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CAPÍTULO 2: OS GUARANI SOB A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

2.2 A CENTRALIDADE E A DISPERSÃO GUARANI

O etnólogo alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendajú construiu um documento cartográfico em 1943 que se consolidou como referência para os estudos sobre a distribuição dos povos indígenas no Brasil e em países vizinhos. Trata-se do “Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes”, como podemos observar na imagem a seguir. Esse importante documento indica a grande mancha amarela que representa graficamente o território ocupado pelos Guarani. Com isso, podemos ter uma noção da imensa ocupação Guarani na América do Sul.

Figura 1: Mapa etno-histórico do Brasil e regiões subjacentes

A centralidade que os Guarani ocupam na geografia da América do Sul oferece um fator relevante para compreendermos os mecanismos que os levaram a conquistar uma presença tão vasta. Estudos linguísticos (RODRIGUES, 1964) apontam o sudoeste da Amazônia, especificamente as bacias dos altos rios Madeira e Tapajós, como o ponto de dispersão28 dos povos falantes de idiomas Tupi. Durante o período colonial, ocuparam a costa Atlântica, atravessando por quase todo Paraguai atual até as encostas dos Andes. A exemplo de posição estratégica, as bacias dos rios da Prata, Uruguai e Paraná habitadas por esse povo, importantes vias de comunicação, passaram a abrigar as missões jesuíticas já consolidadas no século XVII. Essa centralidade permitiu o constante intercâmbio de traços contrastantes e, ao mesmo tempo, a formação de um contingente e acervo de guaranização em que a língua comum e a abordagem antropológica deram um tom de homogeneidade. Devemos assumir que a aparente unidade só foi possível por meio das transformações decorrentes da colonização. Assim, essa unidade é bastante relativa. Uma das propostas deste trabalho é mostrar a plasticidade dessa unidade, resultado das transformações impostas pelo sistema colonial e, mais recentemente, manejada pelos próprios Guarani. Esse fato permite que consideremos como sujeitos epistêmicos do pensamento transmoderno.

Junto à sua centralidade, também devemos considerar os aspectos da ideologia e da noção de pessoa Guarani, propícios à formação de alianças com outros grupos étnicos. Nesse sentido, a antropóloga e professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Graciela Chamorro (2004), em suas teorizações sobre a fundamentação espiritual através da palavra, busca compreender a consciência de uma identidade coletiva entre os Guarani. Ela e outros etnólogos consagrados entendem que as diferentes famílias extensas podem compartilhar o mesmo espaço e tempo, sob a autoridade de um mburuvicha guasu, constituindo, assim, uma consciência de identidade coletiva, nomeada de oréva29. Essa palavra refere-se à primeira pessoa do plural, o nós exclusivo, que subtrai de seu círculo os outros, aqueles que não são parentes na família extensa, não vivem na mesma localidade e os não indígenas. Já o termo ñandeva qualifica o nós inclusivo, que abarca todos os interlocutores.

28 Dispersão refere-se aos deslocamentos voluntários dos Guarani, contudo, adiante, no contexto histórico mais

recente, desenvolverei a ideia de diáspora Guarani, que trata de descolamentos forçados.

29 De acordo com Melià (2002, p. 78), “[...] toda cultura se constituye en un nosotros doble, de inclusión y exclusión

a la vez. La lengua guaraní, como otras lenguas, ha categorizado gramatical e léxicamente esta duplicidad ontológica del nosotros, que podemos considerar constitutivo de cultura, usando un plural de primera persona inclusivo; nãnde; y otro exclusivo, ore”.

Chamorro (2004, p. 32) comenta que, atualmente, oréva é empregado para excluir aqueles que não foram iniciados nas tradições de nominação do grupo e os que não compartilham os valores e o modo de ser Guarani. Para essa pesquisadora, o conjunto de diversos oréva resulta em uma consciência coletiva, o ñandéva. Entre os Guarani antigos, a inclusão acontecia em razão da solidariedade e da coesão entre as comunidades, habilidade em fazer alianças para solucionar coletivamente algum obstáculo.

Atualmente, esse padrão de inclusão se mostra mais flexível e abrangente – brancos indigenistas são frequentemente considerados parte da coletividade, como veremos no capítulo 5. Assim, essa dupla consciência coletiva determina uma ideia de identidade aberta e outra fechada em relação aos outros, expressa na primeira pessoa do plural, o “nós”. Nas palavras de Chamorro (2004, p. 36), “os indígenas reconhecem a existência de uma outra sociedade ‘na’ ou ‘à margem da qual’ eles vivem e diante da qual eles precisam se afirmar e se distinguir”.

Certamente, podemos dizer que a etnicidade indígena – pelo menos nos casos pesquisados nesta tese – se fundamenta em modalidades de consciência dupla. Veremos que as produções culturais dos meus interlocutores manifestam uma consciência dupla, isto é, um sentimento de sempre enxergar-se com os olhos dos outros. Talvez, um sentimento de vigilância constante, em que terceiros podem avaliar ou julgar sua intimidade a qualquer momento. Às vezes, são encarados com piedade, desconfiança, humor e violência. São estigmatizados em razão da condição étnica e, por isso, desenvolvem mecanismos de controle de informações sobre sua identidade pessoal e social (GOFFMAN, 1975).

Essa dinâmica de integração social baseada em dois tipos de “nós” proporciona a manutenção de uma potencialidade de vínculos que partem dos Guarani em direção à comunidade ao seu redor. Ainda, outros elementos da organização social são importantes para esclarecer a questão da unidade territorial. Susnik (1995) afirma, a partir de seus estudos sobre os Guarani antigos, que famílias extensas distribuídas em diversos e pequenos grupos domésticos – tekoha – poderiam agrupar dezenas de famílias nucleares.

