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4. Resultados e Discussão

4.1. Quem são as pessoas que o CnaR atende?

4.1.2. Demandas que chegam aos CnaR

A partir de uma maior compreensão do perfil da população em situação de rua em Natal e das especificidades de cada campo, é possível abordar as problemáticas com as quais as equipes do CnaR trabalham. De certa forma, perfil e demandas são conectados, seja pelo modo de vida dessa população, seja pela ausência de acesso a alguns direitos básicos.

Algumas questões foram listadas pelos profissionais como principais demandas que o CnaR atende. A primeira delas é o cartão SUS. O cartão SUS é um documento de identificação, que visa facilitar o acesso aos procedimentos na rede de saúde.4Vale ressaltar que ter ou não tal documento não impede ninguém de ser atendido no SUS. Todavia, esse cartão acaba sendo, muitas vezes, o único documento de identificação que a população em situação de rua porta.

Outra demanda bastante citada foram os exames e as consultas para as mais diversas especialidades, mas, principalmente, para o clínico geral. Isso acontece por duas razões: primeiro, pelo fluxo de atendimento da rede básica, que necessita passar pelo clínico geral da

4 Mais informações sobre o cartão SUS disponíveis no site http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-

UBS, e, segundo, pelo fato de a população em situação de rua não saber exatamente de qual especialidade buscar atendimento.

Os profissionais relataram que as faltas nas consultas agendadas ficavam em torno de 75% e que essa situação estava gerando certo desconforto com os reguladores. Essa demanda pelas consultas e o alto número de faltas podem parecer paradoxais à primeira vista. Evidencia que ainda há um desconhecimento das políticas públicas sobre a realidade da população em situação de rua e, por consequência, desconhecimento acerca das relações estabelecidas por esse público com a própria saúde.

Devido a esse fato, durante o acompanhamento da equipe CnaR, alguns questionamentos surgiram entres os profissionais, que me fizeram a seguinte pergunta: o que é saúde para população em situação de rua? O questionamento veio em meio a várias conversas com a equipe e, segundo eles, tem impacto sobre a forma de atuação. Desse modo, ainda que a presente pesquisa esteja focada nos profissionais e isso imponha uma limitação em responder a essa problemática, é possível extrair algumas pistas que deixam elementos para futuras pesquisas e discussões. Pode-se ver, na fala abaixo, alguns deles:

A concepção de saúde deles, assim, alguns, eles não entendem muito da promoção do autocuidado. Eles entendem de ter que vir aqui, o médico tem que receitar e... Eu acho que ainda é um pouco da visão curativista, que é... Muitos só procuram quando tão com dor, tão com não sei o quê. Agora, é muito complexo, porque essas pessoas nunca procuraram antes, porque eles nunca tiveram acesso. (C02).

Na fala é possível ver a o histórico de desassistência e o fato de não existir vínculo com as instituições de saúde. Além disso, há relatos de que os usuários muitas vezes preferem não ir a uma UBS, por acreditarem que não serão bem recebidos e que não haverá acolhimento sem a presença de algum dos membro das equipes do CnaR, como já ocorreu inúmeras vezes.

Também é importante refletir que a ideia de saúde parece estar ligada à emergência e isso pode estar relacionado com as histórias de vida e de relação com a saúde. A condição de rua pode levar, muitas vezes, a não pensar a saúde como algo que se estabelece em longo prazo a partir da prevenção, até pelo conjunto de incertezas que tal condição traz. Ademais, o cotidiano de sobrevivência pode levar a tratar alguns processos de adoecimento como “normais”, levando-os a buscar intervenção apenas quando o quadro está bastante agravado. Igualmente, esse cotidiano demanda uma jornada intensa de trabalho, e a perda de um turno de trabalho para ir ao médico pode ser uma perda de renda significativa.

Outra demanda apontada pelos profissionais diz respeito a um conjunto de doenças ou procedimentos que mais comumente são levadas como demandas de saúde pelos usuários. Esses elementos foram condensados em uma demanda chamada “questões clínicas”.

Uma das questões que aparece é o estágio avançado de determinadas doenças. Em alguns casos, quando a equipe entra em contato com o usuário, o estágio da doença encontra- se tão avançado que necessita de uma articulação na rede maior do que o atendimento somente na rede de atenção básica, ou necessita de cuidados básicos que a condição de estar na rua não favorece, como higiene pessoal ou alimentação saudável em horários regulares.

Nesse sentido, destacam como demandas algumas doenças gastrointestinais, como gastrite e dores abdominais, e doenças cardiovasculares, como hipertensão ou doenças cardíacas, que podem ser relacionadas ao tipo de alimentação que é oferecida: “é o que dão”, sem qualquer controle de qualidade. Comidas baratas, ocasionalmente com muito sódio e gordura, assim gerando várias patologias relacionadas à má alimentação. Consequentemente, é possível constatar problemas relacionados ao sistema gastrointestinal, como dificuldades de defecar e má digestão. A rapidez com que eles têm que realizar suas necessidades biológicas, como defecar e comer, também pode gerar problemas de saúde.

