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4. Resultados e Discussão

4.2. Sobre os CnaR

4.2.1. Equipe – Formação e Trajetória Profissional

Nesta sessão, pretendo apresentar tanto a trajetória profissional, quanto os elementos que compõem a formação acadêmica dos entrevistados. Percebe-se que o tipo de formação está diretamente relacionado aos modelos de atenção levados a cabo na prática dos serviços que compõem as políticas sociais.

A maioria dos profissionais do CnaR nunca havia trabalhado com este público anteriormente. Há somente alguns relatos de trabalhos voluntários, relacionados à caridade e/ou entidades religiosas. Vale destacar as seguintes experiências pessoais e de trabalho que eles consideram importantes para o desenvolvimento das práticas no CnaR: experiências pessoais, como amizades com algumas pessoas em situação de rua, militância antiproibicionista, CR, Plantão Social, tutoria do curso Caminhos do Cuidado e estágio em posto de saúde (PSF Sem Domicílio). Assim, as reflexões críticas sobre a realidade do fenômeno com o qual eles trabalham parecem ter sido muito mais fomentadas por experiências de militância e pessoais que por formações profissionais, acadêmicas e capacitações especificamente voltadas para o trabalho na área.

É possível perceber que a trajetória profissional dos entrevistados vem de uma diversidade de campos de atuação. O Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) foi um dos lugares que sete profissionais relataram já ter trabalhado, tanto em Natal, quanto no interior, sendo, em várias ocasiões, porta de entrada da trajetória profissional no campo das políticas sociais. Vale mencionar a pesquisa de Seixas e Yamamoto (2012), que disserta sobre a inserção e atuação dos psicólogos no campo das políticas sociais e trazem dados semelhantes. Assim, o campo das políticas sociais tem criado várias oportunidades de emprego para as diversas áreas, inclusive a saúde. Porém, nos traz a reflexão de que, muitas

vezes, a ida para a saúde, como no caso dos CnaR, se dá mais por oportunidade do que por afinidade ou identificação com o campo.

As organizações não-governamentais (ONGs) também foram um campo de atuação citado por oito dos participantes, tanto como profissionais contratados, quanto atuando como voluntários. A área de atuação dessas ONGs operava também nos mais diversos campos, como sexualidade, gênero, juventude, violência contra a mulher, educação sexual, direitos sexuais e reprodutivos e prevenção de abuso sexual contra meninos, crianças e idosos.

Outros lugares de atuação citados pelos profissionais foram: atuação com a juventude, escola, consultórios particulares, empresas privadas, CAPS, hospital psiquiátrico, hospital geral, gestão pública, Projovem, faculdades particulares e exército.

Vale destacar que somente dois profissionais tiveram experiência no NASF. As práticas desse equipamento se aproximam mais das práticas realizadas pelo CnaR. Porém, a experiência relatada por esses profissionais se assemelha aos dados obtidos em algumas pesquisas (Cela & Oliveira, 2015; Sousa, Oliveira, & Costa, 2015), que, tratando do exemplo da atuação de psicólogos no NASF, mostram que ocorrem desvios de função nesses equipamentos em muitos casos.

Sobre a formação, destacam-se algumas das formações complementares realizadas que, de alguma maneira, possuem pontos de contato com os temas que dizem respeito ao fenômeno da saúde para a população em situação de rua, enquanto outras destoam das práticas em saúde (ver Tabela 2).

Tabela 2.

Cursos de formação dos profissionais do CnaR

Pós Graduação (Concluídos) Pós Graduação

(Em Andamento) Outros Cursos

Gestão no SUAS (Especialização) Saúde Coletiva (Especialização)

Trabalhos Grupais (Aperfeiçoament

o) Saúde Mental (Especialização) Terapia Ocupacional

Pediátrica (Especialização)

Gestão de Pessoas (Especialização)

Práticas Integrativas Complementares (Especialização) Gestão da clínica no SUS

(Especialização) Psicologia (Mestrado) Ciências Sociais (Mestrado)

Terapia Cognitiva Comportamental (Especialização)

Direitos Humanos (Especialização) Gestão em Saúde (Especialização)

Gerontologia (Especialização) Residência na Santa Casa/SP

De maneira geral, não foi mencionado nas entrevistas nenhum curso de Pós- Graduação, stricto ou lato sensu, e/ou formação complementar direcionada para o trabalho com a população em situação de rua. Houve poucas referências a formação anterior à entrada no CnaR que tivesse algo direcionado para o trabalho em saúde coletiva. O que se verifica para alguns com trajetória na saúde é um vínculo anterior com a saúde mental, tendo uma semelhança com a própria trajetória do equipamento.

