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Movimento da População em Situação de Rua e a constituição da Política Nacional

1. População em situação de rua e políticas públicas

1.2. Movimento da População em Situação de Rua e a constituição da Política Nacional

O propósito deste tópico é contextualizar a formação do Movimento Nacional da População em situação de rua (MNPR) e a constituição da Política Nacional para a Inclusão Social da População em Situação de Rua (PNPSR), para, então, fazer uma aproximação das atuais proposições de atuação para com esta população. Nessa perspectiva, forneço subsídios para um recorte do contexto para as políticas de saúde para população em situação de rua, mais especificamente o Consultório na Rua (CnaR), temas que serão tratados no próximo capítulo.

Frente à conjuntura do fenômeno população em situação de rua exposta acima, percebe-se como o Estado possui uma relação perversa para com esta população. O que temos no caso brasileiro é um histórico de ações que mostram “o papel de um Estado violador, que validava ações de cunho criminalizatório e repressivo pelos seus agentes” (Almeida et al., 2014, p. 158). As ações voltadas para essa população sempre foram postas dentro da esfera policialesca, que reverbera em ações de criminalização e repressão, ou assistencialista e moralista, por parte do terceiro setor, consequentemente levando à omissão do Estado para efetivações de políticas públicas (Ferro, 2012).

Como exemplo de ações referentes à criminalização e repressão a este segmento populacional, vale destacar o Decreto-Lei nº 3.688 de 1941, a Lei de Contravenções Penais, que tinha como orientação jurídica a punição para aqueles que eram “vagabundos” ou “mendigos”. A punição para mendicância vigorou até pouco tempo, em 2009, entretanto a vadiagem como critério penal e que dá margem para a discricionariedade da interpretação da lei continua em vigor, mesmo que efemeramente utilizada (Ferro, 2011).

Outro exemplo da postura do Estado tem ligação com a transferência de responsabilidade para o terceiro setor nas ações para com a população em situação de rua. Vale ressaltar que até a década de 1990, ações voltadas para esta população eram prioritariamente de responsabilidade de grupos ligados a instituições religiosas, como as pastorais da Igreja Católica, que muitas vezes se limitavam às práticas pontuais e assistencialistas, como, por exemplo, mutirões de sopa e cobertores (Almeida, 2015; Candido, 2006; Rosa, 1995; Silva, 2006).

Visto desse modo, só haverá políticas sociais para este segmento a partir da década de 1990. Em plena efervescência dos planos econômicos neoliberais, alguns governos municipais trouxeram como pauta a criação de políticas públicas para a população em situação de rua, destacando-se os governos municipais de São Paulo e Belo Horizonte (Almeida, 2015; Ferro, 2012; Tiene, 2004). Tais políticas municipais surgem como forma de enfrentamento à problemática, no contexto do aumento do desemprego e da precarização do mundo do trabalho, a partir das reformas empreendidas no Brasil, especialmente na década de 1990 (Almeida, 2015; Silva, 2006). Ainda assim, essas políticas se deram de forma pontual, embrionária e ainda mantinham um caráter higienista e assistencialista, geridas pelo terceiro setor.

Nessa perspectiva, Ferro (2012) afirma que “a ausência de políticas sociais é também uma política” (p. 36). A negligência do Estado como forma de se posicionar frente à existência da população em situação de rua é uma legitimação dessa condição como parte componente da ordem neoliberal. Assim, é a precariedade da vida dessa população, decorrente de tal contexto e suas consequências mais lastimáveis, que desembocam nos movimentos sociais de enfrentamento e de reivindicação por direitos.

Vale ressaltar que, mesmo com seu caráter assistencialista, foi por meio do espaço das pastorais – por exemplo, a Pastoral do Povo da Rua, criada em 1970, pela Igreja Católica –

que pôde ocorrer a organização do MNPR. Foi por meio desse espaço que começaram a surgir fóruns de pessoas em situação de rua. Outro elemento importante para a formação do MNPR foi que esse processo de organização política começou com os catadores de matérias recicláveis. A partir das associações e cooperativas em que se organizavam esses trabalhadores, surgem o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e eventos como a “marcha a Brasília”, em 2001, que buscavam dar visibilidade às condições de trabalho e de sobrevivência dessas pessoas (Almeida, 2011; Almeida, 2015; Silva, 2006).

Ainda assim, o marco temporal da formação e consolidação do MNPR foi 2004, na cidade de São Paulo, onde ocorreu a chacina da Praça da Sé, ocasião em que sete pessoas em situação de rua foram assassinadas brutalmente pela polícia. Em decorrência deste e de outros acontecimentos semelhantes no mesmo período, grupos da população em situação de rua em São Paulo e Belo Horizonte começaram a se mobilizar e constituir o que viria a ser o MNPR. Em 2005, a mobilização de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia efetivou-se como Movimento Social (Ferro, 2012).

É importante destacar que a formação como Movimento Social traz para a população em situação de rua uma base para a organização de pautas e lutas para o acesso e a conquista de direitos. A articulação do movimento faz com que essa população se coloque em lugares políticos estratégicos, ao contrário da fragmentação histórica desse grupo. Segundo Almeida et al. (2014), “a história nos mostra que somente com a organização e mobilização da classe trabalhadora em diversos espaços de organização de base é que foi possível a reivindicação na luta pela consolidação de direitos” (p. 159).

