundages, SM escamoteando suas atuações, as máscaras da internet. Todos esses fenômenos são o quadro de controle e disciplina das sexualidades nômades, o que não tem juízo, nem nunca terá, o que não tem sentido (LEÓN, 2012, p. 223).

A nossa escola, enquanto produto e produtora da sociedade, tem os muros passíveis de trocas de informações em função da contemporaneidade, a qual vive sob a égide da cultura midiática. A escola, então, não se constitui em uma ilha do saber, mas é um espaço de observação, de absorção, modificação e reorganização dos fatos noticiados por meio das mídias. Essa mixagem se constrói também a partir da nomeação do anormal, do pecador, do que é não-natural, julgados a partir de um olhar do senso comum, um olhar incapaz de reconhecer a diversidade sexual.

Pensar queer é justamente pensar para além das sexualidades, pois que nada é fixo e há singularidades em todas as formas de cada ser que se expressam em um ad infinitum, que, por mais que a nossa necessidade de entendimento exija, não têm como dar conta. Minha proposição é para uma escola que dialogue com todas as formas de ser no mundo, com vidas vivíveis. Toda a escola está implicada nesse processo de produção de sujeitos.

Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação constituem-se em espaços de construção das “diferenças” de gênero, de sexualidade, de etnia, de classe. Por meio de mecanismos imperceptíveis e “naturalizados”, a linguagem institui e demarca lugares (não apenas pelo ocultamento do gênero feminino ou da sexualidade homossexual, mas, também, pelas diferenciadas adjetivações que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso ou rejeição do diminutivo, pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas analogias feitas em relação a determinadas qualidades, atributos ou comportamentos). O currículo “fala” de alguns sujeitos e ignora outros; conta histórias e saberes que, embora parciais, se pretendem universais; as ciências, as artes e as teorias trazem a voz daqueles que se auto-atribuíram a capacidade de eleger as perguntas e construir as respostas que, supostamente, são de interesse de toda a sociedade (LOURO, 1997, p. 64).

Falar sobre queer requer novos conceitos e vocabulários, afinal, o que se acreditou sobre as sexualidades foram os saberes da medicina e das religiões que propuseram a heterossexualidade como saudável e não-pecaminosa, respectivamente. Alguns trabalhos procuram, de certa forma, nomear e traduzir sujeitos, como aparece no trabalho de Susan Sontag (1987) – Notas sobre o camp. Para a autora, que utiliza 58 notas e, entre elas, define

camp como uma sensibilidade no plano da estética ou predileção pelo exagero. Apesar da

dificuldade de tradução para a língua portuguesa, camp pode significar, para algumas pessoas, “fechação” ou “bichice” e, por isso mesmo, a performatividade camp gera instabilidade e talvez seja uma das que mais instigue os conselhos heteronormativos (MACRAE, 2011).

Camp se mostra desafiante da dicotomia das relações sociais e sua visibilidade quase

sempre causa estranheza. A estética camp tem fundamental importância, sobremaneira na arte, onde a sua potência faz implodir as representações de corpos binários e normativos. Além disso, se torna útil em manifestações públicas para a conquista dos direitos LGBTs. Ao tomar como exemplo as passeatas do orgulho gay, sua participação é determinante, juntamente com os/as trans para “carimbar” o movimento. A potência do movimento existe justamente por conta da instabilidade das performances, de tal sorte que a representação do movimento seria questionável se fosse formado por pessoas de aparência totalmente heteronormativa. A fechação camp pode ser compreendida como instrumento de visibilidade das manifestações sociais. O camp tem efeito revolucionário (MACRAE 2011, p. 31).

No Brasil, considerando que a memória é um elemento decisivo para o tratamento das identidades, não se pode esquecer a importante atuação do grupo SOMOS e a visibilidade da revista O Lampião. A conjugação dessas duas ações fortaleceu o movimento a ponto de, poucos meses depois de suas existências foram criados aproximadamente outros vinte grupos gays espalhados pelo Brasil (MACRAE, 2011, p. 179). À semelhança dos grupos de convivência do feminismo de Betty Friedan, os grupos gays também se reuniam para compartilhar os desconfortos de viver em um mundo heteronormativo, e essa ação foi determinante para esvaziar uma das palavras mais pejorativas: bichas.

