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CAPÍTULO 1: PRIMEIRAS PALAVRAS – A DELIMITAÇÃO DA PESQUISA

1.4 A ABORDAGEM DE ELUCIDAÇÕES RECÍPROCAS

Para Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 206), a comparação é um dos raciocínios genéricos do pensamento humano, no entanto, sua particularidade nas ciências está no papel que desempenha no estudo sistemático e rigoroso de similaridades e diferenças para testar hipóteses ou chegar a princípios mais gerais sobre o desenvolvimento societário. Dentre as múltiplas possibilidades de comparação apresentadas pelo antropólogo, o processo de elucidação recíproca configurou um mecanismo metodológico proveitoso nesta tese. Essa perspectiva, comparada por meio de um estudo metódico entre as convergências e divergências, contribui exatamente para essa mútua compreensão dos elementos investigados, quando confrontados entre si.

Nessa ótica, o uso da comparação ocorre tanto na abordagem das características internas de cada intelectualidade Guarani, no contexto nacional da Bolívia e do Brasil, quanto no enfoque da inserção desses dois casos no mundo e na cultura ocidental, conforme as categorias de espaço e tempo elaboradas por suas culturas ao longo de séculos de convívio com ambas sociedades nacionais, dentre outras sociedades coloniais do passado.

Nesse sentido, uma das conclusões da comparação feita nesta tese diz respeito à pluralidade histórico-cultural presente nos dois coletivos intelectuais Guarani. Todavia, essa pluralidade reflete singularidades em relação ao mundo externo mais amplo. Isto é, a heterogeneidade interna presente em cada caso enuncia, também, as diferenças em relação aos outros.

Assim, o enfoque comparativo de elucidações recíprocas elaborado por Cardoso de Oliveira (2006), em diálogo com a teoria Guarani dos opostos complementares (ORTIZ, 2015), qualificou a questão levantada nesta tese sobre quem são e o que pensam os intelectuais Guarani sobre seu povo e como comunicam esse saber aos não indígenas. Com isso, obviamente, ampliamos versões acerca do passado desse povo, contestando o próprio entendimento da história, que, na modernidade, se assume completamente simétrica e eurocentrada.

Como já mencionei, nem todos Guarani são objeto de reflexões nesta tese, mas um grupo concreto, constituído por aqueles que, por diversos motivos, têm consciência etnopolítica do seu ser enquanto Guarani. Como nas sociedades ocidentais, trata-se de um grupo bastante reduzido. Os intelectuais deste trabalho, em seus territórios, convivem não só com diferentes etnias, línguas, dialetos, histórias e símbolos, “mas também com vários níveis históricos” (PAZ, 2014, p. 15). Para pensar isso no mundo Guarani, considero trechos do profícuo estudo de Octavio Paz sobre o Pachuco, apresentado em seu livro “O labirinto da solidão”:

Há quem viva antes da história; outros, como os otomis, deslocados por sucessivas invasões, à margem dela. E, sem chegar a tais extremos, várias épocas se enfrentam, se ignoram ou se entredevoram sobre a mesma terra ou separadas por poucos quilômetros”. (PAZ, 2014, p. 15)

Portanto, esta tese procura encontrar sentidos particulares e compartilhados dos processos históricos Guarani, cujas representações são trabalhadas por seus intelectuais em situações interétnicas particulares no Brasil e na Bolívia. Por meio da comparação, mostro que as noções de ñandereko e de Yvy Maraey são produções culturais como expressão ideológica de reconstrução de um passado soterrado pela dominação colonial. A relação entre o passado e essa dominação, em cada coletivo intelectual, é expressada de diversas formas, permitindo notar coincidências entre produções culturais elaboradas em situações, espaços e tempos distintos.

No exercício de interpretação da produção de meus interlocutores, encontrei nos escritos de Ortiz o uso da comparação voltada a criar opostos que se complementam. A comparação e a complementariedade permitem aos Guarani pensar aspectos típicos de um e do outro meio. Para eles, esses aspectos são, ao mesmo tempo, divergentes e convergentes. Divergentes porque elucidam os sentidos da diferença indígena em relação aos karai, e convergentes porque absorvem símbolos e linguagem tipicamente ocidentais.

