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CAPÍTULO 3: INTERLOCUTORES GUARANI COMO INTELECTUAIS DE SUA

3.4 AUTOPERCEPÇÃO DOS INTELECTUAIS GUARANI

Os movimentos indígenas e acadêmicos das ciências humanas têm empregado crescentemente o termo intelectual indígena. Às vezes, por se tratar novamente de uma categoria externa aos povos indígenas, que manifesta mais o entendimento ocidental do que a ideia de conhecimento para os indígenas, gera controvérsias.

Além disso, outro ponto é que o intelecto indígena não está restrito a uma inteligência ou a um raciocínio exclusivamente cerebral pautado na observação visual como primazia. Entre os povos indígenas, a visão de conhecimento é extensa e contínua, abarca uma totalidade que considera a alma, a natureza, o poder da palavra, a sonoridade, o espaço e seu ñande reko, como podemos observar entre os Guarani.

Maria Aparecida Bergamaschi (2014), especialista em educação indígena no Brasil, comenta que, dentre os diversos significados que o termo intelectual indígena carrega, encontra-se a ideia de classe culta, empregada inicialmente no século XIX para se referir a uma elite intelectual indígena. No entanto, a partir da politização das identidades indígenas nas últimas décadas do século XX, passa-se a utilizar esse termo em uma dimensão política capaz de empoderar os mburuvichas, sábios e estudiosos indígenas que, por conta de seus conhecimentos acerca dos códigos ocidentais e indígenas, se destacam em suas comunidades e em espaços metropolitanos. Assim, essa definição vai bem além de uma condição profissional. No contexto dos estudos acadêmicos sobre povos indígenas, o termo intelectual, ao abranger tanto os sábios da filosofia e ciência indígena quanto os indígenas letrados que frequentam a academia, denota ambivalência. Além dessa questão, setores anti-índigenas (ou o senso comum de modo geral) podem considerar paradoxal a expressão intelectual indígena. Isso porque existe um equívoco no Brasil, que ainda repercute e opera por meio da ideia do “indígena tutelado”, isto é, uma pessoa sem autonomia e pensamento próprio, visto como uma eterna criança.

Outro problema em relação à ideia de intelectual indígena (ou “intelectual Guarani”) é que esses termos acabam por sugerir que somente alguns são “intelectualizados”, enquanto os outros não seriam ou não poderiam ser. Obviamente que, assim como nas sociedades ocidentais, os intelectuais entre os Guarani também constituem um grupo reduzido. Contudo, entre eles, não se criam distinções – no sentido definido por Bourdieu (2007) – nem se forma uma classe culta, conforme mencionado anteriormente. Daí a opção, nesta tese, por se referir a eles como Guaranis no papel de intelectuais, para delimitar a compreensão de um modo específico de

agencialidade intelectual em múltiplas situações sociais interétnicas, em que outros códigos de distinção não Guarani são estruturantes das relações do campo intelectual.

Segundo Bourdieu (2007), a lógica da distinção se configura como um sistema de inclusão e de exclusão. Em outras palavras, as relações entre as dimensões econômicas (ou materiais) e simbólicas constituem uma estilização da vida, em que os sistemas simbólicos realizam o papel social de hierarquização das diferenças de inclusão ou de exclusão. Nesse sentido, os Guarani fariam uma apropriação exclusiva dos bens culturais legítimos e dos lucros da distinção que essa posição intelectual proporcionaria, o que não foi constatado na minha experiência etnográfica. Por isso, é importante frisar que a intenção de utilizar a noção de intelectuais indígenas nesta tese não tem relação nenhuma com a ideia de criar distinções entre os Guarani (principalmente, porque eles mesmos não as reconhecem como legítimas), mas estudar a produção intelectual de Guarani enquanto intermediadores de ideologias étnicas e nacionais para seus próprios povos e iguais.