Destarte, a luta na busca de direitos trouxe visibilidade para o Movimento na esfera federal. Assim, a partir de 2005, criou-se um Grupo de Trabalho Interministerial, com o objetivo de elaborar estudos e políticas públicas para esse segmento populacional, encabeçado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e composto pelos

ministérios das Cidades, da Educação, da Cultura, da Saúde, do Trabalho e Emprego e da Justiça, bem como pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e Defensoria Pública da União, pelo MNPR, a Pastoral do Povo da Rua e o Colegiado Nacional dos Gestores Municipais da Assistência Social (CONGEMAS). Ademais, verifica-se um ganho substancial para a criação de políticas sociais que estejam integradas à rede de serviços públicos, afastando-se do foco assistencialista e ampliando o leque de áreas comprometidas com essa população (Lima, 2014).

Além dos debates do Grupo Interministerial, a PNPSR foi construída com base nos dados do censo realizado nos anos 2007 e 2008, publicado em 2008, que foi realizado por uma empresa particular, encomendado pelo MDS. Essa pesquisa de caráter censitário teve abrangência nacional, com exceção de algumas cidades que já haviam realizado um levantamento da população em situação de rua, como Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Porto Alegre.

Como consequência do trabalho de quatro anos, em 2009 foi publicado o decreto nº 7.053, que institui a PNPSR. Uma conquista para o MNPR, já que esteve presente no processo de elaboração, juntamente com outros setores da sociedade civil, bem como representantes governamentais. Quando se reflete sobre os princípios, as diretrizes e os objetivos desse decreto, percebe-se a tentativa de não mais reafirmar a exclusão dessa população de direitos sociais básicos para a sobrevivência. Por exemplo, o decreto prevê como princípios: a igualdade, equidade, respeito à dignidade da pessoa humana, direito à convivência familiar e comunitária, valorização e respeito à vida e à cidadania dessas pessoas, além de atendimento humanizado e universalizado.

A PNPSR propõe, também, ações estratégicas e formas concretas de pôr em prática os princípios e diretrizes em todas as dimensões de atuação, como direitos humanos, trabalho e emprego, desenvolvimento urbano/habitação, assistência social, educação, segurança

alimentar e nutricional, cultural, e saúde. É importante ressaltar, também, a ênfase no território como característica norteadora da política. Como discuti no tópico anterior, a urbanidade é uma característica fundamental da população em situação de rua, o que implica outras especificidades que dependem das particularidades da cidade e de suas regiões (Lima, 2014).

Em análise da PNPSR, percebe-se uma tentativa progressista de apaziguar uma dívida histórica do Estado com a população em situação de rua. Entretanto, o que se vê na realidade dos serviços que fomentam tais políticas é a reprodução de uma lógica assistencialista e centralizada, num conjunto de ações que se dão isoladas, o que acaba por não enfrentar as condições de reprodução do próprio fenômeno. Assim, como também discuti anteriormente, as formas de atuação do Estado servem à ordem do capital (Almeida et al., 2014).

Por outro lado, é possível também evidenciar avanços a partir da PNPSR. Em Natal/RN, alvo deste estudo, o MNPR possui inserção no Conselho de Saúde, com representação nos três níveis de governo: município, estado e união, assim, participando da elaboração e controle social das ações em saúde. Além disso, existem equipamentos específicos para o atendimento à população em situação de rua, como os Centros de Referência em Assistência Social Especializados para a População em Situação de Rua (Centro POP), nos municípios de Natal e Parnamirim, e o Albergue Municipal de Natal (Almeida et al., 2014). Ainda, em Natal, há o Consultório na Rua (CnaR), equipamento da atenção básica, objeto desta pesquisa, que será tratado mais a fundo no presente trabalho.

Entretanto, a atenção dada a essa população é ainda limitada tanto no que diz respeito à garantia de direitos por meio das políticas sociais, quanto na produção de informações sobre os mesmos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, só veio a realizar um censo sobre a população em situação de rua em 2013, porém de cunho

experimental, no Rio de Janeiro (Lima, 2014). Esse foi o primeiro censo realizado por um órgão público acerca da população em situação de rua.

Quanto ao acesso aos direitos, permanecem as dificuldades referentes às especificidades desse segmento, como ausência de moradia, de documento de identificação, em alguns casos, e de vínculos formais de trabalho, do acesso à saúde e à educação, de segurança. Essa realidade, na cidade do Natal/RN, fica evidente a partir das pesquisas de Almeida et al. (2014), Almeida (2015), Bezerra (2014), Lima (2014) e Silva (2015), além dos projetos oriundos do núcleo Gentileza/CRDH.3

Por fim, é possível concluir neste capítulo que, como expressão radical da questão social, a população em situação de rua contempla um conjunto de características que representam as condições mais nefastas da reprodução capitalista. Assim, isso implica todo um conjunto de necessidades de políticas sociais multidimensionais. No entanto, essas políticas, além de não irem de encontro à estrutura de reprodução de tais características, muitas vezes fomentam a manutenção de estigmas e são sujeitas aos delineamentos das ações do Estado dentro da ordem neoliberal, que lhes delega um projeto mínimo e compensatório. Por essas características, temos o MNPR como um exemplo de que as conquistas de direitos são ainda incipientes e dependem da articulação, das mobilizações e das lutas no campo social.

3O núcleo Gentileza, criado em 2012 pelo Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) do município de

Natal/RN, estruturou-se para atender e promover ações voltadas para a população em situação de rua, como caráter político de articulação na rede intersetorial e assessoria ao MNPR, além de desenvolver ações de pesquisa e extensão ligadas à UFRN.