Esse enfoque comparativo presente nas produções intelectuais propicia uma elucidação recíproca de múltiplos horizontes semânticos22 que norteiam a construção da etnicidade entre Guarani no papel de intelectuais na Bolívia e no Brasil. Assim, o exercício intelectual Guarani de construir representações que os elevem politicamente é sustentado pela experiência pessoal desses autores e pelo seu diálogo com a academia e com outras culturas de modo geral. A compreensão nativa sobre etnicidade está atravessada pela ideia de ancestralidade, que, a partir de dado momento, se vê subordinada a um sistema societário mais amplo, resultante da fricção interétnica.

A abordagem da elucidação recíproca, em confluência com a teoria Guarani empregada nesta tese (o que Rappaport designa como coteorização na pesquisa colaborativa), revela a predominância de uma percepção quase matricial na produção intelectual estudada. Nessa matriz, as colunas representam as categorias tempo, espaço, cultura e conhecimento, que se decompõem em outros eixos: “Guarani x karai”; “tradicional x ocidental”; “fora x dentro”; “aliados x inimigos”.

Essas elaborações intelectuais indígenas expressam categorias nativas empreendidas pelos autores, cujas conexões são resolvidas em seus textos, discursos e situações sociais específicas. Ainda que questionados quanto à originalidade dos elementos culturais, ao apresentar interpretações de si mesmos, o que importa são as criações inovadoras que qualificam esses autores. Nesse sentido, em consonância com Octavio Paz (2004, p. 14), o que distingue cada povo em um universo bem diverso, mergulhado em suas realidades, não “é a originalidade sempre duvidosa do nosso caráter – fruto, talvez, das circunstâncias sempre mutáveis –, mas a originalidade das nossas criações. As interpretações Guarani sobre si mesmos reforçam politicamente suas diferenças diante de outros povos nas Américas.

No âmbito das metodologias de natureza mais qualitativa, a abordagem comparada de elucidação recíproca, em seu processo de exame mútuo, não tem, como veremos, a pretensão de quantificar totalmente o universo investigado, nem mesmo buscar correspondências exatas ou as mesmas proporções com enquadramento análogo. Nesse sentido, esta tese se afasta de uma visão comparativa equivocada que deixa hierarquizar os casos estudados ou fazer juízo de

22 Nesse sentido, Gadamer (2003, p. 43), inspirado em Hegel, cunha a expressão “fusão de horizontes” para se

referir ao fato de “reconhecer no estranho o próprio e torná-lo familiar, [...] cujo ser não é senão o retorno a si mesmo a partir do ser outro”. Assim, em si, a interação com o diferente, seu reconhecimento, resulta colocar-se na condição do outro, ou seja, a superação da posição egocêntrica da perspectiva da própria interpretação e sua reelaboração ao considerar o ponto de vista do outro.

valor em relação a suas criações. Com isso, evitam-se tipologias lineares ou evolucionistas de um processo comum.

Ainda com relação à abordagem comparativa adotada para organizar o material empírico produzido durante a pesquisa colaborativa com os Guarani, além de Roberto Cardoso de Oliveira (2006), as leituras de Frederick Barth (2000) sobre a comparação no âmbito da antropologia orientaram o tratamento da experiência etnográfica nesta tese. O antropólogo norueguês defende a comparação analítica de casos específicos, com atenção especial para os dados empíricos. A proposta de Barth (2000) está inserida na discussão mais ampla sobre a utilização do contraste e da semelhança no método comparativo. De modo geral, o contraste de contextos é uma ferramenta da metodologia comparativa que realça as características singulares de cada caso. Ao comparar cada unidade sistêmica, apostamos no destaque das particularidades de cada caso estudado.

