• Nenhum resultado encontrado

5. PERSPECTIVA HISTÓRICA DA TEORIA CELULAR

5.7. Primeiras reações à teoria celular

Durante o início da década de 1840, a teoria celular decorrente dos estudos de Schleiden e Schwann passou por uma importante fase de mudança, pois algumas de suas principais teses começaram a ser questionadas e rejeitadas pela comunidade científica da época (HARRIS, 1999; NICHOLSON, 2010). Dentre estas, as principais estiveram relacionadas à forma como as células se originavam. Nesse período, diversos pesquisadores passaram a argumentar que o processo de formação de novas células ocorria a partir da divisão de células pré-existentes (BAKER, 1948; MAZZARELLO, 1999; MENDELSOHN, 2003; REYNOLDS, 2018).

Tanto Schleiden quanto Schwann basicamente sustentavam que esse processo ocorria segundo uma teoria denominada “formação livre das células”, de acordo com a qual a origem das células iniciava-se com a constituição de um núcleo por cristalização da matéria granular, seguido pelo seu crescimento e pela formação de uma nova célula em seu entorno (DUSCHENEAU, 1987; MAZZARELLO, 1999; REYNOLDS, 2010, 2018). De acordo com Harris (1999, p. 102), os pesquisadores daquele período já estavam familiarizados com a ideia de que as formas biológicas poderiam emergir a partir da matéria orgânica por um processo semelhante ao da cristalização.

É importante ressaltar que o processo de divisão celular a partir de células pré- existentes já era conhecido antes de Schleiden e Schwann desenvolverem seus trabalhos. Na seção 5.5, discutimos que, durante a década de 1830, alguns pesquisadores, como Ehrenberg, Dumortier, Von Mohl e Meyen, já haviam relatado a ocorrência desse mecanismo em diversos seres vivos (BAKER, 1953; NICHOLSON, 2010). Schleiden, inclusive tinha ciência

desse processo, visto que ele citou o trabalho em que Von Mohl relatava a ocorrência da divisão das células. Todavia, Schleiden acreditava que Von Mohl havia sido enganado pela fragilidade e transparências das novas células que eram formadas a partir das células-mãe (BECHTEL, 2006, p. 72).

Quem primeiro declarou oposição à teoria da formação livre das células elaborada inicialmente por Schleiden foi o botânico austríaco Unger (Figura 20). Unger expressou seus primeiros questionamentos à proposta daquele pesquisador em 1841, por meio do seu artigo Genesis der Spiralgefässe (Gênese dos vasos espirais). A partir de observações realizadas em células de tecido vegetal, ele concluiu que as mesmas eram formadas a partir do processo de divisão, e não da maneira defendida por Schleiden. Três anos depois, ele retomou suas investigações sobre a origem das células. Novamente, Unger rearfirmou que a formação das células não ocorria segundo a proposta de Schleiden, mas a partir do processo de divisão (SACHS, 1906; HARRIS, 1999; DRÖSCHER, 2015).

Figura 20 - Franz Unger (1800-1870)

Fonte: https://pt.wikipedia.org/

Em 1846 Unger expressou novamente sua visão sobre a formação das células vegetais em seu livro Grundzüge der Anatomie und Physiologie der Pflanzen (Características Básicas da Anatomia e Fisiologia das Plantas). Aqui, ele rearfirmou que a reprodução das células, bem como a formação dos tecidos, era regida por determinadas normas. Para ele, a origem dos vegetais iniciaria-se a partir de uma única célula, “a verdadeira célula-mãe” (die eigentliche Mutterzelle). Posteriormente, essa célula se dividiria até formar duas células-filhas, que também possuíram a capacidade de se dividirem para formar novas células. Esse processo continuaria a ocorrer até a formação de um novo organismo (DRÖSCHER, 2015).

Apesar de Unger ter sustentado a tese de que células originavam-se segundo o processo de divisão, ele não rejeitou a possibilidade de existirem outras formas de multiplicação celular sob determinadas circunstâncias. Não obstante, Unger deixou claro em seus trabalhos que não havia observado em nenhuma espécie de planta outro processo além daquele descrito por ele. Por conseguinte, segundo o mesmo, a divisão celular seria o mecanismo geral pelo qual as células eram formadas (HARRIS, 1999).