Após pontuar alguns problemas relacionados ao emprego da categoria “intelectuais” para se referir aos indígenas com os quais trabalhei, é necessário deixar claro que, em sua maioria, essas pessoas normalmente não se identificam com esse termo. Geralmente, apresentam-se a partir de suas ocupações: professores, agentes de saúde, universitários, comunicadores sociais etc. Portanto, neste trabalho, intelectual indígena é mais uma noção apropriada da antropologia contemporânea, em especial, da latino-americana (RAPPAPORT, 2007a; GUITIERREZ CHONG, 2012; ZAPATA SILVA, 2013), e do movimento indígena gestado desde 1980, que procurou valorizar esse termo para alcançar maior projeção política. Assim, trata-se de uma categoria analítica empregada nesta tese.

Para Bergamaschi (2014), os intelectuais indígenas são formados pela e na oralidade. Em síntese, a cultura oral tem estreita relação com a produção e a transmissão de entendimentos sobre o mundo, embora, paulatinamente, tenhamos mais indígenas na academia, inclusive desenvolvendo epistemologias próprias. Segundo a autora, esses intelectuais geralmente conjugam conhecimentos de sua cultura tradicional com formação acadêmica. Isso possibilita usufruir da escrita e das metodologias proporcionadas pelas disciplinas ocidentais em prol da tradição de seu povo, tornando-se, assim, uma espécie de “diplomata”, um mediador entre dois mundos de saberes: o indígena e o não indígena (BERGAMASCHI, 2014, p. 13).

Alguns antropólogos que trabalham com intelectuais indígenas comentam que, geralmente, esses agentes enfrentam problemas na definição de si mesmos neste papel. Apesar de formular ideologias, no cotidiano essas pessoas evidentemente não se reconhecem

profissionalmente como intelectuais. No entanto, no caso boliviano, os Guarani escritores e professores na Universidad Guaraní Apiaguaiki Tumpa lidam de maneira mais estreita com essa categoria, como veremos mais adiante.

Especificamente, não há uma definição Guarani análoga para intelectual. Todavia, podemos compreender como eles definem conhecimento ou aquilo que pode ser entendido e ensinado a partir das suas categorias nativas relativas à sabedoria. Nesse sentido, passo a comentar os vocabulários arakuaa e arakuaa iya. Apresento as definições de Ortiz e Caurey (2011) registradas em seu dicionário, contudo, há outros vocábulos, se aprofundarmos, por exemplo, na variante Guarani do Paraguai50:

Arakuaa Sabiduría, formación integral de la persona. Etim. Ara + kuaa = Tiempo,

cosmos + conocer: conocer él cosmos. Iyarakuaama Ya sabe (ya es consciente de sus actos); arakuaa iya sabio (poseedor de la sabiduría); iyarakuaambae necio, estulto, amaboarakuaa le transmito conocimiento sobre el bien y el mal; arakuaa yapora dos formas de saberes en complementación. Etnog. [...] arakuaa iyipi jaeko teko ñima la fuente de la sabiduría es la costumbre antigua (aquilatada en el crisol de la experiencia); iyarakuaa kavi vae mbaetiko tape pichii oipii la persona que tiene formación integral no toma en camino erróneo; arakuaa iya oyemongeta oi yave,

peyandu katu cuando el arakuaa iya esté hablando, escúchenlo con atención; [...] yepeteima jeta amboarakuaa, mbaetii oendu ñee, guiramoiñoko ojota jeko kavia keti a pesar de aconsejarle, no escucha lo que se le disse, cualquier rato terminará

tomando el mal camino; yemboe jaeko tape yaipisi vaera karai iyarakuaa,

jaeramo eyemboe, che rai, kuri nde aguara vaera karai reta jovai el estudio

escolarizado es el camino para alcanzar la educación karai, por eso hijo, estudia para que algún dia seas hábil compitiendo cientificamente con los karai [...].

