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Aceitação e incorporação da teoria celular pela comunidade científica

5. PERSPECTIVA HISTÓRICA DA TEORIA CELULAR

5.8. Aceitação e incorporação da teoria celular pela comunidade científica

Embora a teoria celular de Schleiden e Schwann apresentasse alguns pontos que merecessem uma melhor consideração, após a sua elaboração, ela passou a ser aceita gradativamente pela comunidade científica da época. Por exemplo, Müller, mentor de Schleiden e Schwan, a rejeitou em um primeiro momento. Contudo, a partir da terceira edição de seu Handbuch der Physiologie, ele passou a adotá-la. Visto que Müller foi um dos principais pesquisadores de sua época nas áreas da fisiologia e anatomia animal, a inclusão desta teoria em seu livro propiciou que ela alcançasse uma ampla publicidade e atenção por parte de inúmeros pesquisadores e estudantes (DRÖSCHER, 2009, p. 3).

Em 1838, esse pesquisador também aplicou a teoria celular ao estudo do câncer em seu célebre livro Über den feinern Bau und die Formen der krankhaften Geschwülste (Sobre a estrutura fina e as formas de tumores anormais). Segundo Müller, essa doença era causada pela formação de células anômalas cancerígenas que apresentavam uma natureza química modificada e crescimento desordenado.

Posteriormente, a visão de Müller sobre a formação dos tumores cancerígenos, bem como da própria teoria celular, foi amplamente divulgada em outros países, por exemplo, na França (LOISON, 2016). De acordo com Loision, essa teoria foi introduzida primeiramente no território francês a partir do contexto específico da escola de medicina parisiense e em conjunto com o estudo de Müller sobre a natureza do câncer. Essa inserção ocorreu principalmente através dos trabalhos desenvolvidos pelos médicos Louis Mandl (1812-1881) e Hermann Lebert (1813-1878).

Em 1840, Mandl forneceu uma ampla análise sobre o trabalho de Müller, no qual incluía importantes detalhes sobre a teoria celular. Três anos depois, ele realizou uma nova revisão dessa teoria em seu Manuel d’anatomie générale (Manual Geral de Anatomia). Nesta obra, Mandl ratificou seu apoio às ideias de Müller e esboçou longos comentários sobre a teoria celular, não somente à luz dos trabalhos de Schleiden e Schwann, mas também de Henle e Valentin. No entanto, nesse tratado, Mandl adotou uma posição mais crítica sobre esta teoria, a qual ele descreveu como “vaga” e “arbitrária”. Além disso, ele se recusou a aceitar a célula como o único elemento constitutivo dos tecidos (LOISON, 2016, p. 7).

Em 1842, o médico Dominique Auguste Lereboullet (1804-1865) publicou uma tradução parcial de Mikroskopische Untersuchungen, de Schwann, no periódico francês Annales des Sciences Naturelles. Nessa mesma década, Antoine-Jacques-Louis Jourdan (1788-1848) - membro da Academia de Medicina da França - traduziu do alemão para o francês um grande número de livros concernentes à teoria celular (LOISON, 2016).

Lebert, que se notabilizou pelo estudo dos tumores e ensino de técnicas microscópicas para os médicos da escola de medicina parisiense, contribuiu significativamente para a divulgação da teoria celular na França. Todavia, na década de 1850, os representantes desta escola, como Charles-Philippe Robin (1821-1885), Aristide Verneuil (1823-1895), Paul Broca (1824-1880) e Eugène Follin (1823-1867), passaram a se opor a esta teoria (LOISON, 2016). De acordo com Loison (2016, p. 9), essa recusa pode ser entendida quando consideramos que a medicina parisiense foi profundamente influenciada pelo empirismo e positivismo, nos quais valorizava-se a exatidão da observação em detrimento dos excessos especulativos. Devido às características dessa escola, a teoria celular foi entendida como uma ideia que estava assentada em um excesso metafísico e especulativo.