Nesse mesmo período, o botânico Karl von Nägeli (1817-1891) endossou a crítica apresentada por Unger ao modelo do desenvolvimento celular proposto por Schleiden (Figura 21). É interessante ressaltar que Nägeli trabalhou com Schleiden em Jena após sua graduação (DRÖSCHER, 2015). Em 1842 ele observou o processo de formação celular na extremidade das raízes das plantas, mas não o considerou como um modo de divisão. Não obstante, alguns

anos depois, assim como Unger, ele também defendeu a tese de que as células originavam-se a partir do processo de divisão (BAKER, 1953; HARRIS, 1999).

Nägeli apresentou sua visão sobre a formação das células em dois trabalhos principais, que foram publicados em 1844 e em 1846 no periódico Zeitschrift für Wissenschaftliche Botanik. No artigo de 1844, ele afirmou ter visualizado a divisão celular em diversas plantas, como nas sementes de seda (Asclepias syriaca) e na espécie Conferva glomerata. Além disso, ele também argumentou que durante a origem de novas células, o núcleo particionava-se em dois, antes da formação da parede celular. Ao final do seu estudo, Nägeli concluiu que, com algumas exceções, as células de grande parte das plantas só multiplicam-se segundo o processo da divisão (HARRIS, 1999).

Figura 21 - Karl Wilhelm von Nägeli (1817-1891)

Fonte: https://pt.wikipedia.org/

De acordo com Nägeli, as células germinativas e dos esporos não se originariam segundo o processo observado por ele, mas a partir de outras formas especiais de formação celular. Além disso, ele também argumentava que em diversas espécies de plantas como, por exemplo, as fanerógamas, só seria possível encontrar o mecanismo de formação celular descrito por Schleiden, isto é, a formação livre das células (HARRIS, 1999).

No segundo artigo publicado em 1846, Nägeli ampliou o escopo de sua pesquisa e ratificou ainda mais sua posição sobre a origem celular. Neste trabalho, ele argumentou novamente que, com exceção das células dos órgãos vegetativos, a formação das mesmas sempre aconteceria a partir da divisão de células pré-existentes. Não obstante, Nägeli também continuou a sustentar a existência da formação livre das células durante o desenvolvimento das células reprodutivas e do endosperma (HARRIS, 1999; DRÖSCHER, 2015). Todavia, em todos os outros casos, ele concluiu que as células vegetais seriam formadas a partir da divisão da célula-mãe. Nägeli denominou esse mecanismo “formação parietal de células”, visto que todos os elementos presentes no interior da parede celular eram distribuídos pela metade durante a geração das células-filhas (HUGUES, 1959).

Os trabalhos realizados por Unger e Nägeli foram essenciais para questionar o processo de formação das células vegetais conforme sustentado por Schleiden. Em poucos anos, outros botânicos forneceram novos dados empíricos convincentes contrários ao mecanismo da origem celular proposto por Schleiden (HARRIS, 1999). Não obstante, é preciso salientar que os pesquisadores citados anteriormente consideravam que a divisão celular era somente uma das diversas formas de multiplicação das células (DRÖSCHER, 2009).

Embora a ideia sobre a origem das células proposta por Schleiden tenha recebido diversas oposições, deve-se ressaltar que o mesmo não a abandonou completamente. Ele rebateu essas críticas, principalmente durante as duas primeiras edições de sua obra Grundzüge der wissenschaftlichen Botanik (Principais Características da Botânica Científica), publicadas em 1842 e em 1845, respectivamente. Na primeira edição desse livro, Schleiden questionou as observações realizadas por Mohl, Meyen e Nägeli, segundo as quais a formação de novas células de Conferva ocorria a partir da divisão das células-mãe. Curiosamente, Schleiden chegou a admitir ter visualizado esse processo nas células do parênquima de alguns cactos. Todavia, ele continou a defender sua concepção inicial de como as células eram formadas. Entretanto, posteriormente, as constantes críticas elaboradas principalmente por Nägeli levaram o mesmo a modificar sua posição quanto à origem celular, até que ela se tornasse quase incoerente (HARRIS, 1999).