O número de casos de tuberculose na população em situação de rua em Natal vem aumentando, segundo o relato dos profissionais. Ainda não se sabe se é por causa da forma de transmissão do bacilo ou se é por desconhecimento do paciente, como C06 relata: “Eu acho até que as pessoas que têm, elas não têm consciência que têm”. Acompanhei dois casos de tuberculose junto à equipe. O primeiro, um paciente em tratamento e que se mantinha no hospital, sendo um caso que estava mobilizando toda a rede. Já o outro paciente, mais resistente ao tratamento, se encontrava nas ruas. Esse tinha largado o tratamento antes do previsto e já estava tendo recaídas da doença, o que o tornou novamente potencial transmissor, fazendo com que o tratamento ficasse mais complicado.

É válido notar que a tuberculose é uma doença ainda endêmica no país, porém recentes dados epidemiológicos mostram uma diminuição dos casos na população brasileira, principalmente nos coeficientes de incidência e de mortalidade5 (Ministério da Saúde, 2014; 2015; 2016; Ribeira & Barata, 2012). Entretanto, esses números não levam em consideração a população em situação de rua. Esta é colocada como população de risco, tanto pelas condições de transmissão da doença, quanto pela frequente interrupção do tratamento. Contudo, pouco, ou nada, é considerado sobre as condições de vida desses pacientes, as quais têm implicações para manter as condições mínimas para o tratamento, que requer alimentação saudável, habitação e rotina de medicação.

Vale destacar a utilização do Tratamento Diretamente Observado (TDO), que preconiza algumas estratégias de acompanhamento mais sistêmico junto aos pacientes com tuberculose, integrando alguns sujeitos que fazem parte do cotidiano do paciente, além da responsabilização do Estado no financiamento para a continuação do tratamento (Ministério da Saúde, 2011; Souza, 2010; Villa, Assis, Oliveira, Arcêncio, Gonzales, & Palha, 2008).

5 Vale ressaltar a campanha da tuberculose de 2016 que afirma que a tuberculose caiu 20,2% no país em uma

década. Disponível em http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/22736- incidencia-da-tuberculose-cai-20-2-no-brasil-em-uma-decada

Souza (2010) pesquisou pessoas em situação de rua que estavam com tuberculose e foram tratadas com o TDO. Tal pesquisa mostrou que essa estratégia oferece uma possibilidade de êxito para a adesão da população em situação de rua ao tratamento. Todavia, existem ressalvas feitas pelo autor que mostram que essa modalidade de tratamento pode assumir caráter estigmatizante e excludente.

As demandas relacionadas às DSTs, como sífilis e HIV/AIDS, ainda são bem recorrentes na população em situação de rua. No Manual Sobre o Cuidado à Saúde Junto à

População em Situação de Rua (Ministério da Saúde, 2012b) são pontuais as orientações

sobre esse tema, indicando atividades de prevenção e promoção e encaminhamento para atendimento na rede de saúde. Todavia, tais demandas têm trazido a discussão entre os profissionais sobre os testes rápidos de HIV/AIDS sem um acompanhamento apropriado dos casos. Por exemplo, indaga-se qual seria a ação do CnaR após relatar para uma pessoa em situação de rua que ela é portadora do vírus. É importante salientar a necessidade da cobertura da rede em diagnosticar pessoas portadoras do vírus HIV, mas necessita-se pensar melhor sobre como essas ações serão realizadas e sobre os cuidados básicos por parte dos profissionais nessas situações.

Um dos aspectos mais destacados foi relacionado à saúde bucal. De acordo com os profissionais, há uma grande procura por atendimento odontológico, uma vez que há precariedade na higiene bucal em função da situação de rua, o que em alguns casos é agravado pelo uso de álcool e outras “drogas”.

De atenção básica, a primeira de todas é... Atenção à saúde bucal. É... Acho que é a primeira demanda que, se houvesse uma resposta pública para isto... era... era uma ótima demanda a ser atendida, mas não há resposta para esta demanda. Ela, às vezes, ela fica muito esquecida, mas... ela é uma coisa muito solicitada. (C04).

Associada a essa questão da saúde bucal, os entrevistados trouxeram à tona a questão da autoimagem da população em situação de rua. Como pontuou C04, “Não é os [dentes] que mastiga não, é os que ri (...). Estas pessoas, elas têm sorriso. Apesar de tudo, elas sorriem. Mas a estética dos sorrisos delas, quando se apresenta para outro que não é do seu meio... ela... ela muitas vezes se sente constrangida”.

Da mesma maneira que a saúde bucal, outras demandas relatadas estão diretamente relacionadas à condição de rua, à dificuldade de cuidados de higiene pessoal e de acesso a alguns cuidados cotidianos, o que dificulta a prevenção de doenças.