Com a emergência da AIDS, em 1980, a população LGBT passa a ser visibilizada por uma necessidade de conter a epidemia. Isso se deu em virtude de, naquele momento, as estatísticas mostrarem que a doença estava ligada ao contágio através de gays. Os governos, naquela ocasião, passam a se importar e querem conhecer como vive a população homossexual. Dessa forma, essa comunidade passa pelo infortúnio de imediatamente após se

livrar da “mácula de doença mental”28 se ver metaforicamente soldados a uma imagem de

deterioração física. (RUBIN, 2003).

O governo dos EUA, a princípio, teve uma atitude de “faz de conta” em relação ao tratamento e às pesquisas. A indignação a respeito dessa posição faz surgir alguns grupos ativistas formados por pessoas soropositivas, gays, lésbicas, dependentes químicos, negros e negras, além de outras identidades marginais. Um desses grupos, o ACT UP, se manifesta nas ruas com ações ilegais, boicotes em atos públicos, utilizando um discurso mais radical dos que habitualmente eram vistos, inclusive ao fazer circular o manifesto impresso Ódio aos

heteros, que denunciava as relações de poder, a homofobia29, a exclusão social, a luta de classes, o racismo, o sistema sexo/gênero e o heterossexismo30 dentro da sociedade. Isso para dizer que não foi sem luta que as políticas “identitárias e pós-identitárias”31 avançaram.

O impacto da AIDS foi traumático também para o modismo da androgenia da época no Brasil. As costumeiras representações que impactavam em shows de Caetano Veloso, Dzi Croquettes e Ney Matogrosso (MACRAE, 2011), de repente, amainaram como reflexo do assombro com a chegada de um vírus que prometia transmitir “a peste gay”.

Nesse sentido, apesar de a AIDS ser um fato biológico, uma doença, ela foi também construída culturalmente na intenção de colocá-la como DST (doença sexualmente transmissível), sendo compreendida como uma doença transmitida por determinada forma de sexualidade. A gravidade dessa atitude aparece hoje nas estatísticas da contaminação pelo HIV e doença propriamente dita junto às estatísticas do mundo inteiro. Uma pandemia que, se fosse vista de forma diferente, não discriminativa de comportamentos, talvez o quadro mundial fosse outro bem diferente. Essa é uma responsabilidade dos poderes que escolheram usar a epidemia como uma forma de rebater a Revolução Sexual da época (MISKOLCI, 2012, p. 23).

28 A Organização Mundial de Saúde OMS, em 1993, retirou a homossexualidade da categoria de doença CID-10, e incluiu os “transtornos de identidade sexual” que congrega travestis e transexuais. (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – disponível em http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=365). 29 Homofobia é um conceito problematizado por Daniel Borrilo (2009). A Homofobia não é só voltada para as homossexualidades, ela é dirigida a todas as pessoas, ao que Miskolci chama de “terrorismo cultural”, ou seja: a maneira como opera socialmente o heterossexismo, fazendo do medo da violência a forma mais eficiente de imposição da heterossexualidade compulsória (MISKOLCI, 2012, p. 33).

30 Conceito usado há mais tempo no Brasil e pressupõe que os heterossexuais pretendem, a qualquer custo, impor a sua orientação como natural e correta (COLLING, 2011, p. 14).

31 Há uma discussão sobre as duas posições que pode ser acompanhada em GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimentos identitarios? Um estraño dilema. In: MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael M. Sexualidades Transgresoras: uma antologia de estúdios queer. Barcelona: Icária, 2002.

Aqui, no Brasil, os sistemas de saúde passaram a questionar as práticas homossexuais, os relacionamentos com as outras pessoas para, em seguida, perceber a importância de essa população permanecer na escola. Aqueles sujeitos, até então considerados subversivos da ordem “normal” ou “natural”, passaram a ser convocados para a escuta. Essa metodologia favoreceu a visibilidade de travestis e transexuais, o que, na atualidade, deslancha em políticas públicas na saúde, tal como o processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na educação, a inserção do nome social pode facilitar a entrada e permanência de estudantes no espaço escolar.

Além disso, os questionamentos do sistema de saúde confirmaram que as fronteiras entre as sexualidades são fluidas e contingentes, de forma que o silêncio sobre as sexualidades comprova o reconhecido fracasso da hipótese repressiva e o florescimento da incitação ao discurso, bem como à confissão, tão profundamente discutidas por Foucault (1988).