Críticas sobre a formação livre das células, conforme sustentada por Schwann, também emergiram no âmbito da zoologia, a partir de estudos relacionados ao desenvolvimento embrionário dos animais (HUGHES, 1959; DRÖSCHER, 2009; REYNOLDS, 2018). Com o advento desses trabalhos, ficou evidente que as células desses organismos multiplicavam-se segundo o mesmo processo das células vegetais, isto é, por divisão (HARRIS, 1999; MENDELSOHN, 2003).

A ocorrência desse tipo de formação celular já havia sido descrito antes de Schwann elaborar seu trabalho em 1839. Em 1824, por exemplo, J. L. Prévost (1790-1850) e J. B. Dumas (1800-1884) visualizaram a ocorrência desse processo durante a segmentação das células embrionárias do sapo (Grenouille commune) (Figura 22) (BAKER, 1953; MENDELSOHN, 2003).

Figura 22 – Fases da clivagem do embrião do sapo (Grenouille commune)

Fonte: Prévost e Dumas (1824)

Dez anos depois, Von Baer novamente descreveu esse processo nas células embrionários do sapo (Rana temporaria e Rana esculenta) (Figura 23) (BAKER, 1953; HUGHES, 1959; MAIENSCHEIN, 2016).

Figura 23 - Processo de clivagem do embrião do sapo

Fonte: Von Baer (1834)

Em 1837 Philipp Franz Balthasar von Siebold (1796-1866) mostrou que as células dos endoparasitas também eram formadas segundo esse processo. No ano seguinte, Theodor Ludwig Wilhelm von Bischoff (1807-1882) também relatou desenvolvimento semelhante nos óvulos dos mamíferos. Em 1839, baseado nos estudos realizados por Prévost e Dumas, Martin Barry (1802-1855) descreveu todo o processo de segmentação durante o desenvolvimento do óvulo do coelho. Além disso, ele concluiu que duas ou mais células originavam-se no interior de uma célula pré-existente (RUSSELL, 1916; BAKER, 1953; RADL, 1988).

Entretanto, quem primeiro defendeu a universalidade da divisão celular para as células dos animais foi Remak (Figura 24) (BAKER, 1953; DUCHESNEAU, 1987; MENDELSOHN, 2003; DRÖSCHER, 2009; NICHOLSON, 2010). A defesa desse mecanismo também propiciou que o mesmo elaborasse uma importante crítica à concepção da origem das células apresentada por Schleiden e Schwann (HARRIS, 1999; MAZZARELLO, 1999; NICHOLSON, 2010).

Figura 24 - Robert Remak (1815-1865)

Fonte: https://pt.wikipedia.org/

Assim como outros pesquisadores, Remak também foi aluno de Müller na Universidade de Berlim, onde desenvolveu diversas pesquisas sobre o desenvolvimento das células dos animais (BAKER, 1955; CHVÁTAL, 2015b; RIBATTI, 2018). Em 1841, ele

realizou suas primeiras observações sobre a multiplicação dos glóbulos vermelhos do embrião da galinha (BAKER, 1955; HUGHES, 1959; MENDELSOHN, 2003). A descrição desse processo foi publicada no jornal médico Medicinische Zeitung sob o título Über Theilung rother Blutzellen beim Embryo (Sobre a divisão de glóbulos vermelhos no embrião). Como resultado dessa constatação, ele argumentou que as novas células eram formadas por um processo de divisão celular. Posteriormente, Remak, que já era professor da Universidade de Berlim, reproduziu esse fenômeno diversas vezes para os seus alunos (HARRIS, 1999).

Quatro anos depois, Remak publicou um novo artigo no periódico Frorieps Neue Notizen, no qual relatava a formação de células musculares a partir da divisão das células- mãe. Por fim, em 1852 Remak concluiu que a única maneira como as células dos animais formavam-se era por intermédio do processo da divisão celular. Essa importante ideia foi publicada em um artigo intitulado Ueber extracellulare Entstehung thierischer Zellen und über Vermehrung derselben durch Theilung (Sobre a formação extracelular de células animais e sua multiplicação por divisão) (HARRIS, 1999; MENDELSOHN, 2003).

