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4. Resultados e Discussão

4.2. Sobre os CnaR

4.2.5. Abordagem

Perguntei aos profissionais como acontecia a abordagem aos usuários e como eram os desdobramentos disso para a prática dos CnaR. O que pude encontrar foi algo simples e voltado para o contato humano, pois, para alguns entrevistados, não existe técnica para saber como chegar e falar com outro ser humano, e, sim, o respeito ao próximo como forma de aproximação. Esse caráter pode ser lido na resposta de C02, quando questionado sobre o assunto:

É normal. Muitas vezes até o pessoal me pergunta "Como é que você chega perto dessas pessoas?", "Rapaz, é como eu chego perto de você!" Não tem segredo, cara, não tem! É porque essas pessoas pensam que essas pessoas são extraterrestres, não sei o quê. Mas eles não são, são pessoas normais iguais a mim e a você. É só chegar lá "Bom dia", "Boa tarde", tratar bem. Uma hora ou outra você vai ver uma pessoa mais rude com você porque, como a gente é poder público, e muitas vezes a única forma de poder público que chega perto deles é a polícia, então eles querem esculachar, né? Então, o poder público, é a gente. Então, a gente ouve, escuta, tenta conversar. Trata bem todo mundo, como trataria um amigo, uma pessoa normal. A mesma abordagem. Não tem fórmula mágica. Nem macete. É tratar normal. (C02).

Vale também ressaltar na fala citada o lugar do poder público que estes profissionais representam, em que muitas vezes o profissional precisa fazer o exercício de saber o porquê de eles não serem tão bem recebidos todas às vezes. Isso implica em não achar que eles têm

que ser sempre bem recebidos porque eles estão prestando um serviço a essa população. Assim, acabariam por ignorar a personalização do Estado na figura do profissional.

Outro fator que este profissional relatou é que, muitas vezes, a única forma que a população em situação de rua tem de relação com o poder público é por meio da violência, verbal ou física. Então, essa forma de abordagem mais desprendida parece estranha aos ouvidos do senso comum, que coloca a população em situação de rua como inferiorizados e estigmatizados, como “extraterrestres”.

Como visto em outras pesquisas (Coelho, Jorge, & Araújo, 2009; Falk, Falk, Oliveira, & Motta, 2010; Franco, Bueno, & Merhy, 1999; Gomes & Pinheiro, 2005; Mitre, Andrade, & Cotta, 2012; Schimith & Lima, 2004), o acolhimento é uma ferramenta importante para proporcionar saúde e que deve ser usada em todos os serviços. Por isso, Coelho, Jorge e Araújo (2009) afirmam que “tal prática convida o repensar ético-político do cotidiano, fortalecendo o uso do diálogo como forma de apoiar e estimular a criatividade e a singularidade presentes no cotidiano” (p. 441).

Vale a ressalva que C04 fez sobre o lugar do profissional com relação ao vínculo e à abordagem tomada pelas equipes e o posicionamento de outros profissionais dos serviços da rede pública sobre a população em situação de rua:

Não é adular o sujeito, mas é tentar entender e saber o que é possível fazer para ele. É possível mantê-lo, saber que ele precisa, de que forma. Eu acho que não foi... E há um medo... Destas pessoas. Há um medo que elas vão... A polícia no local, que ela vai quebrar o local, e, principalmente, que ela vai surtar a qualquer momento, e pode agredir os profissionais e fazer todo o resto. Há um medo. Eu acho que há um medo. (C04).

Dessa maneira, a população em situação de rua sofre uma desassistência por parte do Estado que se reflete no acolhimento, não só realizado pelo CnaR, mas também pelos outros serviços públicos. Isso se refletiu na fala de C02 quando questionado sobre o número alto de

abstenções por parte da população em situação de rua nas consultas médicas marcadas pelo CnaR:

Muitos não querem vir também, porque... Continua aquele debate, né... Uns não querem vir porque não querem ser maltratados, né? Que uma vez foram, não foram bem recebidos. Eu digo isso muito ao pessoal, tudo depende sabe de quê? Do acolhimento. Se você acolhe bem aquela pessoa, com certeza, quando ele sentir dor de novo, ele vai querer voltar pra aquele lugar porque ele foi bem acolhido. (C02).