Ao realizar seus estudos sobre o câncer, Lebert concluiu que essa doença estava estritamente relacionada à presença das células cancerígenas. No entanto, o mesmo não considerava a célula como um componente basilar dos seres vivos. Embora Lebert tenha considerado em seus primeiros trabalhos que as células eram formadas de acordo com o mecanismo proposto por Schwann, posteriormente ele passou a defender a ideia de que esse processo acontecia pelo processo de divisão celular, como sustentado por Remak e Virchow (LOISON, 2016).

Quem também incorporou a teoria celular em seus estudos nesse período foi o cientista alemão Henle (HARRIS, 1999). Henle foi discípulo de Müller em Berlim, onde também manteve uma estreita relação com Schleiden e Schwann. Em 1841 publicou sua principal obra, a Allgemeine Anatomie: Lehre von den Mischungs und Formbestandtheilen des menschlichen Körpers (Anatomia Geral: Doutrina da Mistura e Constituintes do Corpo humano) (HARRIS, 1999). Neste trabalho, Henle afirma:

Na maioria dos tecidos vegetais e animais são encontrados durante a vida, ou em certo período de seu desenvolvimento, diversos corpúsculos microscópicos de uma forma particular e muito característica, que geralmente são designados sob os nomes de células elementares, células primitivas, células do núcleo (cellula nucleatae). Se tratam de verdadeiras vesículas que consistem em uma membrana fina que contém um líquido, algumas vezes um pouco granulento. Em sua parede encontra-se um corpo menor, e de cor mais escura, que se chama núcleo (nucleus), denominado por Schleiden citoblasto. Este corpo apresenta em geral uma ou duas manchas, raramente mais, que têm uma forma quase regularmente arredondada, e que são chamados de nucléolos (nucleoli) ou corpúsculos do núcleo. As células estão situadas em uma substância amorfa, chamada de citoblastema por Schwann. Eles flutuam nessa substância amorfa, líquida, e aparecem como que aderidas a ela quando ela é macia ou sólida. O citoblastema, no qual as células são encontradas mais ou menos sobrepostas, desempenham o papel de substância intercelular e constitui, ao mesmo tempo, o meio de união entre as células (HENLE, 1841 apud TEULÓN, 1983, p. 106-107).

A concepção da origem das células sustentada por Henle estava inteiramente baseada nas pesquisas elaboradas por Schleiden e Schwann. Sendo assim, ele se alinha à ideia de que estas são formadas a partir do acúmulo de um elemento granulado em torno do núcleo (citoblasto), seguido pelo desenvolvimento da célula ao redor deste até que se forme uma célula contendo uma membrana, um núcleo e uma substância fluida. Por outro lado, Henle rejeita a tese de Schwann de que os núcleos necessariamente são formados a partir dos nucléolos. Todavia, ele concorda que, quando esse processo acontece, é similar ao da cristalização (TEULÓN, 1983; HARRIS, 1999). (Deve-se ressaltar que, conforme discutido anteriormente, a ideia de formação livre das células foi superada após os trabalhos de Schleiden e Schwann).

Em pouco tempo, essa teoria passou a ser relacionada a diversos campos da biologia e à medicina, devido aos estudos de Virchow sobre a patologia celular, e à histologia a partir dos trabalhos realizados por Henle e Köelliker (HUGUES, 1959; MENDELSOHN, 2003; DRÖSCHER, 2009).

Na década de 1860, Ernst Haeckel (1834-1919) estabeleceu uma relação entre a teoria celular e a evolução. Com ele, a célula passou a ser considerada não somente como uma unidade anatômica e fisiológica dos seres vivos, mas também como uma unidade evolutiva (REYNOLDS, 2018).

Nesse mesmo período, o anatomista alemão Max Schultze (1825-1874) forneceu uma nova definição para as células em um pequeno ensaio intitulado Über Muskelkörpchen und das was man eine Zelle zu nennen habe (Sobre os Corpúsculos musculares e o que se deve chamar de uma célula) (1861) (MENDELSOHN, 2003). Até essa época, a célula era definida pela sua característica mais evidente: a parede celular. Todavia, para ele, a posse dessa estrutura não seria capaz de definir o que é uma célula. Em sua nova concepção, a célula poderia ser definida como “um pequeno grão de protoplasma no qual está contido um núcleo” (SCHULTZE, 1861, p. 11 apud LIU, 2017, p. 893).