Nesse trabalho, Remak estabeleceu sua concepção sobre a origem das células após dedicar mais de uma década ao estudo desse tema. É válido observar que o nome desse tratado sumariza as duas principais conclusões que o mesmo alcançou em suas pesquisas: que as células dos animais não surgem a partir da formação extracelular, e que estas são formadas unicamente pela divisão de células pré-existentes (HUGHES, 1959; HARRIS, 1999).

Logo no início de Ueber extracellulare, Remak reconheceu que outros pesquisadores já haviam afirmado ter visualizado o processo de formação celular descrito por Schwann em vários tipos de tecidos:

[…] a origem extracelular das células tem encontrado aplicação muito difundida na fisiologia e patologia animal. Muitos escritos em fisiologia e anatomia patológica descrevem um citoblastema sem forma (extracelular) e um núcleo livre (extracelular) como precursores das células (REMAK, 1852, p. 48 apud MENDELSOHN, 2003, p. 14).

Depois de realizar essa constatação, esse pesquisador passa a revisar as propostas dos mecanismos de formação das células apresentadas por Schleiden e Schwan. Após rejeitá-las categoricamente, ele argumenta tê-las concebido com certa descrença desde o momento em que foram divulgados: “Desde a publicação da teoria celular, pareceu-me que a formação extracelular de células animais é tão improvável quanto a Generatio aequivoca (geração espontânea) de organismos” (REMAK, 1852, p. 49 apud RIBATTI, 2018, p. 2). Ao realizar essa afirmação, Remak comparava a formação das células conforme proposto por Schwann à teoria da geração espontânea. Portanto, de acordo com esse pesquisador, a formação livre das células descrita por Schwann seria tão improvável de acontecer quanto a geração dos seres vivos a partir da matéria inanimada (HARRIS, 1999; SAPP, 2003).

Em outra seção deste artigo, Remak declarou que suas primeiras investigações sobre a multiplicação das células sanguíneas dos embriões de aves e mamíferos surgiram devido às suas dúvidas quanto às afirmações de Schwann (HARRIS, 1999; MENDELSOHN, 2003). Ao final desse estudo, ele reafirmou a sua tese de que as células dos animais só poderiam ser formadas por uma progressiva divisão de outras células pré-existentes:

A divisão das células começa a partir do núcleo e, ao final da clivagem, o nucléolo pode ser reconhecido a partir deste último [...]. Na parte inferior branca do óvulo não lesionado, pode-se observar pelo uso de uma lente de aumento, nos últimos estágios da clivagem, como o ponto de luz que representa o núcleo se divide em dois pontos, como esses pontos se afastam um do outro, e como a célula se divide de uma

maneira que cada metade é fornecida com um ponto de luz (núcleo) [...]. Após a clivagem, as células começam a formar um embrião, separando-se em três camadas (sensorial, motora e trófica) e proliferando dentro dessas camadas através da divisão, criando assim as células que servem como base dos tecidos (REMAK, 1852, p. 54

apud RIBATTI, 2018, p. 2).

No final de seu trabalho, Remak estende a ideia sobre a formação das células que ele havia alcançado a partir dos seus estudos em embriologia aos processos patológicos dos animais (HARRIS, 1999).

Posteriormente, em 1855, Remak reafirmou sua posição quanto à origem das células animais, ao publicar seu importante livro, Untersuchungen über die Entwicklung der Wirbelthiere (Estudos Sobre o Desenvolvimento de Animais Vertebrados) (BAKER, 1953). Ao estudar o desenvolvimento dos embriões da rã e da galinha, ele foi convencido da exatidão de sua visão sobre a multiplicação das células conforme expressa em seu artigo de 1852. Sendo assim, para esse investigador, a formação celular só aconteceria a partir de células pré- existentes e segundo o mecanismo da divisão (BAKER, 1952, 1955; HARRIS, 1999; REYNOLDS, 2018).

