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1. GLOBALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO: DA SUA ORIGEM ATÉ O PÓS-

1.2 CRÍTICA AO DESENVOLVIMENTO: O PÓS-DESENVOLVIMENTO

1.2.4 A abordagem das necessidades básicas

Quando na segunda fase do desenvolvimento torna-se evidente que o puro e simples crescimento econômico freqüentemente tem repercussões graves no âmbito social, a solução para os técnicos do desenvolvimento parece clara. É preciso aumentar os recursos para os países subdesenvolvidos, mas agora considerando o “fator humano”, as necessidades básicas do ser humano (basic human needs).

A abordagem das necessidades básicas parece, à primeira vista, mais do que legítima, até imperativa dentro da perspectiva da solidariedade humana. W. Sachs (1993b, p. 29) chama a atenção, porém, para o fato de que a mesma concepção que agora propõe a solução, foi a que criou o problema: a do desenvolvimento. Ou seja, o autor alerta para a capacidade do sistema do desenvolvimento de expandir-se a cada vez que aparece uma dificuldade: ao mesmo tempo em que é gerador de problemas sociais, funciona como terapia, no caso de buscar a solução dos mesmo problemas sociais que criou, tudo concomitantemente.

Olhando a partir de um outro ponto de vista, então, a abordagem das necessidades básicas se apresenta como mais um passo no caminho da uniformização e da difusão do modelo ocidental pelo planeta. Uma interessante crítica desta abordagem, nesse sentido, é apresentada por Ivan Illich (1993, p. 88). Este autor alerta para as conseqüências desta “benevolência sem escrúpulos” com que determinadas necessidades e exigências sentidas

15 “They do not realize that it [underdevelopment] is a comparative adjective whose base of support is the assumption, very Western but unacceptable and undemonstrable, of the oneness, homogeneity and linear evolution of the world” (Esteva, 1993, p. 11).

pelas populações ocidentais são imputadas sem discernimento a todas as pessoas do planeta. Illich argumenta que durante a milenar história do ser humano, determinadas necessidades e carências sempre formaram parte integrante da sua mesma existência. A pobreza era, tradicionalmente, uma condição humana de viver dentro de limites específicos, uma forma sustentável de lidar com as necessidades, que teve suas interpretações espirituais dependendo das diferentes culturas (p. ex: a frugalidade dos monges budistas, franciscanos, Ghandi, etc.).

A partir do Iluminismo europeu, as formas tradicionais de aceitar a pobreza se tornaram obsoletas, e foi o desenvolvimento que espalhou esta concepção pelo mundo. Na visão atual do autor, a pobreza era definida como carência de bens e serviços que o dinheiro podia comprar, e virou, assim, universalmente um sinônimo de falta de consumo. As economias de subsistência viraram incompreensíveis em termos econômicos e as pessoas que viviam delas foram classificadas como “sub-humanos” ou até indecentes. De fato, em termos de ciência econômica, quem não tem acesso a um mínimo de recursos econômicos para satisfazer suas necessidades básicas, é visto como incapaz de exercer a sua racionalidade econômica. Essas pessoas, que inegavelmente existem no mundo todo, são, portanto, marginais não somente ao sistema econômico, mas à mesma humanidade moderna, já que desde Mandeville esta foi definida “em termos da habilidade de tomar decisões na suposição da escassez16” (idem, p. 94, tradução nossa).

O desenvolvimento se tornou, então, uma promessa: alguns povos tinham conseguido vencer a pobreza (em termos de economia de mercado) e isto poderia ser estendido, através de ciência, tecnologia e política, às populações do mundo inteiro. Isso implica, porém, em dizer que as carências sentidas pelas populações dos países industrializados são estendidas e atribuídas à espécie humana como um todo. O problema reside no fato de que, na realidade, somente uma minoria tem verdadeiro acesso à satisfação dessas carências. É assim que o homo sapiens se transforma em homo miserabilis, ou seja, o

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“…has been defined in terms of the ability to make choices under the assumption of scarcity” (Illich, 1993, p. 94).

homem sábio e cheio de gosto vira homem dependente de bens e serviços, numa realidade dominada pela escassez. O desenvolvimento, desse modo, transforma a esperança da satisfação de determinados desejos em expectativa e, por conseguinte, as carências em reivindicações e pedidos.

Em 1962, a ONU se apropria do assunto, criando, na visão de Illich, uma divisão da humanidade em dois grupos: os que vivem acima de um nível mensurável de pobreza e os que vivem abaixo desse nível. Toda uma nova burocracia é, então, chamada para definir que nível de pobreza seria aceitável, onde o índice é constituído pelo Produto Nacional Bruto (PNB).