Barth (2000) utiliza a análise comparativa para evidenciar a percepção das estruturas sociais. Com isso, não quer necessariamente a busca – no contraste de contextos – de leis socioculturais de desenvolvimento de dado fenômeno social. O autor mostra-se mais ponderado em relação a esse tipo de ambição macroteórica, porque reconhece que as nações são sistemas sociais culturalmente heterogêneos. Para Barth (2000), raros sistemas sociais (por exemplo, as nações) se ajustam às definições universais, sendo provável considerar exceções à regra. Esse teórico estudou antropologia na Escola de Chicago, nos Estados Unidos, a partir de onde passou a defender que os sistemas sociais são não estáticos e que possuem acentuada dimensão conflitiva. Ainda, o antropólogo norueguês foi fortemente influenciado por Edmund Leach, que criticou ferrenhamente a ideia da estrutura social em um estado de equilíbrio estático.

De acordo com Barth (2000), quanto mais aprofundarmos na dimensão empírica da investigação, mais notamos que as fronteiras sociais são construções parciais no espaço e no tempo23, já que as sociedades concretas estão sempre em constante transformação. Daí o pesquisador deve ressaltar, em cada domínio intersocietário investigado, campos de variabilidade ou diferentes dimensões de variação dos fenômenos sociais. Assim, em termos de análise, podemos dizer que a comparação se efetiva a partir dos “campos de variação”. Podemos dizer que a metodologia comparativa pretende dar conta, simultaneamente, do compartilhado e do não compartilhado de experiências culturais em contextos específicos.

23 Nota-se o quanto essa ideia se aproxima do conceito de grupos étnicos apresentado pelo autor em “Grupos

Nesse sentido, os critérios de comparabilidade dos elementos etnográficos dos dois grupos de intelectuais Guarani foram construídos ao longo da pesquisa, sobretudo durante as viagens de trabalhos de campo e a escrita da tese. Assim, somente após uma redação provisória dos capítulos etnográficos, consegui vislumbrar as categorias nativas que serviriam de critérios para verificar possíveis coincidências, semelhanças e divergências entre trajetórias, produções e situações sociais. De forma que, depois da análise do material etnográfico, passei a contemplar principalmente as noções de Yvy Maraey e ñandereko, a forma de expressão do movimento intelectual e etapas do processo de intelectualização de meus interlocutores como pontos em comum nos dois países. Assim, com a comparação desses elementos entre os dois coletivos intelectuais, percebi fortes conexões, convergindo para o que denomino de pensamento Guarani em tempos transmodernos e sustentado em modalidades de consciência.

Dentre as descontinuidades entre os Guarani das duas partes, ao final desta pesquisa, considero as distintas relações de reconhecimento que eles mantêm com seus respectivos Estados. O processo de reconhecimento Guarani na Bolívia parece mais consolidado do que no Brasil, assim como no primeiro país o grau de autonomia indígena frente ao Estado é maior. A nova Constituição da Bolívia reconhece o caráter plurinacional e intercultural do Estado, bem como de suas instituições, possibilitando, por exemplo, a construção de autonomias indígenas com sistemas políticos e jurídicos próprios. Atualmente, na Bolívia, os indígenas são reconhecidos como nações que, juntas, compõem o Estado Plurinacional.

Por outro lado, no Brasil, os povos indígenas são minorias étnicas. Esse país, historicamente, procurou integrar os indígenas como trabalhadores nacionais, negando sua existência. Assim, no Brasil, os indígenas configuram-se como etnias, isto é, como minorias étnicas com frágil conjectura para ocupar espaços políticos relativamente autônomos diante do Estado.

Nesta tese, discuto, ao final, que há diferenças entre conclusões de estudos antropológicos realizados nos diferentes países da região Guarani – no caso, Bolívia e Brasil como foco comparativo. No entanto, essas distâncias parecem mais relacionadas aos estilos acadêmicos e às políticas públicas dos diferentes países aos quais estão submetidos do que propriamente às percepções étnicas dessa intelectualidade. Vejamos a seguir como a antropologia tem sistematizado informações e representações sobre os Guarani. Isso será feito de modo a apresentarmos os contrastes atualmente existentes no pensamento Guarani, do ponto de vista dos “Guarani de papel” e de suas autorrepresentações.