Esse pesquisador também forneceu uma revisão de suas pesquisas experimentais, seguida de uma minuciosa abordagem da teoria celular elaborada por Schleiden e Schwann. Após apresentar essa revisão, Remak rejeitou o “esquema da formação celular de Schleiden- Schwann” (REMAK, 1855, p. 167). Nesta obra, ele também chegou a mencionar às observações da divisão celular em Conferva realizadas por Von Mohl e Nägeli, a fim de fundamentar ainda mais seus próprios argumentos. Como resultado de seus estudos, ele concluiu que as células presentes no corpo dos animais eram formadas de acordo com o processo da divisão, iniciado sempre a partir da fissão do núcleo. Sendo assim, para Remak, esse processo seria a forma padrão de multiplicação das mesmas (BAKER, 1955; HUGUES, 1959; DUSCHENAU, 1987; HARRIS, 1999).

Nessa mesma época, o patologista Rudolf Virchow (1821-1902) (Figura 25) também chegou à mesma conclusão de Remak sobre a origem celular, ao estudar os tecidos dos animais. Virchow iniciou seus estudos em medicina na Universidade de Berlim em 1839, sob a supervisão de Müller. Em 1843 ele concluiu seu curso ao apresentar sua tese de doutorado (HUGHES, 1959; DUCHESNEAU, 1987; RIBATTI, 2018). Seis anos depois, deixou Berlim para tornar-se professor de anatomia patológica na Universidade de Wuzburg. Nesta instituição, ele começou a empregar o microscópio para investigar os processos patológicos que acometiam os tecidos. A partir do resultado desses estudos, estabeleceu os fundamentos de uma nova disciplina científica, denominada patologia celular. No ano seguinte, fundou juntamente com seu amigo B. E. H. Reinhardt (1819-1852) um novo periódico, Archiv für pathologische Anatomie und Physiologie, und für klinische Medizin. Após a morte de Reinhardt em 1852, Virchow tornou-se o único editor do mesmo, mais tarde conhecido como Virchows Archiv, até a sua morte em 1902 (HUGUES, 1959; DUCHESNEAU, 1987).

Figura 25 - Rudolf Virchow (1821-1902)

Fonte: https://pt.wikipedia.org/

Em 1856 uma cadeira de anatomia patológica foi criada para Virchow na Universidade de Berlim. Após aceitar o convite, criou um Instituto de Patologia paralelo ao Instituto de Fisiologia de Müller. Ao dar prosseguimento à sua patologia celular, desenvolveu novos trabalhos, a fim de fundamentar sua nova disciplina em bases teóricas consistentes e de propiciar sua institucionalização (DUCHESNEAU, 1987).

O estabelecimento dessa nova área de pesquisa por Virchow iniciou-se com a publicação do seu célebre trabalho Die Cellularpathologie in ihrer Begründung auf physiologische und pathologische Gewebelehre (Patologia celular em sua justificativa em histologia fisiológica e patológica), no oitavo volume de Archiv, em 1855 (DUCHESNEAU, 1987). Neste artigo, ele afirmou pela primeira vez que as células somente se originavam a partir de outras pré-existentes e que sua formação ocorria através do processo de divisão. Foi nesse trabalho que Virchow também propôs seu notável e conhecido aforismo “omnis celula e cellula” (toda a célula origina-se de outra célula previamente existente) (HARRIS, 1999; NICHOLSON, 2010; RIBATTI, 2018). Não obstante, é importante destacar que a generalização de que novas células são formadas a partir de outras já havia sido proposta por Remak em 1852 (DUCHESNEAU, 1987; HARRIS, 1999).

Assim como Remak, Virchow também argumentou que, se as células não se originassem a partir da divisão das células-mãe, a formação das mesmas seria semelhante à geração espontânea. No entanto, ele rejeitava e denunciava violentamente esta última teoria, chegando, inclusive, a afirmar que ela era “pura heresia ou a obra do diabo” (VIRCHOW, 1855, p. 23 apud BAKER, 1952, p. 436).