Esses agrupamentos de famílias viviam em um território amplo, o guára30, que estabelecia certos limites de deslocamentos atrás de novas moradias, bem como o uso do espaço para roças, caças e pescas. Nesse sentido, a política territorial nativa na região do guára

conseguia sua unidade, mesmo com a divisão em vários subgrupos, por meio da manutenção autonômica. Ao mesmo tempo, empreendia ações coletivas de defesa ou ataque.

Entre os guára, havia laços de parentesco, além de uma profunda reciprocidade. Ademais de representar uma unidade linguística, cada guára tinha seu mburuvicha guasu, enquanto cada tekoha tinha seu ycubicha, possibilitando uma consciência política grupal. Em geral, antropólogos contemporâneos (LADEIRA, 2008) e indígenas no presente se referem ao guára por meio da categoria tekoha guasu. Essas duas noções são importantes, pois foram a partir delas que cronistas, viajantes e missionários designavam essa população, criando categorias étnicas que são conhecidas atualmente. Em muitos casos, diferentes etnônimos Guarani foram definidos a partir dos nomes desses coletivos.

A autonomia dos Guarani antigos se sustentava em uma autossuficiência nas dimensões social, política e econômica, embora compartilhando o idioma – com poucas variações – e alguns elementos culturais. Cada núcleo de parentesco, um teková em interação com outros teková – como unidade nas dimensões mencionadas –, está disposto às alianças matrimoniais com orientação a garantir uma pureza étnica de parentesco e aliança31.

Em relação ao aspecto dos matrimônios, muitas pesquisas revelam um grande descompasso entre os sexos dos Guarani dominadores, concluindo que havia uma demanda por mulheres externas. Nesse sentido, Clastres (2003) explica que o intercâmbio de mulheres mantém uma coesão social em consequência de as atividades agrícolas serem femininas, da proibição do incesto (que obriga a “troca” de mulheres) e da constituição de alianças intergrupais.

Ao mesmo tempo em que essas práticas culturais geram vínculos amistosos, por outro lado, evidentemente, são formados espaços de constantes guerras entre diferentes coletivos. Assim, em consonância com a perspectiva da dualidade Guarani, as ideologias das relações intergrupais expressam paz x guerra, unidade x separação, dependência x autonomia. Nessa lógica guerreira, os tekoá maiores e com mais domínio prevaleciam afirmando uma unidade sociopolítica com a definição de uma identidade coletiva mais ampla e global. Com isso, configuram-se coletivos mais centrais e outros mais periféricos, cabendo aos primeiros as

31 Combès e Villar (2007) defendem que a pureza étnica Guarani é percebida em termos de parentesco e aliança.

Para esses teóricos, os Chané e os Isoseño apresentam uma ideologia de ascendência consanguínea muito intensa. A condição dessa pureza étnica está resguardada na manutenção de linhagens de caciques. Combès e Villar (2004) escreveram outro artigo especialmente sobre a aristocracia Chané: “Aristocracias chané. «Casas» en el Chaco argentino y boliviano”.

decisões em relação à iniciativa de guerra (ou aliança) e à arbitragem sobre os conflitos com grupos periféricos.

Figura 2: Distribuição das línguas da família Tupi (em roxo, as subfamílias originais; as cores vermelho e verde correspondem à família Tupi-Guarani, com o subgrupo Guarani em verde)

Diante dessas características, os cronistas e exploradores coloniais definiram os Guarani como “eternos inimigos entre si”, como registra o jesuíta autodidata Antonio Ruiz de Montoya (1639). Foi com essa fama de guerreiros que os Guarani chegaram às planícies dos Andes, em busca pela Yvy Maraey. Assim, a ocupação do território correspondia a uma empreitada de conquista e dominação, de acordo com uma perspectiva etnocêntrica sobre os Chané, que, em poucas gerações, promoveu uma preponderância Guarani na região.

Assim, com o domínio da encosta andina, os Guarani promoviam não somente a própria defesa, mas também protegiam os Chané, pois estes são descritos como mais suscetíveis aos ataques espanhóis. Desse modo, configurou-se uma organização social que evidencia a complementariedade de atividades, ficando a guerra e a defesa a cargo dos Guarani, e o trabalho agrícola e outras tarefas produtivas por conta dos Chané. Nesse sentido, a relação dominante/dominado ajudou a manter relativamente as diferenças entre essas duas culturas, sem que, com isso, anulassem a solidariedade e as alianças em torno de demandas comuns.

No entanto, é necessário dizer que grupos Guarani também realizaram alianças com colonizadores espanhóis, quando lhes convinham. Ainda que, historicamente, os Guarani se opusessem ativamente ao avanço da expansão europeia, reagindo contra ela, por vezes também estabeleciam alianças com os brancos, em consonância com aquilo que Pifarré (2015) denominou de diplomacia Guarani. Isto é, aqueles que resistiam à sua cultura, contudo, em situações de ameaças, passavam a negociar com os não indígenas. Assim, para que as missões jesuíticas obtivessem sucesso na catequese, eram obrigadas a adaptar-se ao mundo Guarani. Inclusive, adotando esse idioma.

A centralidade geográfica, somada às particularidades socioculturais Guarani, é um importante fator para a emergência de uma entidade social que expressa unidade e coesão em torno dessa língua. Certamente, os Guarani foram favorecidos no conjunto dessas condições. Estavam dispostos às alianças interétnicas, multiplicando-as por sua habilidade em deslocar-se no continente, sobretudo através dos rios, em canoas. Ainda, sua dimensão guerreira permitia espaços sociais de integração e permanência do grupo.