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PARTE II – O ESTUDO

4.5. Uma abordagem etnográfica

Boumard (1999, p.7) considera a escola como “um mundo em construção” quando trata da questão da cultura produzida pelos atores no espaço educativo e relata que estes atores “se encontram a produzir, eles próprios, internamente, o sentido da sua socialização, e a negociar, com o exterior, a interpretação dessa elaboração interna”.

Uma abordagem etnográfica permite que avancemos nesta proposição de estudo porque nos permite investigar numa abordagem dialética, as interações (sociais e culturais) sob a perspectiva da visão das pessoas envolvidas, os comportamentos e seus significados, e que variações podemos descobrir e interpretar em relação ao contexto mais amplo que representa a cultura da escola.

(...) o olhar etnográfico define uma postura e não somente uma técnica. Mas esta postura pressupõe, ela própria, uma concepção da realidade tal como apresenta o interacionismo simbólico. O rela não se encontra aí pré-definido. Através da noção de definição da situação, impõe-se a idéia de que são os

próprios atores que definem a situação na qual se encontram, e ao fazerem- na, estão a construí-la. Os papéis dos atores que parecem estar prescritos pela sociedade (e isso é particularmente evidente no caso da escola) são de fatos construídos em relação ao sentido que eles conferem às diferentes situações para cuja elaboração contribuem (BOUMARD, 1999, p.4).

Segundo Mattos (2001, p.3):

Grafia vem do grego Graf (o) significa escrever sobre um tipo particular – um etn (o) ou uma sociedade em particular. Antes de investigadores iniciarem estudos mais sistemáticos sobre uma determinada sociedade eles escreviam todos os tipos de informações sobre outros povos por eles desconhecidos. Etnografia é a especialidade da Antropologia, que tem por fim o estudo e a descrição dos povos, sua língua, sua raça, sua religião e manifestações materiais de suas atividades, é parte ou disciplina integrante da etnologia, é a forma de descrição da cultura material de um determinado povo.

O método etnográfico tem suas raízes na antropologia social e tem como objetivo estudar a sociedade e sua cultura, as relações decorrentes de suas práticas, os valores implícitos em seus atores sociais e os significados expressados por eles. E é a partir de uma descrição densa dos comportamentos de tais atores participantes de um determinado contexto, que se podem inferir interpretações através de um trabalho intenso em campo.

Para Geertz (1978, p.15):

(...) praticar etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os procedimentos determinados, que definem o empreendimento. O que define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um rico material elaborado para uma “descrição densa”.

Para que possamos observar e interpretar o comportamento humano mediante uma abordagem etnográfica na área educacional é preciso que compreendamos em que contexto se dá as ações e como os significados se expressam culturalmente tanto em um ambiente macro (escola) como no ambiente micro (sala de aula); neste contexto acontecem as práticas pedagógicas, interações e as negociações sociais na construção do conhecimento.

Para André (1997, p.4):

A preocupação da etnografia com questões relacionadas à cultura de grupos e indivíduos estudados chamou a atenção dos educadores para a necessidade de considerar as situações de sala de aula (dimensão pessoal e interacional) em estreita conexão com a forma de organização do trabalho pedagógico na escola (dimensão institucional) e com os seus determinantes macro- estruturais (dimensão sociocultural).

Destacamos como característica importante da pesquisa etnográfica no campo da educação o processo de captar e descrever os significados atribuídos pelos sujeitos a si próprios e suas experiências. Ao tentar compreender como variadas situações são interpretadas por diversas pessoas, o pesquisador não busca uma realidade uníssona, mas a pluralidade de vozes (nas quais se inclui a do próprio pesquisador), mesmo se contraditórias entre si. Atento ao contexto, compreendido como multidimensional, o foco de olhar reside nos processos e não nos produtos, suscitando perguntas do tipo ‘como’ e ‘por que’. “A pesquisa etnográfica busca a formulação de hipóteses, conceitos, abstrações, teorias e não sua testagem. Para isso faz uso de um plano de trabalho aberto e flexível, em que os focos da investigação vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta, reavaliadas, os instrumentos, reformulados e os fundamentos teóricos, repensados” (ANDRÉ, 2012, p.30).

Para Atkinson e Hammersley (2007, p.15), a etnografia envolve as seguintes características:

(…) ethnography usually involves the researcher participating, overtly or covertly, in people’s daily lives for an extended period of time, watching what happens, listening to what is said, and/or asking questions through informal and formal interviews, collecting documents and artefacts – in fact, gathering whatever data are available to throw light on the issues that are the emerging focus of inquiry. Generally speaking ethnographers draw on a range of sources of data, though they may sometimes rely primarily on one.