A escuta, como ferramenta para uma boa abordagem, é vista na maioria das falas dos entrevistados e nos diários de campo. Assim, a melhor forma de uma abordagem é estar aberto a dialogar e escutar o outro, para que a confiança naquele profissional se estabeleça e vá além de uma demanda pontual.

A partir disso, outro aspecto que foi mencionado como essencial para a relação estabelecida com a população em situação de rua e para a atuação profissional foi a construção dos vínculos. É possível definir o vínculo como relação estabelecida entre profissional e usuário, que tem como finalidade promover a autonomia para os sujeitos, tanto profissionais quanto pacientes, em relação à saúde (Schimith & Lima, 2004). Ademais, o vínculo representa muito mais para essa população, que é tantas vezes escanteada pela sociedade.

Então, antes de qualquer ação por parte deles, é conversado sobre qual a melhor maneira de ser realizada aquela atividade ou abordagem, para não ser quebrado o vínculo. Portanto, o acolhimento, o vínculo e a escuta são fatores primordiais para a superação da desassistência que os serviços de saúde possuem com relação a esta população:

Nós temos também uma grande coisa no nosso trabalho, que é o vínculo. Uma população onde... Eles são desconfiados de tudo e de todos, pelo seu próprio histórico, a gente tem um grande vínculo, a gente... Este vínculo, ele é criado, ele é construído, então a gente tem muito cuidado para ele não ser quebrado. Quando a gente encontra pessoas em situação de tá devendo a justiça, como a gente encontra criança, a gente tem todo um manejo para que este vínculo, que aquela pessoa confie em nós, que esta

criança não vai ser tirada dela naquele momento por nós, mas que ela também não está certa. Ela não está certa, e ela deve procurar outros caminhos para que esta criança não seja retirada dela. Agora, dizer isto de uma forma que ela não... Passe a esconder da gente, para que não seja quebrado o vínculo. É bastante delicado, este momento. Quebrar o vínculo. (C06).

Dessa forma, como a atuação das equipes CnaR é in loco, existe uma semelhança com as equipes da ESF ou agentes comunitários de saúde no que diz respeito à forma de aproximação e de vínculo, que é bem diferente de outros profissionais da saúde. Por outro lado, o trabalho diferenciado, tanto na forma de abordagem, no horário de atuação, na itinerância da equipe, quanto no público que atendem, faz com que haja na fala de outros profissionais da rede um estigma, como já foi referido anteriormente. Isso foi abordado na fala de C04:

As pessoas perguntam muito para gente, isoladamente, para um profissional e tal, muitos profissionais contaram para gente, nos momentos internos, e às vezes, o grupo, quando o grupo se apresenta, "Mas vocês vão com a polícia, né?", "Não é perigoso, não?" e o último comentário, "Ai... que bonitinho!”.

Assim, se evidencia um obstáculo à realização da atenção à saúde da população em situação de rua, uma vez que os profissionais de saúde que deveriam fazer o sequenciamento do acompanhamento e a inclusão dessa população na rede têm, muitas vezes, essa visão que pode inviabilizar o desenvolvimento efetivo das ações.

Outra questão diz respeito à abordagem com pessoas que estão fazendo uso ou sob o efeito de alguma substância. Alguns questionamentos que surgem, principalmente em campo, puderam ser acompanhados junto à equipe: qual a melhor hora para se aproximar? Aquela pessoa está mais agressiva, até que ponto vale a pena se aproximar? Será que ele quer a presença da equipe?

Um caso de acompanhamento foi o de José.8 Tanto no primeiro dia, quanto no último dia em campo, José encontrava-se sob efeito de cola de sapateiro. Nos dois momentos ele mostrou, fazendo uso da mesma substância, comportamentos distintos. No primeiro dia, José se apresentou extremamente assustado, introspectivo e demonstrava não querer a aproximação da equipe, porém questionou a equipe se eles iriam se aproximar, perguntando se estavam com medo. Já no último dia, José estava eufórico e extrovertido, conversava com a equipe de forma animada. Nesse caso vemos, pela descrição, que momentos e formas diferentes de uma determinada substância no organismo e como o sujeito está se sentindo naquele contexto podem mudar radicalmente. Isso reflete nas práticas do CnaR, a depender do vínculo estabelecido, podendo existir, ou não, a aproximação dos profissionais.