É somente no fim da década de 1970 que se torna evidente que a maioria das pessoas empobrece na medida em que o PNB aumenta. McNamara, na época Presidente do Banco Mundial, indignado com os efeitos colaterais do desenvolvimento econômico dá, então, vida a uma tendência dentro da sua instituição para determinar carências objetivas e específicas que possam ser expressas em termos monetários. Elas devem constituir a referencia para distinguir entre desenvolvimento de verdade e simples crescimento econômico.

Desta forma, o fator humano é incluído nos cálculos do desenvolvimento, ao lado dos recursos naturais e do capital. A capacidade de produzir, intrínseca ao ser humano, é reconhecida como crucial para o seu sucesso. Desenvolvimento social e econômico são agora fundidos em uma só coisa. A partir deste momento, as diferenças no grau de desenvolvimento em países semelhantes, com políticas semelhantes, são atribuídas a investimentos nos seres humanos. A qualificação do fator humano, como educação, saúde pública, informação etc. vira pré-requisito para o desenvolvimento.

Illich explica que nos anos 1970, chamam atenção duas fraquezas fundamentais desta abordagem. Por um lado, não é possível constatar empiricamente um real nexo de causalidade entre o investimento em serviços para a população, e um aumento da força produtiva das pessoas. Por outro lado, ganha evidência a impossibilidade de criar tantos postos de trabalho quantos seriam necessários para garantir a redistribuição da renda para os serviços sociais. Ao

mesmo tempo, o terço menos avantajado das populações sempre fica sem trabalho (chegando em vários países a dois terços). A estratégia desenvolvimentista, então, providencia para “colonizar economicamente” o setor informal para que as pessoas, uma vez conscientes das suas carências, possam se esforçar para satisfazê-las por si sós.

A promessa do desenvolvimento, desta forma, acabou por não se cumprir para muitas pessoas. De fato, ele “pode ser visualizado como processo pelo qual pessoas são tiradas dos seus povos tradicionais culturais17” (idem, p. 96, tradução nossa), onde os laços

culturais, familiares e comunitários são profundamente afetados. Dentro das novas estruturas artificiais, as pessoas são obrigadas a ter um nível mínimo de consumo de bens e serviços, onde os pobres não têm chance. Quando eles antes tinham um mínimo de segurança dentro da comunidade, agora, uma vez que caem abaixo da linha de pobreza, praticamente não têm possibilidade de voltar, eles viram vítimas das carências que lhes são atribuídas e que passaram a perceber como tais.

Paradoxalmente, para Illich, “necessidade” não existe na ciência econômica e, por conseguinte, não pode ser objeto de análise. Por outro lado, diferentes economistas críticos em relação à teoria desenvolvimentista tradicional, argumentam que as “necessidades básicas” devem ser incluídas nas análises como fundamento de uma nova ordem econômica. Para eles, de fato, somente quando as necessidades básicas são satisfeitas pela economia, preferências e escolhas econômicas podem ser realmente formuladas. Para incluir as necessidades na ciência econômica, contudo, elas devem antes ser classificadas, e existem várias tentativas de constituir uma hierarquia que possa ser objetivamente elaborada. Para Marianne Gronemeyer, citada pelo autor, uma clara classificação das necessidades humanas e o estudo específico de como satisfazê-las é o único meio de sobrevivência da credibilidade pública de uma nova economia. Ademais, ela permite a redefinição da natureza humana segundo os interesses dos profissionais que trabalham para a satisfação destas necessidades.

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“Development can be visualized as a process by which people are lifted out of their traditional cultural commons” (Illich, 1993, p. 96).

Resumindo, para Illich (idem, p. 88), a abordagem das necessidades básicas é possivelmente o legado mais insidioso deixado pelo desenvolvimento, uma vez que o seu discurso continuará mesmo quando a era do desenvolvimento terminar.

Ao lado dos problemas sociais desencadeados pelo discurso das necessidades básicas, outros fatores contribuem na década de 1970 para a degradação da situação para os Países do Terceiro mundo. As matérias primas, que na ótica desenvolvimentista deviam, graças a teoria das vantagens comparativas de Ricardo, aumentar a sua riqueza, são desvalorizadas cada vez mais. Com uma balança de pagamento em constante desequilíbrio, falta moeda estrangeira para pagar as dívidas contraídas para financiar o desenvolvimento.