In more detailed terms, ethnographic work usually has most of the following features:

1. People’s actions and accounts are studied in everyday contexts, rather than under conditions created by the researcher – such as in experimental setups or in highly structured interview situations. In other words, research takes place ‘in the field’.

2. Data are gathered from a range of sources, including documentary evidence of various kinds, but participant observation and/or relatively informal conversations are usually the main ones.

3. Data collection is, for the most part, relatively ‘unstructured’, in two senses. First, it does not involve following through a fixed and detailed research design specified at the start. Second, the categories that are used for interpreting what people say or do are not built into the data collection process through the use of observation schedules or questionnaires. Instead, they are generated out of the process of data analysis.

4. The focus is usually on a few cases, generally fairly small-scale, perhaps a single setting or group of people. This is to facilitate in-depth study.

5. The analysis of data involves interpretation of the meanings, functions, and consequences of human actions and institutional practices, and how these are implicated in local, and perhaps also wider, contexts. What are produced, for the most part, are verbal descriptions, explanations, and theories; quantification and statistical analysis play a subordinate role at most.

Dessas características decorre a necessidade de um trabalho de campo desenhado por um plano de trabalho flexível que permita uma maior aproximação entre pesquisador e as fontes de dados (pessoas, situações, lugares, contextos, documentos). Vale ressaltar que o contato prolongado oriundo da aproximação não visa a mudar o ambiente pesquisado, como também, ao pesquisador é possibilitado responder prontamente diante das circunstâncias surgidas, podendo modificar técnicas de recolha de dados, rever as questões que norteiam a pesquisa, permitindo-se analisar toda a metodologia no percurso do trabalho investigativo (VIÉGAS, 2007).

Para Erickson (1984, p.51) a etnografia deve ser considerada da seguinte forma:

(…) ethnography should be considered a deliberate inquiry process guided by a point of view, rather than a reporting process guided by a standard technique or set of techniques, or a totally intuitive process that does not involve reflection. The shape of the research techniques and instruments used in fieldwork is determined by the ethnographer’s explicit and implicit questioning process as informed by experience in the field situation and knowledge of previous anthropological research. The fieldworker generates a situation-based inquiry process, learning, through time, to ask questions of the field setting in such as way that the setting, by its answers, teaches the next situationally appropriate questions to ask. The framing of researchable questions also is influenced by the researcher’s knowledge of the literature of anthropology and sociology.

A Antropologia, a Sociologia e a Educação possuem uma relação desafiante que se apresenta como interfaces nas pesquisas no campo educacional. Na articulação da pesquisa empírica com a interpretação dos resultados encontrados, a abordagem antropológica realçada pelo relativismo e as tensões entre o contexto focado e o universal social geram um olhar antropológico na compreensão da realidade

educacional. A busca por um conhecimento de dentro, “in situ”, revela percepções, olhares, sentidos, escutas, valores, singularidades e identidades derivadas das interações sociais, que se transformam em objetos de estudo e dá forma a pesquisa etnográfica.

Para Bogdan e Biklen (1994, p.91),

(...) Normalmente, o investigador escolherá uma organização, como a escola, e irá concentrar-se num aspecto particular desta. A escolha de um determinado foco seja ele um local da escola, um grupo em particular, ou a qualquer outro aspecto, é sempre um ato artificial, uma vez que implica a fragmentação do todo onde ele está integrado. O investigador qualitativo tenta ter em consideração a relação desta parte com o todo, mas, pela necessidade de controlar a investigação, delimita a matéria de estudo.

É necessário ao pesquisador etnógrafo ter em conta que é importante a questão de saber se colocar com as pessoas participantes da pesquisa e consciente de sua posição em relação aos seus princípios, de modo que seus pré-conceitos e conceitos estejam à margem do contexto pesquisado para que seja capaz de formular novas compreensões daquela cultura observada, detalhada, analisada (LEININGER, 1995).

Para Rockwell (1986, p.50):

O etnógrafo observa e paralelamente interpreta. Seleciona do contexto o que há de significativo em relação á elaboração teórica que está realizando. Cria hipóteses, realiza uma multiplicidade de análises, reinterpreta, formula novas hipóteses. Constrói o conteúdo dos conceitos iniciais, não o pressupondo. Ao deparar-se com o aparente “caos” da realidade, que costuma provocar de imediato, juízos etnocêntricos, aprende a abandonar a formulação abstrata e demasiadamente precoce, pois é necessário “suspender o juízo” por um momento. Assim é possível construir um objeto que dê conta da organização peculiar do contexto, incluindo as categorias sociais que expressam relações entre os sujeitos. No duplo processo de observação e interpretação, abre-se a possibilidade de criar e enriquecer a teoria.