Arakuaa Iya Poseedor de sabiduría. Etim. Arakuaa + iya = Sabiduría + dueño: dueño

del saber. Etnog. Arakuaa iya opaete vae omboete El sabio es muy respetado por todos; ñemboavaipe ñai yave, arakuaa iya omboesape ñandeve cuando hay algún problema, el sabio nos ilumina; arakuaa iya reta oipisi arakuaa oikogue rupi los sabios adquieren sabiduría a través de la experiencia [...]. (ORTIZ; CAUREY, 2011, p. 56). [grifos no original]

O uso da cultura como recurso entre os Guarani ocorre por parte de pessoas específicas no conjunto desse povo, isto é, por meio dos intelectuais ou dos agentes étnicos indígenas, que atuam como novos mediadores sociais. Evidentemente que essas definições são dinâmicas, já que os novos intelectuais indígenas, frequentemente, fundamentam seus discursos por meio de ideias e relatos dos intelectuais tradicionais, podendo estabelecer relações de cooperação e conflito. Esses conceitos antropológicos revelam muito sobre meus interlocutores Guarani, porém reconheço que são categorias limitadas, do ponto de vista etnográfico, pois a maioria não se apresenta assim.

50 O “Diccionario castellano-guaraní y guaraní-castellano” (1986), dos jesuítas Antonio Guasch e Diego Ortiz,

define: Sabio: imba’ekuaáva, iñarandúva (p. 437) e Intelectual: hekokuaáva; trabajo i.: ánga rembiapo, apytu’u

No capítulo 4, descrevo o contexto no qual o escritor Guarani Elias Caurey (2012) desenvolveu seu conceito de karai fictício. No entanto, antecipo alguns elementos dessa ideia, pois ela nos permite compreender como os meus interlocutores se autopercebem em seus trabalhos com a cultura. Para Caurey (2012), o karai fictício é aquele Guarani que se aparenta karai, mas, em essência, é Guarani, isto é, um Guarani figurando no mundo e nos termos do branco. Assim, o intelectual indígena como karai fictício refere-se a ele próprio, é aquela pessoa que vive no limite de dois mundos opostos. Por um lado, um universo de aparências, o mundo karai. E, por outro, um mundo de essência, daquilo que vem de dentro, ou seja, o Guarani.

Portanto, do ponto de vista de Caurey (2012), está claro que o intelectual indígena se encontra em um espaço intermediário de dois modelos societários. Para o autor, é como se o intelectual Guarani, atualmente, fosse o guerreiro das batalhas do passado. Assim, esse intelectual deve ter a capacidade de adaptar-se a diferentes situações e relacionar-se com diferentes visões. Nas palavras de Caurey (2012, p. 55):

El “karai ficticio” se caracteriza por su doble nacionalidad o el mokoi rova: karai y guaraní. Su ubicación en el espacio intermedio le permite adoptar posiciones y actitudes diferentes, dependiendo en qué grupo social se encuentra, por ejemplo: en la socidade karai comienza a comunicarse en los códigos de ésta, su idioma, sus normas, sus gestos, su religión (cuando se bautiza a un pequeño se suele decir: “Tambo karai che michia: lo convertiré en karai a mi niño”), su forma de hacer política (por eso no es de extrañarse que las posiciones de los dirigentes sean distintas a la de sus bases, por lo menos en el discurso), etc; y lo proprio hace en la guaraní. Los “karai ficticio” están comezando a crecer considerablemente [...] Quienes están siguiendo al modelo “karai ficticio” pertenecen a dos grandes sectores de la sociedad guaraní: los estudiantes (entre este grupo también están los profesionales) y los dirigentes. Ambos salen de sus comunidades.

Com isso, Caurey (2012) comenta sobre a necessidade de os Guarani terem que sair de suas comunidades para estudar nos níveis mais elevados e, às vezes, trabalhar e morar em cidades grandes ou médias próximas às suas comunidades. Nesse sentido, o estudante Guarani, o intelectual em formação, é submetido a diferentes regramentos sociais, reprimidos em suas condutas habituais, com a imposição de novos comportamentos. Ainda que sua língua não seja diretamente negada como no passado colonial, longe de suas comunidades não tem como praticá-la. A título de exemplo, o caso de Ivan Guarany, meu principal interlocutor do lado brasileiro, a quem faço menção frequentemente nas próximas seções desta tese. Ele tem o Guarani como língua materna e pratica o idioma entre familiares em Xambioá. Porém, quando está em Palmas, não há com quem conversar em Guarani.

