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CAPÍTULO III COMPORTAMENTO SINTÁ TICO-SEMÂ NTICO DE SE

3.2 Estatuto e comportamentos de SE

3.2.1 Abordagem pronominal

A descrição sobre SE em PE remonta a tempos pretéritos. É possível encontrar reflexões nas gramáticas mais recuadas, como por exemplo, na gramática de João de Barros (1540)1, uma das primeiras gramáticas da língua portuguesa, assim como nas outras gramáticas que foram publicadas nos séculos posteriores, sobretudo no século XIX. Nestas gramáticas tradicionais, SE é normalmente analisado como uma unidade multifuncional presente em diferentes estruturas. Em seguida, apresentam-se as observações sobre SE nas duas gramáticas de referência do século XIX: Barboza (1830) e Dias (1881).

A discussão sobre a natureza de SE já começou no século XIX, apresentando Barboza (1830) as seguintes três formas de designação com valores diferentes:

i) Alguns gramáticos “chamão Pronominaes aquelles verbos, que nunca se

conjugão sem os dous pronomes da mesma pessoa”, como por exemplo,

1 Barros (1540: 19) mencionou na sua gramática a categoria de “verbos impesoáes”, que se conjugam “pelas terceiras peossas do singulár”. O autor ainda classifica os verbos impessoais em duas subcategorias: os de voz ativa e os de voz passiva. Não se encontra a descrição sistemática de SE nesta gramática primordial.

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se, queixar-se, etc. (caso que é designado hoje em dia como SE inerente);

ii) “Chamão Reciprocos aos que com os mesmos pronomes exprimem huma

acção recíproca entre duas, ou mais pessoas”, o que se realiza nos seguintes dois

modos: a) “pondo o verbo no singular, e exprimindo a segunda pessoa com a

preposição com”, como por exemplo “communica-se com João”; b) “pondo o verbo

no plural com o pronome da mesma pessoa, e ajudando-lhe, para tirar toda a equivocação, as palavras hum o outro, entre si, mutuamente”, como por exemplo

“Abraçarão-se hum ao outro”;

iii) “Chamão finalmente Reflexos, ou Reflexivos aos verbos verdadeiramente

activos, cujos agentes fazem recair sobre si mesmo, por meio dos pronomes da sua

mesma pessoa” (1830: 257-259).

Barboza (1830: 259-260) chamou à construção na qual o sujeito produz e recebe, em si mesmo, o efeito de “voz média”, para a qual os gregos tinham uma forma de terminação própria e diferente da ativa e da passiva; no entanto, nem os latinos nem os portugueses tinham alguma forma especial. Porém, os latinos e os portugueses

recorrem a “pronomes da mesma pessoa do verbo, postos antes, ou depois delle, ou

no meio”, formas que são chamadas “Reflexos”.

Segundo o mesmo autor, a voz média dos verbos em português corresponde quase exatamente à dos gregos. No entanto, a semelhança é maior do que isso, porque, em grego, a voz média serve não só para fazer refletir a ação reflexa, mas também tem sentido passivo; curiosamente em português “[…] os verbos reflexos tem igualmente esta significação passiva nas terceiras pessoas e hum ou outro numero,

quando o sujeito do verbo he hu nome de couzas inanimadas” ou bem mais raramente

“quando o sujeito he hum nome de pessoas” (Barboza, 1830: 260).

Em suma, encontra-se já na gramática de Barboza (1830) uma descrição do uso multifuncional de SE, sendo-lhe atribuídas diferentes formas de designação correspondentes aos seus valores múltiplos. Além disso, também se verifica uma distinção clara entre as funções reflexa e recíproca, embora estas funções não sejam aprofundadamente abordadas na gramática.