Virchow também foi um dos principais responsáveis por transformar a célula na sede dos processos patológicos dos seres vivos (MAZZARELLO, 1999; REYNOLDS, 2008). Até o final do século XVIII, a explicação de doenças nos seres vivos era feita à luz da patologia humoral, a qual afirmava que o estado de saúde e doença dos organismos dependeria da proporção exata de quatro humores: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra. Em vista disso, toda patologia seria o resultado da alteração desses elementos. Posteriormente, em 1761, o anatomista italiano Giovanni Battista Morgagni (1682-1771) mostrou que as doenças não ocorriam devido à alteração destes humores, mas por causa de lesões nos órgãos (PORTER, 2006). Por fim, em 1800, Bichat indicou, em seu Traité des Membranes en Général et de Diverses Membranes en Particulier (Um tratado sobre as membranas em geral, e de diferentes membranas em particular), que a formação das doenças não estava relacionada

com os órgãos, mas com os tecidos dos mesmos (DUCHESNEAU, 1987; ANDROUTSOS; DIAMANTIS; VLADIMIROS, 2007; TU, 2010).

No entanto, após os trabalhos de Virchow essa concepção começou a mudar, pois segundo ele, a célula seria a unidade fundamental para a fisiologia e patologia, e a única explicação da doença do organismo (BRACEGIRDLE, 1977; ANDROUTSOS, 2004; ANDROUTSOS; DIAMANTIS; VLADIMIROS, 2007). Essa visão foi ilustrada por meio da explanação de sua teoria da inflamação. Em primeiro lugar, uma ação exógena, isto é, um estímulo patogênico, geraria uma reação na célula, provocando uma irritabilidade específica. Após essa ação, ocorreria uma modificação em sua composição interna, bem como em sua forma que, por sua vez, desencadearia uma mudança na capacidade nutritiva, regenerativa e funcional da célula. Por fim, a disposição patogênica seria continuamente acrescida pela reprodução das células por divisão celular (DUCHESNEAU, 1987, p. 294-295).

Em 1858 Virchow divulgou amplamente suas pesquisas sobre a patologia celular em uma série de 20 palestras para estudantes de pós-graduação da Universidade de Berlim (NICHOLSON, 2010). Nesse mesmo ano, elas deram origem à primeira edição de seu famoso livro Die Cellularpathologie (A Patologia Celular). Após alcançar um rápido sucesso, o mesmo foi publicado em outras duas edições, em 1859 e 1862, e traduzido para outras línguas europeias, como a inglesa em 1860 (HUGHES, 1959; HARRIS, 1999).

Na primeira edição desta obra Virchow realizou a seguinte afirmação:

Cada doença se origina das alterações que afetam um número menor ou maior de unidades celulares dentro do organismo vivo; todo distúrbio patológico, todo efeito terapêutico só pode, em última análise, ter sido interpretado, quando é possível dizer qual grupo particular de elementos celulares vivos está envolvido e que tipo de alterações cada elemento desse grupo sofreu. A longa busca pela essência da doença é a célula alterada (VIRCHOW, 1858 apud RIBATTI, 2018, p. 3).

Portanto, com o advento dos seus estudos, a explicação para as doenças dos organismos passou a ser baseada em alterações de suas células (MAZZARELLO, 1999; NICHOLSON, 2010). Os trabalhos de Virchow também contribuíram para aplicar a teoria celular ao campo da medicina (HUGHES, 1959). Além disso, o mesmo contribuiu para estabelecê-la como o fundamento de uma nova conceitualização da própria patologia. De acordo com Dröscher (2009, p. 3), a base dessa perspectiva “[...] foi a redução e localização das causas das doenças humanas em seu assento atual, a célula e, assim, a promoção da anatomia microscópica como um instrumento indispensável para qualquer exame médico”.

Na segunda edição de Die Cellularpathologie, Virchow ratificou sua visão sobre a formação das células:

Assim como nós não pensamos mais que uma lombriga se origina de muco mucoso, ou que um infusório, um fungo ou uma alga se forma a partir dos restos em decomposição de um animal ou planta, também nós não admitimos em histologia fisiológica ou patológica que uma nova célula pode se construir a partir de uma substância não celular. Onde quer que uma célula se origine, naquele lugar deve ter