Ainda assim, houve o curso de aperfeiçoamento de atenção integral à saúde de pessoas em situação de rua (com ênfase nos Consultórios na Rua) realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), por meio da Coordenação de Educação a Distância (EAD/ENSP-FIOCRUZ) e da Coordenação Nacional de Curso, em parceria com os Departamentos de Gestão da Educação na Saúde (DEGES/SGTES/MS) e de Atenção Básica (DAB/SAS/MS) do Ministério da Saúde. Entretanto, durante a imersão em campo, constatei que oito profissionais realizaram tal curso. Portanto, ainda que possa ser considerada insuficiente em relação ao processo de educação permanente, cabe a indagação sobre o porquê de o curso não ter sido lembrado/mencionado pelos profissionais.

Como resultado das experiências nas práticas do CnaR, evidencia-se que houve produção acadêmica. Alguns relatos das experiências no CnaR tornaram-se apresentação de trabalhos em congressos e dois trabalhos de conclusões de curso, sendo um de especialização e um de graduação.

É importante destacar que, se, por um lado, há diversidade das formações dos profissionais que compõem as equipes e falta de uma trajetória voltada para o objeto de trabalho, por outro, é preciso questionar a ausência de um processo de educação permanente em saúde. Como vimos na discussão sobre o perfil dos usuários, a compreensão da complexidade e dos determinantes estruturais político-sociais da condição de rua são fundamentais para um olhar crítico sobre a realidade em questão e sobre a atuação nas políticas sociais que atendem a essas demandas. Dessa forma, o processo de formação, ainda que não seja responsável isoladamente por esse olhar, é parte fundamental do processo. É importante, como pontua Sarreta (2009), “questionar se é possível modificar a ação dos trabalhadores na saúde, fazendo com que a formação profissional provoque o

desenvolvimento da crítica e autocrítica e a reflexão do mundo do trabalho, o qual reproduz a dominação nas relações sociais” (p. 15).

Contudo, não se trata apenas dos processos de capacitação formais que, ainda que poucos, foram realizados com os profissionais do CnaR. A prática da educação permanente em saúde é um processo de reflexão constante e de constante ressignificação da realidade de trabalho, redefinindo o olhar sobre tal contexto a partir de um olhar crítico.

Outro ponto é a questão dos vários vínculos de trabalho. O vínculo fragilizado (por ser por meio de contrato temporário) e a questão salarial são os principais pontos que fazem os profissionais terem outros vínculos empregatícios. Tal questionamento fica mais claro no relato de C16:

Não me pergunte como é que vai ficar os meus horários [risos]. É porque é assim. A gente que é da área da saúde, ou a gente se vira em um milhão ou financeiramente não compensa pra gente. Entendeu? E como o Consultório na Rua acaba em junho do próximo ano, então já tenho que ver outros vínculos de trabalho.

Essa questão se alia à problemática da educação permanente, uma vez que implica diretamente na realidade do trabalho em saúde, não somente nos CnaR. Como afirma Sarreta (2009):

Acredita-se que as dificuldades de aplicação dos princípios e diretrizes do SUS são consequências não só da falta de compromisso político dos gestores, da inabilidade e do pouco controle social efetivo, como também de descontinuidades dos processos motivacionais e educacionais sofridos por longo período pelos trabalhadores da saúde, notadamente da atenção primária (p. 25).

A partir disso, vê-se que a formação para o trabalho em saúde com a população em situação de rua ainda é incipiente e a própria possibilidade de trabalho no campo acontece de forma que não tem a ver, necessariamente, com uma identidade com o campo. Problematizo isso no sentido de pensar que, para trabalhar com um público que se encontra em tamanha vulnerabilidade, o profissional necessita estar aberto para entender aquela pessoa como um

produto de diversos determinantes sociais, para que as ações desenvolvidas não fiquem no âmbito do assistencialismo ou da caridade. Isso demanda do profissional a disposição para desconstruir vários preconceitos e/ou estar envolvido com a causa da população em situação de rua. Esses aspectos já estão presentes nas práticas dos profissionais do CnaR, mas vieram de experiências pessoais ou profissionais que não visavam a uma formação específica para este campo.

É possível afirmar que isso tem relação com a histórica negligência do Estado para com a população em situação de rua e o caráter de novidade que muitas das políticas voltadas para ela possuem. Em consequência disso, a trajetória profissional dos profissionais reflete este espírito de novidade ou de desconhecimento do fenômeno.

Entretanto, não se trata apenas de uma formação com olhar mais humanizado para com a população em situação de rua, mas de construir uma atuação em política de saúde que entenda os determinantes político-econômicos da condição de rua e da própria saúde enquanto política social que atua em um conjunto de expressões da questão social. Essa constituição apresenta um campo de possibilidades que vai desde uma formação permanente e crítica, que tencione constantemente a reflexão sobre o próprio processo de trabalho, até uma aproximação política, como, por exemplo, a articulação com movimentos sociais para um maior entendimento da complexidade das demandas da população em situação de rua.