Caurey (2012) comenta que os profissionais indígenas, ainda que não trabalhem cotidianamente em suas comunidades de origem, nas cidades estão envolvidos em aspectos políticos mais amplos e, mesmo assim, são reconhecidos como lideranças em seu lugar de origem. Nesse sentido, o autor comenta sobre o papel dos agentes étnicos como produtores culturais, a partir do termo “dirigente”. Em suas palavras:

El dirigente experimenta situaciones análogas a las del estudiante, con la diferencia de que está en permanente contacto con las comunidades y con el Otro, y es el que más actúa en esos escenarios. No obstante, debemos mencionar que los actuales dirigentes surgen a partir de la proliferación de instituciones que ofrecen ayuda y promueven el liderazgo (de hombres y mujeres); este fenómeno ha llevado a la creación de un nuevo estrato social, el de los “dirigentes”. Con esto no quiero decir que antes no había dirigentes, por supuesto que sí existían, pero estos nuevos dirigentes son diferentes a los anteriores en varios aspectos; el de hoy viaja más a lugares lejanos (dejando a su família y su chaco, sobre todo aquellos que tienen cargos nacionales y zonales), muchos encuentran una vida más fácil (bonos, viáticos etc.), cargos en la esfera estatal. El hecho de estar lejos de su ámbito familiar y comunal lleva a que, en cierta forma, puede considerar como un mal necessario para la sociedad guaraní, precisamente porque son los dirigentes los que lidian con el Otro, sobre todo con el gobierno. (CAUREY, 2012, p. 56-57)

O surgimento do karai fictício corresponde à resistência no contexto de imposição por parte do karai verdadeiro, que, ao longo da história colonial, “empurrou” os indígenas para a margem da sociedade ou fez com que se sentissem marginalizados em relação aos grupos sociais de origem europeia. Assim, a fim de superar essa condição subalterna, os indígenas passaram a refletir sobre si mesmos, apropriando-se, em diferentes graus, de estratégias discursivas karai para manejar seus distintos conteúdos culturais e apresentar-se como um povo específico. Trata-se de um repertório cultural heterogêneo, com inúmeras aldeias, variações linguísticas e histórias particulares. Cabe ao karai fictício, isto é, ao intelectual, criar um consenso, possibilitando valores comuns. Com isso, busca-se uma interpretação homogênea em sua totalidade, a fim de sustentar uma nação com um pensamento social configurado em movimento transmoderno. Nesse sentido, surge um novo Guarani (em relação aos Guarani antigos ou “de papel”): são os que mudaram de conduta diante das mudanças impostas. Segundo Caurey (2012, p. 57-58), esse novo Guarani pode ser entendido como um “Guarani fictício”:

No cabe menor duda, el comportamiento del “guaraní ficticio” es un comportamiento muy lógico, adecuado a los nuevos tiempos y espacios. La idea central de este cometido es “conseguir el máximo beneficio del Otro con el mínimo esfuerzo”, en términos económicos. ¿Como? ¡Sencillo! Entrando a su mundo pero sin deshacerse por completo de la esencia de su cultura, puesto que es lo que lo mantiene vivo y es su razón de ser; hay algunos que mantienen más ésa esencia y otros menos, pero ninguno es el extremo. Esta actitud le permitirá llevar uma vida modesta y de acuerdo a las circunstancias emergentes, obviamente en el contexto social. Cuando decimos en lo social, nos referimos a los condiciones que exige la sociedade karai en su conjunto; por ejemplo: formación académica, organización, ingresos económicos, inserción em diferentes tipos de eventos, trabajo etc.

Com efeito, o ato de estudar torna-se uma forma de resistência, um meio de sobrevivência. Desse modo, não estudam necessariamente para um determinado fim, o que é mais importante é o próprio movimento em torno da educação, o que garante a manutenção de suas culturas, histórias e comunidades. Antes, podiam viver sem estudar. Porém, em uma sociedade em que não se pode mais viver como antes (caça, pesca, coleta etc.), a educação, para os Guarani, passa a ser uma forma de cuidar de si próprios, consequentemente, de seu ñanderko. Nesse sentido, finalizo esta seção com as palavras de Caurey (2012, p. 58): “[...] El estudio es un instrumento que sirve para sobrevivir frente al Otro, es decir, para ser reconocido y respetado como tal, más allá de lo que pueda significar lo estrictamente económico”.