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Aqui aproveito para levantar algumas reflexões que podem estar relacionadas com a impossibilidade de abordagens sobre as múltiplas formas de expressão das sexualidades na escola.

Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que a maior parte da docência não teve formação acadêmica sobre gênero e sexualidade em suas licenciaturas para se apropriar dos conhecimentos que vêm sendo produzidos já há algumas décadas, o que já foi visto neste capítulo por variadas pesquisas. Sem formação na área, o que pode florescer enquanto discurso pode estar subscrito apenas ao que o senso comum proclama como verdade.

Então, somente a partir de uma formação é que docentes teriam condições, em tese, de perceber que meninos e meninas, em suas heterogeneidades, formam uma sala de aula diversa, com possibilidade de acolhimento de estudantes com variadas formas de feminilidades e de masculinidades. Nessa perspectiva, cada docente de qualquer disciplina poderia não apenas abrir-se para os questionamentos como também provocá-los, no sentido de problematizar as práticas sociais da heterossexualidade obrigatória que têm gerado machismos, injustiças, desigualdades, preconceitos e consequentes comportamentos homofóbicos que levam às exclusões das pessoas que são alvo de injúrias no espaço escolar.

Decorrente da falta de formação docente em gênero e sexualidades, trago uma questão que se vincula à normalidade da escola e que tem a ver com a paixão pela ignorância, um pressuposto de Deborah Britzman, quando ela diz que:

[...] o fato de que qualquer conhecimento já contém suas próprias ignorâncias. Se, por exemplo, os/as jovens ou os/as educadores/as são ignorantes sobre a homossexualidade, é quase certo que eles/elas também sabem pouco sobre a heterossexualidade. O que, pois, é exigido do conhecedor para que compreenda a ignorância não como um acidente do destino, mas como um resíduo do conhecimento? Em outras palavras, que ocorrerá se lermos a ignorância sobre a homossexualidade não apenas como um efeito de não se conhecer os homossexuais ou como um outro caso de homofobia, mas como ignorância sobre a forma como a heterossexualidade é moldada? (BRITZMAN, 1996 p. 91).

Louro (2004, p. 68) também reconhece a paixão pela ignorância e aponta que “no campo da educação, a ignorância sempre foi concebida como o outro do conhecimento e, então, repudiada. Agora a ideia é compreendê-la como implicada no conhecimento, o que, surpreendentemente, leva a considerá-la valiosa”. Ela explica que qualquer problema, quando posto, deixa de fora outras perguntas. Ou seja, o que fica de fora é a resistência ao conhecimento, é justamente o que nos deveria incentivar a compreender certos grupos. Quanto à origem, “[...] la normalidad es uma construcción eurocentrada que operó como matriz de la colonialidad del poder, del saber e del ser”44 (ALONSO; ZURBRIGGEN, 2014, p. 59), o que significa dizer que esse é um processo histórico e que carrega em si outros interesses.

Em segundo lugar, considero a implicação do sujeito nas suas ações pedagógicas. Esse é um ponto de deslocamento no movimento feminista, cuja crítica vai apontar o “viés androcêntrico” das várias ciências. Depois que a epistemologia feminista passa a investigar os discursos científicos, ela vai dizer que a “observação científica não é neutra ou inocente” (LIMA E SOUSA, 2002, p. 77), o que vai de encontro aos paradigmas da ciência moderna. Consequentemente, trata da implicação da autoria, do seu lugar de fala e de seus interesses políticos. Portanto, qualquer docente em sala de aula é um sujeito implicado porque vai se expressar a partir de seu ponto de vista.

Nesse sentido, uma das questões mais presentes, na atualidade, é o discurso religioso fundamentalista. Até 1988, a nossa constituição federal dizia que a religião oficial brasileira era a católica apostólica romana. Depois dessa data, considera-se o estado brasileiro laico.

44 A normalidade é uma construção eurocentrada que opera como matriz da colonialidade do poder, do saber e do ser. (tradução nossa).

Imagino a dificuldade discursiva da docência, quando as suas próprias crenças impossibilitam o mergulho na diversidade sexual. Esse debate tem ganhado voz com as contribuições de Diniz (2013) que, a partir de Dez palavras sobre laicidade conclui: laicidade é liberdade, igualdade, não-discriminação, rejeição ao discurso do ódio e respeito à diversidade. A escola não pode e não deve interferir nas questões relacionadas ao sagrado, precisa, portanto, reconhecer que religiosidade é uma questão de foro íntimo. Se acaso decide por fazer a abordagem religiosa, deve fazê-lo trazendo à baila as variadas religiões. Quando se pretende tratar as sexualidades na escola e se tem crenças fundamentalistas, tal prática se torna quase impossível, porque, mesmo que o discurso politicamente correto seja praticado, ele quase nunca é convincente.

A terceira reflexão seria a proteção das crianças e, nesse sentido, refiro-me às considerações apontadas por Foucault quando trata da escola e da sexualidade. O autor nos possibilita pensar a escola como uma fábrica de construção de corpos dóceis (FOUCAULT, 2009, p. 131). O mesmo autor afirma que

As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fecharem os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber (FOUCAULT, 1988, p. 10).

Em Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade45, Gayle Rubin diz que “a noção de que o sexo per se é prejudicial aos jovens foi inculcada em extensivas estruturas sociais e legais desenvolvidas para isolar os menores do conhecimento e experiências sexuais” (RUBIN, 2003, p. 2). Mantem-se, portanto, essa dificuldade de abordagem, principalmente no sentido de reconhecer as sexualidades que subvertem a norma. A escola, de um modo geral, está organizada de forma seriada, seus conhecimentos são passados à medida que vão sendo complexificados a cada série avançada, acompanhado da suposta ideia de que existe uma idade para cada conhecimento, que todas as crianças aprendem da mesma maneira e no mesmo ritmo.

Os conhecimentos sobre o sexo parecem ter essa lógica para algumas pessoas. Qual a idade para se falar sobre sexualidades? Se as práticas sociais se iniciam com o nascimento,

então não existe por que esconder das crianças as questões tão comuns quanto o seu próprio desempenho e a relação com as outras pessoas no dia a dia. O que de fato precisa ser escondido de uma criança? Violências? Amor entre iguais? O parto normal? Talvez tais questionamentos fossem: por que mostrar? Para que mostrar? Em uma perspectiva pedagógica, de que serve uma imagem sem contexto?

Outra questão é o entendimento da escola de que falar de sexualidade é explorar os conteúdos curriculares de reprodução humana, métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente transmissíveis. Não que eles não possam ser tratados, mas que fujam do conhecimento construído pela ciência moderna, com todas as suas certezas. Tanto assim que é sempre a carga horária de biologia e ciência que reiteradamente é convocada para tratar desses assuntos. Essa forma de conceber tal tratamento é percebida também junto com as professoras baianas, como já foi apresentado anteriormente, neste mesmo capítulo.

Além disso, como a heterossexualidade é tida como a forma “normal” de relacionamento, isso impede que a maioria da docência problematize essa organização social. Incluo aí também as gestões, que defendem suas posições por meio das relações de poder, alimentando assim o preconceito.

3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS DA SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO