• Nenhum resultado encontrado

A abordagem de semelhança de família reconceitualizada como ponto de partida para a

1. O CAMPO DA NATUREZA DA CIÊNCIA

1.2 A abordagem de semelhança de família reconceitualizada como ponto de partida para a

Uma terceira abordagem da NdC, que também se contrapõe à proposta da VC, é aquela desenvolvida pelos filósofos da ciência Gürol Irzik e Robert Nola. Eles reconhecem que a busca de uma concordância sobre a importância de os alunos aprenderem sobre a NdC resultou na adoção da VC por muitos educadores de ciências. Entretanto, para ambos, a mesma apresenta algumas falhas e fragilidades graves. A visão consensual retrata, por exemplo, uma imagem limitada da ciência, visto que não aborda alguns de seus aspectos mais importantes, como seus objetivos ou suas regras metodológicas. Ademais, de acordo com esses autores, os itens apresentados por esta abordagem não são amplamente discutidos e carecem de uma unidade sistemática, dado que não está claro com se relacionam entre si (IRZIK; NOLA, 2011, 2014).

Não obstante, a principal crítica deles à VC refere-se à maneira como esta representa a ciência: como se fosse um empreendimento homogêneo e unificado. Para Irzik e Nola (2011), essa perspectiva é problemática, pois é cega às diferenças entre as disciplinas científicas. Conforme visto anteriormente, essa crítica sobre uma apresentação monolítica da ciência, alheia à sua complexidade disciplinar, é consoante com posição de outros filósofos e pesquisadores em ensino de ciências (e.g., DUPRÉ, 1993; HACKING, 1996; VAN DICK, 2011; HODSON; WONG, 2017).

A partir das limitações da VC e do reconhecimento da importância e necessidade de obtermos uma ferramenta que represente a diversidade das ciências, Irzik e Nola propuseram uma nova maneira de abordarmos a NdC, baseada na concepção de semelhança de família de Ludwig Wittgenstein (1958). De acordo com eles, “a idéia básica de uma definição de semelhança de família gira em torno do fato de que os membros de uma família podem se parecer uns com os outros em alguns aspectos, mas não em outros” (IRZIK; NOLA, 2011, p. 594).

Irzik e Nola ressaltam que esse conceito foi utilizado por alguns filósofos da ciência para explicar a unidade do conhecimento científico, a despeito de sua diversidade. Dupré (1993, p. 10), por exemplo, argumenta que, ao pensarmos sobre o conhecimento científico a partir da ideia de semelhança de família, podemos reconhecer que muitas características são comuns a diversas ciências, mas nenhuma delas pode ser tomada em definitivo para definir qualquer ciência.

Baseado nessa concepção, Irzik e Nola elaboraram uma nova abordagem para caracterizar a NdC no contexto da Educação em Ciências denominada Abordagem de Semelhança de Família (ASF) (em inglês, FRA: Family Resemblance Approach). Semelhantemente a outros filósofos da ciência, ambos declaram que não devemos adotar uma visão essencialista e perguntar o que as diversas disciplinas científicas têm em comum, mas investigar as formas pelas quais cada uma delas é semelhante ou distinta. Um exemplo útil que ilustra essa questão corresponde ao papel da observação. Embora esta seja comum a todas as ciências, o ato de observar não é suficiente para definir o conhecimento científico, nem tampouco para demarcá-lo de outros empreendimentos humanos (IRZIK; NOLA, 2014).

Existem várias disciplinas que podem ser chamadas de “científicas”. Consideremos, por exemplo, o caso da Astronomia, Física de Partículas, Sismologia e Biologia. O que as caracterizam como áreas da ciência? Segundo a ideia de semelhança de família, esta é simplesmente uma pergunta equivocada. O que precisamos fazer é examinar as maneiras pelas quais cada uma delas é semelhante ou diferente, elaborando um conjunto de características distintivas para cada disciplina científica. Embora algumas características sejam comuns a todas essas ciências, outras são bastante específicas a determinadas áreas da ciência (IRZIK; NOLA, 2014).

Retornemos ao exemplo da Astronomia, Física de Partículas, Sismologia e Biologia, citado anteriormente. Embora as quatro disciplinas utilizem coleta de dados, não podemos afirmar que todas elas sejam experimentais. A Astronomia e a Sismologia, por exemplo, não utilizam experimentos manipulativos em suas investigações18 sobre corpos celestes ou terremotos, uma vez que estes não podem ser manipulados. Consideremos agora o caso da realização de previsões. Mais uma vez, apesar de a Astronomia, a Física de Partículas, a Sismologia e a Biologia realizarem previsões, elas não o fazem do mesmo modo. A Astronomia é capaz de realizar previsões sobre a posição dos planetas de maneira eficaz. Contudo, a Sismologia consegue indicar a localização dos terremotos sem, entretanto, prever satisfatoriamente o tempo de sua ocorrência. A Biologia é eficiente em prever estatisticamente a ocorrência de condições funcionais ou patológicas sob determinadas circunstâncias, mas não é capaz de determinar, por exemplo, quem irá desenvolver uma determinada doença e em que momento exatamente (IRZIK; NOLA, 2014).

Ao consideramos as diferentes disciplinas científicas (e.g., Astronomia, Sismologia, Física de Partículas e Biologia) à luz do conceito de semelhança de família, podemos concluir que enquanto algumas características são compartilhadas entre si em maior ou menor extensão, outras não o são. Sob essa perspectiva, seria problemático tentar empregar esses aspectos para definir ciência, visto que nenhum deles seria capaz de abranger todas as disciplinas científicas. Se, por outro lado, buscarmos identificá-los como um conjunto de ideias relacionadas, podemos perceber que os diferentes ramos da ciência partilham um conjunto de traços que os caracterizam como pertencentes a uma mesma família (IRZIK; NOLA, 2014).

Desta perspectiva, a ASF traz contribuição importante, na medida em que se mostra capaz de considerar diversas semelhanças, cruzamentos e sobreposições entre as ciências, que

18

Esses autores reconhecem que no contexto da sismologia existem técnicas destinadas a detectar abalos sísmicos que não são exclusivamente experimentais no sentido de experimentação como manipulação. Por outro lado, eles afirmam que é impossível realizar experimentos no âmbito da astronomia (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1012). Não obstante, ao fazerem essa declaração eles perdem de vista a ideia de que também existe a possibilidade de realizarmos outros tipos de experimentos (e.g. experimentos estatísticos) no âmbito dessa disciplina científica.

lhes dão unidade suficiente a despeito de suas diferenças (IRZIK; NOLA, 2011). Quais seriam os conjuntos de aspectos centrais capazes de caracterizar as ciências em sua diversidade, segundo a ASF? Essa resposta pode ser obtida a partir da maneira como esta abordagem descreve o conhecimento e as práticas científicas.

Segundo Irzik e Nola, a ciência pode ser conceituada desde duas perspectivas distintas: desde um eixo cognitivo-epistêmico e desde um eixo social-institucional. Eles afirmam que o principal objetivo desse modo de entender as ciências é promover uma distinção “[...] analítica para alcançar clareza conceitual, não como uma separação categórica que divide uma da outra. Na prática, os dois constantemente interagem uns com os outros de inúmeras maneiras” (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1003).

Para estes autores, a empreitada científica abrange, como sistema cognitivo- epistêmico, quatro categorias: processos de investigação; objetivos e valores; métodos e regras metodológicas; e conhecimento científico. Processos de investigação envolvem todas aquelas atividades habituais para os cientistas, como realização de observações, a coleta e classificação de dados, a formulação de hipóteses, a construção de teorias e modelos etc. (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1007). Objetivos e valores referem-se a todos os objetivos assumidos na atividade científica, tais como previsão, explicação, consistência, simplicidade, viabilidade, testabilidade e adequação empírica. Os métodos e regras metodológicas visam guiar os cientistas para que a ciência atinja seus objetivos e produza conhecimento confiável. No entendimento de Irzik e Nola, raciocínio dedutivo, indutivo, abdutivo, hipotético-dedutivo e teste de hipóteses são alguns exemplos de tais métodos. Já as regras metodológicas incluem, por exemplo, a construção de hipóteses, modelos e teorias que são altamente testáveis, e a escolha de teorias com maior poder de explicação (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1004). Por fim, o conhecimento científico refere-se aos produtos finais da ciência que são obtidos com base nos processos de investigação, métodos e regras metodológicas. Esses conhecimentos “[...] são incorporados em leis, teorias e modelos, bem como coleções de relatos observacionais e dados experimentais” (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1006).

Em contrapartida, a ciência como um sistema social-institucional engloba outras quatro categorias: atividades profissionais; ethos científico; certificação social19 e divulgação do conhecimento científico; e valores sociais da ciência. As atividades profissionais correspondem a todas aquelas ações desempenhadas pelos cientistas que estão além da pesquisa científica, como reuniões acadêmicas, apresentação de suas descobertas, publicações e redação de projetos de pesquisa (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1006). O ethos científico diz respeito às normas sociais e éticas que os cientistas devem adotar em sua prática de pesquisa, definidas pelas comunidades epistêmicas das quais fazem parte, bem como no processo de interação com seus pares. Estas incluem, por exemplo, normas identificadas pelo sociólogo da ciência Robert Merton (universalismo, ceticismo organizado e desinteresse), além de outros itens da ética da ciência, como honestidade intelectual, respeito ao meio ambiente e liberdade para perseguir qualquer pesquisa (IRZIK; NOLA 2014, p. 1007-1008). Finalmente, a certificação social e a divulgação do conhecimento científico estão atreladas ao processo que antecede a publicação, ou seja, a revisão dos pares e a disseminação do conhecimento científico. De acordo com Irzik e Nola (2014, p. 1008), “este sistema funciona como um efetivo controle de qualidade social, além dos mecanismos de controle epistêmico que incluem testes, relações de evidência e considerações metodológicas”. Já a categoria “valores sociais da ciência” refere-se àqueles princípios fundamentais da prática científica, como a

19 Por “certificação social” entende-se certificação do trabalho científico pela comunidade de pares, isto é, pela comunidade científica.

liberdade na realização de pesquisas, respeito ao meio ambiente, além de atitudes que visam melhorar a saúde e a qualidade de vida das pessoas.

A breve descrição dessas oito categorias presentes na conceitualização da ciência como sistema cognitivo-epistêmico e social-institucional pode ser sumarizada na Tabela 1.

Tabela 1 - Resumo das categorias da NdC presentes na ASF

Ciência Ciência como um sistema cognitivo- epistêmico 1 2 3 4 Processos de investigação Objetivos e valores Métodos e regras metodológicas Conhecimento científico Ciência como um sistema social 5 6 7 8 Atividades

profissionais Ethos científico

Certificação social e divulgação do

conhecimento científico

Valores sociais

Fonte: Irzik e Nola (2014, p. 1009).

Irzik e Nola afirmam que as estas categorias não devem ser tomadas de uma maneira fechada, pois existe a possibilidade de adicionarmos outras em qualquer um dos eixos. Eles também argumentam as mesmas não estão isoladas; pelo contrário, “[...] estão estritamente relacionadas umas com as outras de várias maneiras, formando um todo integrado” (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1014).

Em vista disso, podemos perceber que o principal benefício desta abordagem reside na possibilidade de considerarmos características sobrepostas das diferentes disciplinas científicas, sem, contudo, generalizá-las excessivamente, como se o que valesse para uma determinada ciência também pudesse valer para todas as outras (IRZIK; NOLA, 2014). Assim, em contraste com uma visão de unificação da ciência, frequentemente perseguida a partir do modelo da física (e.g., OPPENHEIM; PUTNAM, 1958/1991), a ASF se aproxima de uma visão da desunidade da ciência, de acordo com a qual o trabalho científico envolve uma diversidade de práticas utilizadas em muitas áreas variadas e distintas de pesquisa, cada uma com diferentes objetivos, padrões de sucesso, linguagens, estruturas conceituais, métodos (e.g., DUPRÉ, 1993; GALISON; STUMP, 1996).

Essa compreensão pode ser obtida a partir das oito categorias presentes na ASF, visto que por meio destas podemos considerar as convergências e divergências existentes entre os ramos da ciência (IRZIK; NOLA, 2014). Portanto, “[...] o que une diversas disciplinas da física às geociências, da cosmologia à vida e ciências ambientais é a semelhança da família entre elas com relação às características dentro de cada categoria” (IRZIK; NOLA, 2011, p. 601). Sendo assim, estes filófosos concluem que “é a existência desses ‘laços de família’ que justificam o rótulo ‘ciência’ que aplicamos a várias disciplinas, da arqueologia à zoologia. A unidade da ciência é uma unidade dentro da diversidade” (IRZIK; NOLA, 2014, 1015).

Van Dijk (2011) argumenta que a ASF “[...] fornece um ponto de partida útil para o nosso pensamento sobre maneiras de representar a natureza desunificada da ciência para a comunicação científica”. Além disso, essa pesquisadora também entende que essa abordagem faz justiça às diferenças existentes entre as diversas disciplinas científicas.

Irzik e Nola (2014, 1014) declaram que a ASF possui virtudes téoricas e pedagógicas. Para eles, talvez a principal virtude teórica seja a possibilidade de capturar em uma perspectiva sistemática e abrangente [...] as principais características estruturais da ciência e, assim, acomodar, de uma maneira pedagogicamente útil, quase todas as descobertas da pesquisa sobre a NdC no Ensino de Ciências.

Os autores acrescentam que tanto as categorias quanto os itens da ASF não estão dispersas como na VC. Pelo contrário, eles estão intimamente relacionados entre si de várias formas, compondo, assim, um todo integrado.

Considerando como as categorias da ASF estão relacionadas entre si, estes filósofos fornecem uma descrição ampla de ciência, a fim de indicar como as inúmeras características da ciência podem ser combinadas sistematicamente:

A ciência é um sistema cognitivo e social cujas atividades investigativas têm um número de objetivos que tenta alcançar com a ajuda de suas metodologias, regras metodológicas, sistema de certificação e disseminação de conhecimento em consonância com suas normas éticas e sociais institucionais e, quando bem- sucedidas, em última análise, produz conhecimento e serve à sociedade (IRZIK; NOLA, 2011, p. 1014).

Sob o olhar da ASF, a ciência é vista de uma nova perspectiva. Por exemplo, ao incluir a instituição social como elemento dessa abordagem, podemos considerar que fatores históricos, socioeconômicos, culturais e políticos podem influenciá-la. Ocasionalmente, esses elementos podem levar os pesquisadores a se desviarem das normas éticas da ciência (e.g., suprimir dados) e, assim, gerar uma distorção na conduta científica. Contudo, também devemos considerar que alguns fatores produzem um efeito positivo na ciência. Dentre estes, podemos mencionar aqueles que estão relacionados ao ethos científico, como a revisão por pares e a discussão aberta e livre. Sendo assim, é possível afirmar que o “ethos da ciência e o sistema social de produção de conhecimento científico contribuem para a confiabilidade do conhecimento científico tanto quanto os métodos científicos e as regras metodológicas” (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1014).

Irzik e Nola (2014) oferecem algumas dicas de como ensinar a NdC a partir da ASF. Eles argumentam que é possível iniciar essa instrução pela introdução de algumas categorias da ciência e, posteriormente, mostrar como elas relacionam-se entre si. Uma potencial categoria capaz de começar essa discussão é o processo de investigação, já que os estudantes geralmente têm um conhecimento basilar sobre ela. Em seguida, o docente pode enfatizar a relação entre essa categoria e os objetivos e hipóteses (ou modelos e teorias).

No caso do ensino da ciência como um sistema social-institucional, é possível convidar os estudantes a refletirem sobre quais são as implicações geradas quando os cientistas fabricam dados ou aceitam uma teoria sem realizar uma discussão crítica suficiente. Por meio dessa conversa, podemos inserir as categorias do ethos científico e da certificação social da ciência (IRZIK; NOLA, 2014).

Esses autores ressaltam que a ASF pode ser empregada pedagogicamente no contexto escolar para ensinar os estudantes sobre a NdC, desde que estes já possuam um conhecimento basilar sobre a ciência. Ainda sobre a aplicação da ASF no contexto escolar, Irzik e Nola (2011) declaram que caberá ao professor a tarefa de abordar essas categorias conforme seus objetivos educacionais, visto que esta abordagem possibilita que ele focalize em sua aula qualquer categoria da NdC em maior detalhe.

A ASF também fornece a possibilidade do docente enfatizar as diferenças existentes entre as diversas disciplinas científicas. Além disso, ela tem o potencial de auxiliá-los a promover entre seus alunos uma ideia sobre a natureza histórica, dinâmica e mutável da ciência. Através de suas categorias, pode-se discutir, por exemplo, como a Física, Química, Eletricidade e Magnetismo ganharam uma formulação matemática somente depois da revolução científica nos séculos XVI e XVII. O mesmo pode ser dito sobre como surgiram novas regras metodológicas, diferentes formas de experimento, as normas das ciências, e assim por diante (IRZIK; NOLA, 2011, 2014).

Erduran e Dagher (2014, p. 24) afirmam que um dos principais benefícios desta abordagem é

[...] a sua capacidade de consolidar os aspectos epistêmicos, cognitivos e sociais da ciência de uma maneira saudável, flexível, descritiva, mas não prescritiva. A ASF fornece zonas de foco que apoiam a discussão de elementos críticos sobre ciência que podem potencialmente ser frutíferos para professores de ciências e estudantes. Cria um espaço muito necessário para conversas e diálogos sobre ciência de maneira abrangente.