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SE é também tratado como um pronome por Dias (1881), que descreve o seguinte: “para exprimir que o objecto de uma acção é o mesmo que o agente, empregão-se os verbos na voz activa acompanhados dos pronomes me, te, se nas tres pessoas do singular, e nos, vos, se nas tres do plural” (1881: 49). Tal como Barboza (1830), também Dias (1881) descreveu o caso do SE inerente nos seguintes termos:

“ha alguns verbos que, ou sempre ou em certas significações, só se conjugão na fórma

de reflexos”, como por exemplo, “abastecer-se” e “lembrar-se” (1881: 50). Dias (1881)

ainda avançou na observação da multifuncionalidade de SE, que, além dos usos reflexo e inerente já referidos, ainda poderia desempenhar as outras funções seguintes (1881: 110-111):

i) SE recíproco, “a conjugação reflexa serve tambem de exprimir reciprocidade”,

como por exemplo, “Elle e ella amão-se um ao outro”;

ii) SE passivo, “a conjugação reflexa (na terceira pessoa) serve outrosim de voz

passiva, quando não se nomeia o agente” ou “quando o sujeito é ser inanimado”,

como por exemplo “desarmão-se as tendas”;

iii) SE impessoal, “aos verbos intransitivos e tambem aos transitivos tomados

intransitivamente (isto é, sem referencia a complemento objectivo algum determinado), póde-se dar, no singular, a forma reflexa empregada como voz passiva, para d´este modo deixar totalmente indeterminada a pessoa que pratica a acção ou que tem a qualidade ou estado significados pelo verbo”, como por exemplo, “O que se faz? Estuda-se.

Para resumir, Dias (1881) aperfeiçoou a pista de Barboza (1830) propondo, na sua gramática, uma descrição mais sistemática dos seguintes valores de SE: i) reflexo; ii) inerente; iii) recíproco, iv) passivo; v) impessoal; nota-se que SE impessoal não foi abordado por Barboza (1830).

Como referido por Ribeiro (2011: 17), esta linha de análise de base tradicional continua presente ao longo de todo o século XX, repercutindo-se em trabalhos de ampla divulgação e de continuado seguimento em contexto pedagógico, como por exemplo, na conhecida gramática de Cunha e Cintra (1998), que influenciou durante

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meio século e continua a influenciar o ensino de PL2 na China.

Cunha e Cintra (1998) mantém a designação “voz reflexiva” defendendo que “o

verbo vem acompanhado de um pronome oblíquo que lhe serve de objecto directo

ou, mais raramente, de objecto indirecto e representa a mesma pessoa que o sujeito”.

Também foi abordado, nesta gramática, que o verbo reflexivo poderá também marcar a reciprocidade ocorrendo nas estruturas que envolvem “uma acção mútua de dois

ou mais sujeitos” (Cunha & Cintra, 1998: 405).

Cunha e Cintra (1998: 307-308) também propõem uma descrição do multifuncionamento de SE. O pronome SE poderá assumir as seguintes funções: i) objeto direto (mais comum); ii) objeto indireto (relativamente mais raro, mas menos raro quando exprime a reciprocidade); iii) sujeito de um infinitivo; iv) pronome apassivador; v) símbolo de indeterminação do sujeito (junto à terceira pessoa do singular de verbos intransitivos, ou de verbos intransitivos tomados intransitivamente); vi) palavra expletiva (para realçar, com verbos intransitivos, a espontaneidade de uma atitude ou de um movimento do sujeito); vii) parte integrante de certos verbos que geralmente exprimem sentimento ou mudança de estado.

Sendo que o caráter multifuncional de SE se encontra descrito em todas as três gramáticas tradicionais acima referidas, apresenta-se o seguinte quadro comparativo, que nos permite chegar às seguintes duas conclusões: i) o uso decausativo de SE (cf. Ribeiro, 2011) não se apresentou em nenhuma das três gramáticas tradicionais acima expostas; ii) o uso impessoal de SE não foi mencionado por Barboza (1830), mas encontra-se uma descrição relacionada com este tópico nas gramáticas de Dias (1881) e de Cunha e Cintra (1998).

Barboza (1830) Dias (1881) Cunha e Cintra (1998)

SE Reflexo + + +

SE Recíproco + + +

Se Inerente + + +

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SE Impessoal - + +

SE Decausativo - - -

Quadro 3.1: Comparação de descrição de SE na linha tradicional