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MEDIADORES SOCIAIS: LENGUARAZ, ESCRIBANOS, REPORTEROS E INTELECTUAIS

CAPÍTULO 3: INTERLOCUTORES GUARANI COMO INTELECTUAIS DE SUA

3.3 MEDIADORES SOCIAIS: LENGUARAZ, ESCRIBANOS, REPORTEROS E INTELECTUAIS

A teoria de Wolf (2001, 2003a) sobre brokerage (em uma tradução menos comum, “mediação” ou “intermediário social”) nos ajuda a compreender o papel da intelectualidade Guarani enquanto mediadora de discursos entre a oposição dentro/fora, isto é, no âmbito da comunidade versus esferas mais amplas.

Wolf (2003a) desenvolveu sua teoria a partir do contexto etnográfico e histórico mexicano, no entanto, podemos encontrar semelhanças com situações sociais protagonizadas pelos Guarani, pois ambos os cenários são sociedades latino-americanas colonizadas e marcadas por processos de construção nacionais que envolvem complexas relações de mudanças sociais, proporcionando intensa interação entre o nível local e o global.

Nesse sentido, em seu ensaio “Aspectos das relações de grupos em uma sociedade complexa” (2003a), o autor procurou entender como a interação entre dois grupos – um orientado para as instituições nacionais e o outro voltado para as comunidades – constitui agentes sociais mediadores de recursos e influências entre esses dois universos. Wolf (2003a) identifica os mediadores em um emaranhado de instabilidades e ambivalências entre as instituições nacionais e as instituições das comunidades. São pessoas capazes de atuar, em termos de expectativas, nos espaços nacionais e nas comunidades.

Considerando essa abordagem, preferiu-se observações mais objetivas acerca das interações entre o nível local e as demais esferas, uma vez que os “intermediários controlam as articulações ou sinapses cruciais das relações que ligam o sistema local ao todo mais amplo” (WOLF, 2001, p. 138).

Essa teoria tem implicações metodológicas concretas, no sentido de que, para entender os mecanismos de categorização étnica indígena, não é suficiente proceder à investigação da dimensão discursiva da identificação étnica em nível local, mas, sobretudo, é necessário que também sejam elencados os elementos indigenistas, a dimensão nacional e internacional. Para Wolf (2001, p. 125), essas duas esferas se articulam diametralmente, ou seja, a ênfase antropológica não está mais concentrada nos aspectos internos das comunidades, pois estes são percebidos como “terminais locais” em uma rede de relações de grupos que se estendem, por meio “de níveis intermediários, do nível da comunidade ao da nação”.

Uma questão mencionada por Wolf (2003a), muito evidente na experiência etnográfica desta tese, é que a posição de mediadores dos intelectuais indígenas chega a configurar poderes que podem oportunizar a mobilidade social dessas pessoas e que os recursos disponíveis podem servir tanto para o benefício da comunidade quanto para interesses pessoais ou externos. Com isso, percebe-se a complexidade das orientações e práticas da intelectualidade Guarani no jogo de conflitos que se estabelece entre as agências mais amplas e as instâncias locais de poder. Ou seja, os fluxos dos sentidos, para fora ou para dentro, nunca são óbvios, dependem de cada situação social.

Conforme comentei, os intelectuais indígenas desta pesquisa produzem conhecimento dirigido para além de suas comunidades. Portanto, são grupos orientados para a nação, como diria Wolf (2003a, 2003), porém, no caso Guarani boliviano, seriam grupos orientados para a nação, dentro de outras nações. Evidentemente que essa definição não é rígida e estanque, posto que os novos intelectuais nativos, frequentemente, fundamentam seus discursos com base nos argumentos dos intelectuais tradicionais, estabelecendo relações de cooperação e conflito entre esses sujeitos, que serão abordadas ao longo do trabalho. Essa tipologia revela muito sobre a intelectualidade Guarani, porém reconheço também que são categorias dinâmicas: alguns intelectuais tradicionais estão se transformando em novos intelectuais.

No capítulo sobre a história dos Guarani, abordo como as mudanças sociais ocasionadas pela colonização entre esses povos indígenas provocaram o surgimento desses novos agentes étnicos, intelectualizados e letrados, a partir da década de 1980. Além disso, discorro sobre como os mediadores Guarani desenvolvem capacidades particulares para se comportarem de uma maneira “adequada” nos diversos espaços que atuam, intermediando relações complexas entre as suas comunidades e o mundo exterior.

Os lenguarazes (ou línguas) eram intérpretes nativos de idiomas indígenas a serviço das missões ou de outras agências coloniais. Entre os Guarani, os línguas, geralmente, trabalhavam para os jesuítas. Certamente, estes também podem ser considerados intermediadores culturais, contudo, estão inseridos no contexto histórico que abrange os séculos XVI a XIX, diferentemente dos sujeitos desta tese, lideranças escolarizadas e engajadas politicamente na promoção de sua cultura, surgidas depois da década de 1970, a partir do reconhecimento dos direitos indígenas na esfera internacional. Portanto, aqui, trata-se de intermediadores culturais recentes, compreendidos, sobretudo, a partir das últimas décadas do século XX até o presente. Os indígenas, no papel de intelectuais de sua cultura, são intermediadores sociais em uma arena

política com importantes conquistas, constituem-se em agentes sociais recentes e, desse modo, são bem diferentes dos línguas.