Essas educadoras também enfatizam que a estrutura abrangente desta abordagem tem o potencial de contemplar todos os componentes individuais das propostas de outros pesquisadores, como a VC, a CdC e a CI. Por exemplo, enquanto a VC discute ideias individuais sobre a ciência – como a distinção entre teorias e leis –, a ASF as aborda em uma categoria epistêmica mais ampla, denominada “conhecimento científico”. Já em relação a CdC, somente um pequeno grupo de posições filosóficas presentes na mesma, como construtivismo, realismo e feminismo, não são desenvolvidas explicitamente pela ASF. Contudo, a ausência dessa discussão vai ao encontro dos objetivos da ASF, visto que ela assume uma posição neutra em torno dessas questões20 (ERDURAN; DAGHER, 2014).

Elas também defendem que as características da ASF têm implicações profundas para a Educação em Ciências, pois por meio desta é possível que os professores escolham quais elementos sobre a ciência são relevantes para serem discutidos no contexto escolar. Ademais, a estrutura dessa abordagem também chama a nossa atenção para quais aspectos da NdC não são trabalhados no ensino de ciências, de tal forma que podemos pensar mais eficazmente sobre qual aspecto devemos priorizar e com qual objetivo (DAGHER; ERDURAN, 2017; ERDURAN; DAGHER, 2014).

Tomando a ASF como fundamento, Erduran e Dagher (2014) a reconceitualizaram a fim de aproximá-la ainda mais da Educação em Ciências. Elas afirmam que esta reestruturação é necessária, visto que, como filósofos, Irzik e Nola (2011, 2014) apresentaram uma justificativa convincente que está relacionada apenas à estrutura da ASF, e não à sua utilização na Educação em Ciências (apesar de estes autores elaborarem argumentos específicos sobre o trabalho na sala de aula de Ciências). Em um trabalho posterior, Kaya e Erduran (2016) utilizaram a terminologia Abordagem de Semelhança de Família Reconceitualizada para a NdC (FRN) (em inglês, RFN: Reconceptualised Family

20

Essa neutralidade deve ser entendida no sentido de que a ASF não assume nenhum compromisso filosófico (e.g., realismo, positivismo, empirismo, construtivismo etc.). Sendo assim, é possível abordar qualquer vertente filosófica no contexto da ASF a partir de suas diferentes categorias. Por exemplo, um docente que assuma uma posição realista pode enfatizar que a busca da verdade é o objetivo da ciência. Por sua vez, aqueles professores que são adeptos do construtivismo podem querer se contentar com a viabilidade. Em ambos os casos, os docentes devem informar aos seus discentes que existem visões alternativas sobre esse tema (IRZIK; NOLA, 2014, p. 1015-1016).

Resemblance Approach to Nature of Science) para referir à versão reconceituada da ASF proposta por Erduran e Dagher (2014).

Kaya e Erduran argumentam que essa nova denominação visa esclarecer as diversas versões da ideia de semelhança de família, que foi proposta inicialmente por Wittgenstein (no contexto da filosofia) e aplicada posteriormente por Irzik e Nola (à filosofia da ciência) e Erduran e Dagher (à Educação em Ciências). À luz dessas diferenças, adotamos em nosso trabalho a designação sugerida por estas autoras para nos referir à proposta de Erduran e Dagher (2014).

A reconfiguração realizada por Erduran e Dagher (2014) ocorreu a partir da modificação de termos usados em algumas categorias incluídas anteriormente na ASF (IRZIK; NOLA, 2011, 2014) e do acréscimo de outras três: organizações e interações sociais, estruturas de poder político e sistemas financeiros. Dagher e Erduran (2017) afirmam que esses três elementos têm um profundo significado para o currículo de Ciências, porque impactam a maneira como o conhecimento científico é produzido e o modo como a ciência é influenciada por forças sociais e culturais.

A categoria “organizações e interações sociais” diz respeito à estrutura de trabalho na qual os cientistas estão inseridos, isto é, a hierarquia organizacional que estabelece a natureza das interações sociais entre os praticantes da ciência. Já “estruturas de poder político” abrangem as relações de poder presentes, por exemplo, nas relações entre cientistas de gêneros distintos. Por fim, a categoria “sistemas financeiros” diz respeito ao fomento da ciência pelo estado e por corporações privadas, bem como às influências sobre a prática científica decorrentes do financiamento (ERDURAN; DAGHER, 2014).

Erduran e Dagher propõem um modelo para representar a ASF reconceitualizada, a roda da ASF (FRA wheel, Figura 1), a qual estimula, segundo as autoras, a tomada de decisões sobre quais aspectos do(s) empreendimento(s) científico(s) priorizaremos na educação científica e com qual finalidade. Elas também enfatizam que as categorias dessa