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CAPÍTULO 2: OS GUARANI SOB A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

2.1 A DIVERSIDADE GUARANI: OS SUBGRUPOS ÉTNICOS

2.1.2 Os Mbya

Os Mbya são os Guarani que menos se envolveram com o processo de colonização. Eles procuravam ocupar territórios afastados e recusavam qualquer contato com terceiros. Durante a conquista, habitavam as altas matas da bacia do médio rio Paraná, que, atualmente, correspondem aos departamentos paraguaios de Caaguasu e Guairá27, oeste desse rio. A partir

do século XX, com a intensificação da expansão das frentes de exploração florestal e agropecuária na região ocidental do Paraguai, os Mbya constituíram fluxos migratórios significativos, recuando-se na costa Atlântica do Sul e Sudeste do Brasil e no noroeste da Argentina.

O etnólogo León Cadogan foi um dos primeiros e principais etnógrafos dos Mbya. De acordo com o pesquisador, inicialmente esse povo foi descrito nos textos por meio do termo genérico Kayguá (Caingua), “gente da floresta”, denominação exógena destinada aos Mbya (CADOGAN, 1959). Ainda que tentassem permanecer afastados dos brancos, desde o século XVI, estabelecem desastrosos contatos. Os Mbya, como veremos adiante sobre a filosofia Guarani, recusam qualquer presença do Estado. De modo geral, preferem não ter documentos

27 Guairá aparece em entrevistas com lideranças Mbya, além de constar em várias etnografias clássicas. Cadogan,

em sua obra “Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá” (1959), a qual comentaremos adiante, dedicou-se à prática social de nominação entre os Mbya do Guairá, no Paraguai, por meio dos discursos míticos em rituais. O professor de direito e doutor em antropologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) contou-me, em conversa informal em Goiânia, que, possivelmente, sua família partiu dessa localidade em direção ao Norte do Brasil, no período após a Guerra da Tríplice Aliança. As primeiras missões jesuítas se instalaram na localidade de Guairá, no século XVI. O caso dos espanhóis de Assunção com os Guarani fez com que as missões de Guairá migrassem para as bacias do Paraná e do Uruguai.

pessoais, não serem recenseados, não aceitam tutela, pois concebem esses instrumentos como formas de fixá-los. Atualmente, ainda há esse sentimento por parte de algumas pessoas. No entanto, a fim de acessar alguns serviços essenciais, acabaram por adotar certas “imposições” do mundo branco.

Infelizmente, essa recusa em “fixar-se” serviu perversamente como argumento de que os Mbya não tinham direito ou interesse pelas terras, pois não se mobilizaram amplamente para recuperá-las. Com isso, prevaleceu a vontade de fazendeiros e de outros agentes capitalistas. Estes alteraram a ocupação territorial Mbya, negando o direito à terra (LADEIRA, 2007, 2008). Enquanto os Chiriguano se referem aos brancos como karai, os Mbya utilizam o termo jurua. De acordo com Ladeira, em seu livro “Espaço geográfico Guarani-Mbya: significado, constituição e uso” (2008), não se sabe exatamente quando esse termo passou a ser utilizado por eles, apesar de seu uso corrente entre vários povos indígenas de diferentes famílias linguísticas na atualidade. Originalmente, o termo significa “boca com cabelo”, aludindo ao bigode e à barba dos europeus da conquista. Como é possível notar, a categoria jurua surgiu em razão do contato com os brancos colonizadores e, posteriormente, passou a denotar todos aqueles não indígenas.

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi criado em 1910 e modificado no governo militar em 1967, dando origem posteriormente à Fundação Nacional do Índio (Funai). Essas agências indigenistas do Estado impuseram reservas por meio das quais passaram a confinar povos de diferentes línguas e culturas. Sempre forçaram o deslocamento Guarani, negando sua diferença cultural em relação à ocupação territorial, compelindo-os à sedentarização. Além das epidemias, as aldeias sofriam com o novo tipo de agricultura e trabalho, completamente oposto ao modo de ser Guarani.

Mesmo com a extrema violência colonial, os Guarani-Mbya desenvolveram maneiras particulares de adaptação de suas tradições. A diplomacia, a tolerância e a leveza, valores característicos desse povo, orientaram os Guarani a manter um relacionamento respeitoso em relação aos costumes e à espiritualidade dos outros. Ladeira (2008) comenta que essa conduta não significa submissão ao processo colonial, mas, sim, um modo bastante particular de preservar suas práticas culturais tradicionais e interagir, inevitavelmente, com as sociedades nacionais envolvidas.

Os Guarani, em razão da posição geográfica e das condições socioeconômicas de seus territórios, padecem com conflitos e crises que os pressionam a repensar constantemente suas relações de contato com os não indígenas. Acabam por sobreviver na ambivalência contínua de se valer dos padrões sociais ocidentais e, concomitantemente, para garantir seus direitos indígenas, permanecer etnicamente diferenciados, vivendo de acordo com seus costumes e tradições, que configuram uma expectativa na sociedade nacional sobre o que é o indígena.

Os Mbya estão repartidos em diferentes pontos na América do Sul. Ocupam a região oriental do Paraguai, o noroeste argentino e o Norte uruguaio. No Brasil, suas aldeias estão presentes no Sul do país: no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. No Sudeste, na Mata Atlântica do litoral do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Ainda, vivem famílias provenientes do Sul que migraram rumo ao Norte do Brasil; dividiram-se em agrupamentos familiares e acabaram por constituir a aldeia Guarani em Jacundá (PA). Outros compartilham a terra indígena Xambioá (TO) com os Karajá.

Há também pessoas Mbya residindo na aldeia Mãe Maria dos Gavião Parkatejê, ainda no Pará, e entre os Karajá, em Xambioá, Tocantins, além de famílias reduzidas no Maranhão (Estreito, Itinga e Santa Inês) e espalhadas no Centro-Oeste. De acordo com conversa informal estabelecida com Vilmar Guarany em 2018 e com o estudo do antropólogo Rafael Mendes Júnior (2016) sobre o parentesco Mbya no Norte, ainda há famílias desse mesmo grande coletivo vivendo em Goiás (Mozarlândia, Jussara, Itapirapuã, Campo Alegre, Crixás, Goiânia e Aparecida de Goiânia) e na cidade de Cocalinho, no Mato Grosso.

Ladeira (2007, 2008) comenta o fato de que, apesar da dispersão geográfica e das diferentes relações com as sociedades indígenas e não indígenas, os Guarani mantêm uma unidade religiosa e linguística bem determinada, que permite o reconhecimento de seus iguais, mesmo vivendo em aldeias separadas. Inclusive, sendo a mobilidade uma das principais características étnicas dos Guarani. Nesse sentido, ainda que escassa a bibliografia antropológica e histórica sobre a presença Mbya no Norte, a literatura clássica sobre esse subgrupo Guarani contribuiu para a compressão da identidade étnica desse povo.