Na história mais recente dos povos indígenas na Bolívia, a partir do final do século XX, surgiram os escribanos49. O antropólogo estadunidense Bret Gustafson, em sua tese intitulada “Nuevas lenguas del Estado: el pueblo Guaraní y la educación indígena en Bolivia”, de 2015, principal referência que caracteriza esses agentes étnicos que emergiram a partir do final da década de 1980, afirma que os escribanos constituíam um pequeno grupo de Guarani bilíngues e letrados nas duas línguas, responsáveis pela escrita de novos livros escolares bilíngues. No entanto, o autor comenta que, na metade da década de 2000, são cerca de 100 escribanos Guarani na Bolívia.

Para Gustafson (2015), os escribanos Guarani eram uma mistura de intelectual orgânico de base popular com funcionário estatal de escola, empregado de alguma ONG ou mburuvicha de algum movimento. Sua autoridade não dependia de títulos acadêmicos, eram letrados em dois idiomas e atuavam entre pautas formais da escola e o saber comunitário. Nesse sentido, o autor define esses escribanos Guarani como intelectuais que ocuparam posição central no movimento indígena latino-americano, mesmo que seus trabalhos não tenham sido formalizados ou certificados pela academia.

Os escribanos, segundo Gustafson (2015, p. 99), também exerciam a tradução e a mediação entre os espaços de dentro e fora dos movimentos. Estes passaram a mobilizar novos recursos culturais, valorizaram as línguas indígenas, geraram uma autocompreensão coletiva e atualizada e ampliaram os conhecimentos tradicionais indígenas, bem como os ocidentais:

49 Preferi deixar o termo no espanhol, como desenvolve Gustafson (2015) em sua tese de doutorado, também

realizada com os Guarani na região de Camiri. No português, as palavras correspondentes são: escriba, escrivão, notório. É aquele que se dedica a escrever cartas, textos, registros de informações para instituições do Estado, igreja etc. Amplamente na América, a partir do século XVI, os colonizadores passam a empregar nativos como

escribanos da Coroa. Geralmente, eram indígenas criados nas missões, onde aprendiam a ler e escrever, bem como

noções administrativas. No México, entre os séculos XVI e XVII, surge entre os Nahuált a produção anônima de “títulos primordiales”, uma prática de escrita indígena. Segundo Gruzinski (2003), havia uma paixão pela escrita, muitas vezes ligada à vontade de sobreviver e de salvar a memória da linguagem e da comunidade, com intuito de preservar as identidades e os bens.

[...] el intelectual indígena es una especie de comerciante de la identidad que fomenta la intolerencia sobre la base de una identidad no auténtica o ilegítima o de demandas motivadas por intereses proprios. Sería ingenuo decir que no existen tales “emprendedores étnicos”. Pero, este punto de vista expresa en sí una intolerancia interesada y teñida de formas coloniales de percibir la indigeneidad. No describe de manera satisfactoria la heterogeneidad de las prácticas intelectuales indígenas en Latinoamérica. Los líderes indígenas por mucho tiempo se han unificado entre dos mundos: el de su proprio medio cultural y linguístico, y el de los actores, movimientos y partidos no indígenas. Por razones tácticas y realidades prácticas operan a través de conocimiento no indígenas impuestos y apropiados en la lucha en contra del colonialismo. Esto implica una apertura al diálogo y un intercambio (a menudo desigual) con sus proprios conocimientos, lenguas y experiencias, invariablemente se trata de una postura intercultural e intelectual mucho más abierta que la de la sociedade dominante karai.

Ainda que os escribanos sejam um tipo de intelectual indígena com características que se aproximam dos interlocutores desta tese, não podemos confundi-los, pois são agentes étnicos distintos. Os intelectuais do presente estudo etnográfico, isto é, começo do século XXI, têm uma projeção maior de suas produções, para além das esferas regionais e nacionais. Os escribanos, por sua vez, correspondem a uma etapa histórica anterior, são protagonistas na emergência dos programas neoliberais de Educação Intercultural Bilíngue do final do século XX.

No mesmo contexto histórico dos escribanos descritos, é possível dizer que os reporteros populares Guarani também se empenharam como intermediários. São agentes de comunicação constituídos no contexto do centenário de Kuruyuki, em 1992. Trabalharam na mobilização das comunidades para participação no evento e acompanharam seus desdobramentos como correspondentes, enviando notícias para os meios de comunicação mais regionais e nacionais e, também, levando informações do mundo externo para as comunidades, por meio de folhetins, revistas e programas de rádio. Assim, fomento uma consciência política através do conhecimento de seus direitos e de sua localização, bem como de uma história e geografia mundial. Na penúltima seção do próximo capítulo, detalharei o caso dos reporteros Guarani na Bolívia.

Pode-se dizer que as mudanças nesses tipos de mediadores Guarani, ao longo da história colonial, permitiram a formação de um novo tipo de agente étnico, aquele que amplia a apropriação dos recursos da modernidade para superar seus desafios e, inclusive, disputar propostas de um modelo de desenvolvimento menos nocivo. Na próxima seção, mostro como meus interlocutores se percebem neste trabalho.