Eles dizem assim: "não, tô com uma coceira lá", tipo, eles com vergonha, então assim, às vezes é mais a questão da higiene... Eles mesmo falam, "ah, roupa molhada da chuva eu não tenho como trocar", entende? Então são muitas questões. Não é uma DST, é, às vezes, é alguma inflamação, alguma dermatite, alguma inflamação, é alguma coceira, é alguma micose, entende? (C17).

Há também demandas relacionadas à saúde mental. Inserem-se tanto demandas consideradas como sofrimento psíquico, quanto de álcool e outras “drogas”, já que os equipamentos da rede psicossocial são organizados considerando essas demandas como pertencentes ao campo. Nessa direção, foi citado pelos profissionais que existe a busca pela mediação para atendimentos em serviços de saúde mental.

Em relação aos casos de sofrimento psíquico, não são tão evidentes, mas se mostram como algo recorrente. Estes só foram pontuados pelos profissionais, não havendo um aprofundamento maior na questão. Já acerca das demandas de álcool e outras “drogas”, os entrevistados relataram que a população em situação de rua tem uma parcela expressiva de usuários de “drogas”, mas que é visto que, em sua maioria, buscam o CnaR para questões relacionadas aos efeitos adversos do uso,e não, necessariamente, para a busca de tratamento.

Existe uma diversidade de outras demandas da atenção à saúde da população em situação de rua que são relatadas pelos profissionais das equipes, como: consultas médicas

(infectologista e oftalmologista), marcação de exames, raio-x, encaminhamentos na rede, dentre outros. Isso acaba por fazer com que as atividades de promoção e prevenção, como a estratégia de redução de danos, fiquem comprometidas devido a demanda muito alta.

Uma preocupação das equipes é quanto à medicação. Após as consultas, a medicação solicitada pelo médico é conseguida, na maioria das vezes, nos postos de saúde aos quais as equipes estão vinculadas. Entretanto, um questionamento levantado pelos profissionais é se devem dar, ou não, o medicamento por inteiro a essas pessoas. Houve histórias relatadas pelos profissionais de casos em que as pessoas em situação de rua usaram essas medicações como moeda de troca entre eles. Contaram que, no começo da atuação das equipes, eles ficavam responsáveis por ficar com a medicação em alguns casos, mas que entenderam que o usuário utilizar, ou não, como moeda de troca faz parte da construção da noção de autocuidado.

Houve alguns relatos dos profissionais sobre acompanhamento de mulheres grávidas em situação de rua. Nesses casos, houve encaminhamento para a UBS e acompanhamento mais diretivo da equipe. Sobre isso, foi visto que, no período de três meses de imersão em campo, houve registro de cinco casos de gestantes (na faixa etária entre 18-35 anos) na equipe que acompanhei. Mas, essa demanda não é, segundo os profissionais, recorrente.

Também foram relatadas demandas que os profissionais consideram que são “demandas sociais”, mas que chegam para as equipes do CnaR. A falta de documentação foi a mais mencionada.

Porque teve uma paciente, que na primeira abordagem que a gente fez a ela, ela dizia, "Meu problema é na cabeça!", ela fazia, "Eu tô endoidando!". Por quê? E ela, nitidamente meio surtada, e ela "Porque eu estou sem meus documentos!", e gritava "Meus filhos vão perder o bolsa família!". Quer dizer, o transtorno dela era falta de documentação, né? (C01).

Outros casos citados foram relativos à habitação, à violência contra a mulher e aos abrigos. Nesses casos, as equipes encaminham para os serviços responsáveis. É importante

destacar que os profissionais do CnaR estão em contato direto e constante com a população em situação de rua, além de ter um vínculo estabelecido com esse público. Por isso, a chegada de várias demandas que não se reduzam a questões tradicionalmente ligadas à saúde é compreensível. Esse vínculo também está relacionado a uma demanda por espaço de escuta, que é recorrente para os profissionais do CnaR.

Por fim, vale retornar ao título desta sessão: quem são as pessoas que o CnaR atende? É fundamental salientar que a construção deste perfil e as demandas da população em situação de rua estão associadas à falta de políticas públicas que realmente atendam essas pessoas e que tais demandas estão ligadas a diversos fatores, que vão além de demandas individuais clínicas, que muitas vezes são foco das práticas profissionais. São demandas que aparecem, muitas vezes, de forma dispersa e fragmentada. O olhar crítico para o fenômeno população em situação de rua como um reflexo da estrutura social, que cria alicerces para a sociedade capitalista, reflete diretamente na atuação destes profissionais. Assim, a compreensão da relação das demandas de saúde, junto às características sociais mais amplas que constituem o perfil da população em situação de rua, pode fazer parte de uma atuação mais comprometida no que se refere à garantia dos direitos dessa população.