Isso é importante quando se busca compreender e adotar o modelo de redução de danos, um dos pilares da prática do CnaR, não somente como uma técnica de reduzir um dano à saúde, mas como uma concepção ampliada de ser humano, muito além dos preceitos do modelo de abstinência. Podemos observar isso nas falas a seguir:

Aquele momento de... Aquele uso de substância coletiva, onde eles estão fazendo e a gente, em nenhum momento, a gente foi e reprimiu aquilo. Foi fazer um discurso moral, não, né? Estamos invadindo a praia dele. (C06).

Foi assim... Eu percebo que, muitas vezes, uma palavra da gente já, pelo menos, motiva. Entendeu? Ou acolhe, sei lá. Talvez não tenha nenhum resultado palpável, como teve esse, que a gente possa contar, mas eu vejo que só a atenção que a gente dá a eles... Têm muitos deles que dizem assim "ah! Eu duvido que venha aqui e converse com a gente, eu nunca tinha visto isso.” Já teve de gente dizer isso. E tira da invisibilidade deles, porque eles se sentem invisíveis. (C15).

A postura vista pelas outras equipes é coerente com a da experiência relatada no diário de campo. Os profissionais se reúnem, avaliam o campo e decidem em conjunto se devem, ou não, fazer a abordagem/aproximação naquele momento, como pode ser visto na fala de C01:

“E aí, a gente visita ele, mesmo totalmente alcoolizado, conversa, faz acordos, e... Com ele, mesmo que a gente pense que ele não tá lembrando, né?”. Outros aspectos também são ponderados: se já existe vínculo estabelecido com o usuário, se a região é uma rota normal ou não e quanto tempo a equipe irá ficar no local. E nos relatos dos profissionais essa aproximação, mesmo quando a pessoa está fazendo uso ou sob efeito de substância, parece proveitosa. Entretanto, a atenção a esses cuidados é de extrema importância e requerem uma sensibilidade do profissional, já que determinadas posturas podem ser interpretadas pela população como uma expressão de preconceito. Entender essas limitações faz parte da rotina do CnaR.

Ainda assim, mesmo que se preze por uma aproximação respeitosa e livre de preconceitos, há um conjunto de cuidados tomados pelas equipes para a abordagem que concernem à biossegurança e à própria segurança pessoal. Uma postura de segurança adotada pelas equipes é a ação em conjunto. Isso pode ser exemplificado pela fala abaixo:

A gente procura tomar alguns cuidados. Por exemplo, estar sempre em dupla e estar sempre um pouco esperto (...) Então, a gente, e tem alguns lugares que a gente vai que são um pouco mais complicados do que outros. Então, vamos ficar esperta, né? (...) Se tá acontecendo alguma coisa e tal. Então, de não ficar de costas, também para eles, de procurar ficar mais de frente e tal. Então, estes cuidados assim. (C12).

Há algumas estratégias de busca que precedem a abordagem. Além de pensar como abordar, deve-se pensar, anteriormente, sobre onde e qual o melhor horário .Isso depende de um entendimento mais profundo das características do campo.

Um posicionamento bem interessante adotado pelas equipes é a escolha do profissional que irá acompanhar o caso: quem acompanha é quem possui mais vínculo, e não pela especialidade, ou nível médio ou superior. Todos são responsáveis pelos casos atendidos pelo CnaR. Porém, no caso de consultas em que uma das pessoas em situação de rua solicite à equipe que a acompanhe, vai o profissional que tem mais afinidade com aquela pessoa.

Em suma, ir para campo, desde a aproximação/abordagem até a criação de um vínculo, requer dos profissionais uma leitura do contexto que supere algumas superficialidades e noções do senso comum, como, por exemplo, ter uma postura sem preconceitos e sem julgamentos. Isso demanda uma capacitação/formação que vai além de uma formação tecnicista, exigindo uma visão mais humanizada do contexto de trabalho e da população em situação de rua. Ainda assim, é importante destacar que essas são características que os profissionais relatam aprender durante a própria experiência profissional e não em formação anterior. Mesmo assim, é um conjunto de conhecimentos que consideram imprescindíveis para conseguirem atingir os objetivos da atuação.