A pesquisa etnográfica em educação requer do pesquisador a adoção de determinados procedimentos metodológicos que repercutem na maneira como identifica e compreende as práticas envolvidas sob uma perspectiva pedagógica, que influenciam diretamente em tomadas de decisões, não previamente planejadas, que se tornam necessárias e significativas para fundamentar uma reflexão crítica do que se está pesquisando. Isto demanda a uma imersão liberta de pressupostos já idealizados e formatados como se fossem procedimentos engessados.

Segundo Cáceres (1998, p.347):

El oficio principia en la mirada dirigida hacia el otro, en silencio, dejando que la percepción haga su trabajo, todo tiene su lugar, todo que lo parece forma parte de un texto que se puede descifrar. El etnógrafo confía en la situación de observación, necesita confiar también en su capacidad de estar ahí observando, sabe que requiere tiempo, su tenacidad es el último resguardo de su atención. El otro está ahí, no pertenece al propio mundo, está lejos aún, a un metro de distancia. El investigador agudiza la concentración en su mundo interior para observar, y entonces inicia el viaje al mundo del otro, un trayecto que es interior, de lo observado a los paisajes y situaciones propios, y entonces se produce el milagro, el otro empieza a ser comprendido.

Temos que estar atentos para a questão de que os contextos educacionais não apresentam estruturas rígidas de interações sociais e sim estruturas complexas de manifestações socioculturais que dialeticamente se relacionam com a comunidade onde a escola está inserida e com a sociedade como um todo (ERICKSON, 1984).

Segundo Ezpeleta e Rockwell (2007, p.140),

O conceito de “vida cotidiana” delimita e, ao mesmo tempo, recupera conjuntos de atividades caracteristicamente heterogêneas empreendidas e articuladas por sujeitos individuais. As atividades observadas na escola, ou em qualquer contexto, podem ser compreendidas como “cotidianas” apenas em referência a estes sujeitos. Deste modo, elas se restringem a “pequenos mundos”, cujos horizontes definem-se diferentemente de acordo com a experiência direta e a história de vida de cada sujeito. Como categoria analítica, o cotidiano se distingue do não-cotidiano num mesmo plano da realidade concreta. O que é cotidiano para uma pessoa, nem sempre o é para outras. Num mundo de contrastes como o da escola, começa-se a distinguir assim as múltiplas realidades concretas que vários sujeitos podem identificar e viver como “escola” e a compreender que ela é objetivamente distinta de acordo com o lugar em que é vivenciada.

Em se tratando de investigar o cotidiano escolar, entendemos a escola como um espaço de heterogeneidade, onde os diversos segmentos da escola se relacionam construindo um acervo sócio-histórico-cultural que aponta ante ao desenvolvimento das relações sociais, convergências e divergências de sentidos e significados, tomando a escola como um constitutivo de diversas formas de existir em um interacionismo simbólico. O estudo etnográfico em culturas escolares permite a relativização entre o pesquisador e o sujeito pesquisado perante suas concepções de mundo e as formas de interpretar as interações sociais em contextos específicos (ANDRÉ, 2012).

Para Spradley (1987, p.20),

O elemento essencial da etnografia é esta preocupação com as acções e os acontecimentos para as pessoas que pretendemos conhecer. Alguns destes significados são expressos diretamente através da linguagem; muitos são tomados como garantidos ou implícitos e comunicados apenas indiretamente através da palavra e da ação. Mas em qualquer sociedade as pessoas fazem uso constante destes sistemas complexos de significado para organizarem o seu comportamento, para se compreenderem a si próprios e aos outros e para dar sentido ao mundo em que vivem; estes sistemas de significado constituem a sua cultura; a etnografia implica sempre uma teoria da cultura.

A escola é um campo social (BOURDIEU, 2005) onde se desenvolvem interações sociais diante de um pluralismo cultural que, através das relações de poder continuamente construídas, vai possibilitando formas e valores aos imaginários e representações sociais. O estudo etnográfico nos dá subsídios para compreender baseado na fenomenologia, os aspectos subjetivos do comportamento humano, de perceber como a comunidade escolar dá sentido aos acontecimentos e às interações sociais que ocorrem no território escolar. É a ação de olhar de dentro e de perto as construções sociais e culturais de determinado contexto.

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